AD SENSE

domingo, 10 de fevereiro de 2019

As Formigas-Correição e a Nova Ordem



Nova Ordem,  pressupõe que eu vá falar de alguma teoria de conspiração, apoiar ou negar, ou ainda apresentar respostas que confortem e deem certezas para dúvidas que crepitam nas labaredas da angústia da realidade, ou então desmontar  tais ideias, alegando-as estapafúrdias e sem sentido. Não! Não farei uma coisa, nem outra, antes, desfiarei um novelo de acontecimentos que borbulham no coletivo da sociedade e das nações, e que diretamente atingem nossa felicidade e nosso modo de viver.

Falemos dos conceitos de Direita e Esquerda políticos, que não dividem o país e o mundo, apenas intensificam e decantam os sentimentos de um e outro lado, aflorando entre seus simpatizantes a oportunidade de extravasarem suas opiniões, e borbulharem no caldeirão das angústias que nos desperta todas as manhãs, e tornam-se o elixir energético que nos impulsiona a sobreviver, no mínimo que seja, os sentimentos adormecidos de um um e de outro lado, na mesma pessoa, o que leva-me a imaginar que não somos de Direita ou de Esquerda, mas tornamo-nos ora de um lado, ora de outro, não por nossas convicções, senão por nossas necessidades prementes. Somos volúveis e voláteis, e manifestamos essa inconstância de acordo com nosso bem estar intestinal, propondo, apoiando, ou promovendo uma revolução, sempre que tivermos dor de barriga. Aliás, estudos dizem que várias tragédias políticas, determinadas por reis sanguinários, foram dadas em momentos de extremo sofrimento do monarca. A "Noite de São Bartolomeu",por exemplo, por uma infecção dental do Rei (tardado) Carlos IX de França,um pau mandado de sua mãe Catarina de Médicis, que também não estava com a saúde intestinal bem regulada na ocasião. Assim, a classe média, sempre temerosa pela volta da pobreza, ou pela ânsia sem medida de alcançar a riqueza de modo acelerado, ao ver-se ameaçada em qualquer de suas fragilidades, revolta-se contra o governo, contra qualquer sistema de autoridade, e valendo-se dos recursos que tem, promove a tal revolução.

Nós estamos atravessando esta revolução, caso ainda não tenham percebido. Eu explico então. Vínhamos de um período onde era dedilhada a tecla da liberdade, da democracia, do autoritarismo dos militares, da inflação, da necessidade pelo crescimento econômico, e por muitos outros problemas e desafios que foram sendo apresentados, à medida que um e outro problema eram resolvidos. Vejamos assim: Os militares saíram do poder, mas havia inflação. A inflação acabou, aí veio a competição por posições internacionais. Subimos as posições, mas apareceu a violência urbana, primeiro, e depois ramificou-se para o interior. A violência se estabeleceu,mas apareceu a corrupção (irrompeu nos noticiários), e cresceu o ódio pelos corruptos, e então, agora sim, tínhamos razões para uma revolução, pois não se começa uma guerra sem inimigos visíveis. Não se atira, sem ver o branco do olho do inimigo, dizia uma orientação militar de combate, ou seja, não desperdice energia,munição e recursos, contra um inimigo que não possa ver para combater a céu aberto. Então, sim, então, o inimigo apareceu. Foram dados nomes e seus crimes, e foram julgados, e condenados, e assim, na defesa de um e de outro lado, porque nenhum corrupto é corrupto na solidão. Corrupção pressupõe no mínimo três personagens, onde um propõe roubar do outro, e o terceiro, se propõe a comprar o produto do roubo, e assim neste tripé do suborno, forma-se um cartel, uma quadrilha, um bando, uma gangue, e um  conjunto de gangues, forma um território e este território está infecto de coadjutores que tornam-se o braço ideológico da patifaria, até aqui então já institucionalizada, e quem ousar combatê-la, está se posicionando como anti-patriota, porque ai daquele que ousar apontar o dedo a uma destes membros  da realeza corrupta, assinará a si e aos seus, sentença de morte e expulsão do mundo dos favorecidos, e a má sorte servirá de cobertor para as frias noites nas escarpas do esquecimento.

Já de outro lado, ergue-se uma muralha humana de enfurecida turba, armada de paus, pedras e celulares, que se entregam ao combate da imoralidade, da corrupção, da violência, da pureza espiritual, da pureza ética, enfim, com a gana de fazer uma assepsia política e moral, promovendo o desentocamento e expurgo dos dominadores de antanho, trazendo à nação a Nova Ordem, onde tudo será perfeito, belo, moral, ético, e moralmente aceitável. Uma revolução necessária, que faz-me lembrar das formigas guerreiras vermelhas, ou "Formigas-Correição"*, aquelas formiguinhas que andam em colônias de dezenas de metros, limpando e desentocando tudo quanto é bicho até o tamanho de um rato, por onde passarem. Limpam tudo, fazem o mesmo que faz uma "Lava-jato" (desculpem o trocadilho, mas também serve), e sanitiza completamente os cantos escuros do jardim, por longo tempo. Assim, esta revolução, após estabelecida, instaura a sua "Nova Ordem", e esta "Nova Ordem" irá reger as normas de comportamento político, ético, social, administrativo, empreendedor, e perigosamente também, o religioso. Aqui minha mão começa a tremer, e podem surgir mais erros de digitação, pelo nervoso dos pensamentos que fervilham nas minhas lembranças, haja vista que sou um estudioso e observador dos acontecimentos, dando a um e outro polos de pensamento, oportunidade de que apresente razões para minha convicção a favor de um ou de outro lado.

Lembro que quando Collor foi eleito, e rapou a conta de todos, foi uma euforia inicial da turma do "quanto pior, melhor", que comparava-se aos milionários, pelo menos por alguns instantes. Ferrou com todos. Depois, quando Sarney decretou seu famigerado Plano, com a "Tablita" das URVs para deflação dos cheques pré-datados, foi uma euforia, e todos compravam de tudo, porque era proibido subir os preços. Ferrou todo mundo em 1987. Seguiram-se Plano Real, mas ainda com alguns resquícios de autoritarismo, e vieram as "Correições" vermelhas, arrasando tudo, limpando tudo, comendo tudo e todos, tocando terror em tudo, e nova mente outra revolução, onde a massa, que imaginava-se, havia pouco tempo antes, que fosse acéfala, como no episódio da greve dos caminhoneiros, que aparentemente não haviam lido "A Arte da Guerra", de Sun Tzu, e "O Príncipe", de Maquiavel, onde o segundo diz que primeiro o conquistador deve tomar um reino, e depois deve ocupá-lo, e Sun Tzu diz como fazer isso da melhor maneira, com menor número de baixas, e maior eficiência. Então,  não havia, nem no movimento dos caminhoneiros, nem no "Fora Dilma", uma liderança, um monarca, um herói, um nome a ser apresentado como o continuador da Nova Ordem. Então, foi nesse vazio, que surge alguém que fala a linguagem que a massa quer ouvir, ainda que seja eco de suas próprias palavras, e esta mesma massa fez toda a tarefa de fazer brotar o herói e o vilão, muito distintos entre si, e naturalmente, as viúvas do vilão, tratarão de desmerecer o herói, mas não tem coragem de atacar os revolucionários, oferecendo uma batalha curta e decisiva, onde aparentemente não prevalecerão as raízes daninhas das ervas arrancadas da lavoura da nova liberdade.

A Nova Ordem então está livre para ser a nova ordem de fato, pelo tempo a ela destinado, até que a história se repita, com a dor de barriga da vez. Meu receio não é pela Nova Ordem, mas pela falta de entendimento de seus adeptos egressos da velha ordem, que não perceberão a importância de fortalecer a democracia, os bons valores éticos, e não apenas uma troca de ódios, onde o ódio mais forte domina sobre o ódio mais fraco, e constrói novas modalidades de ódio, permitindo que em dado momento, doa a barriga de quem teve que se calar, ou mesmo de quem fez a revolução, mas não gostou do sabor do ódio trocando de mãos.





Formiga-correição, tauoca, tanoca ou taoca é a designação comum a cerca de 200 espécies formigas carnívoras, notórias por organizarem expedições periódicas de milhares de indivíduos. Não constroem colônias e têm um modo de vida em constante movimento. Algumas aves seguem regularmente essas expedições, aproveitando os insetos e outros pequenos animais que tentam escapar do ataque das formigas.

O grupo inclui espécies de diferentes subfamílias e diferentes linhagens filogenéticas que desenvolveram o mesmo comportamento de acordo com os princípios da evolução convergente. O termo formiga-correição, não corresponde, portanto, a nenhum taxon em particular dentro da família das formigas.


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sábado, 9 de fevereiro de 2019

A Caminhada - Ensaio




Antigo adágio popular reza que "Água parada não move moinho", ou ainda, que "Pedra que rola não cria limo", e há também outro que diz que "Águas paradas são profundas". Enfim, se puxar pela memória, muitas serão as citações que fazem referência a movimento, ação, ou em contrário, estagnação, indecisão, inanição.



É próprio do Ser humano, o movimentar-se, e movimentar-se vai muito além de apenas mover-se aleatoriamente de um lugar a outro.  A movimentação consubstancia a amálgama (aqui redundei, mas paciência, velho é assim mesmo) de coisas e ideias, ambições, ou senso de participação no processo criativo infinito, ao qual fomos destinados desde a criação do mundo e dentro dele, buscarmos nosso cantinho ajeitado para a felicidade, aquela que nos faz parecer um esquilo correndo dentro de uma roda giratória diuturnamente, para esgotar as energias provida pelos ácidos graxos e sua rica alimentação de oleoginosas guloseimas, e não corresse ele dentro desta roda infinita, tornar-se ia gordo e obsoleto para sua natureza de esquilo. Assim, se a natureza do esquilo é comer e correr, a natureza do Homem, é caminhar e viver, e viver aqui é bem mais que comer e correr, porque sendo criado à imagem e semelhança do Criador, nossa natureza é criativa e construtiva, edificadora, propositiva, e insaciavelmente criativa.

Passamos a vida em uma caminhada rumo a um destino certo, mas escondido, e a única certeza que temos é em nossa crença de que entre nós e nosso destino, há um caminho a percorrer, e que se não nos movermos em direção à ele, certamente ele também não moverá uma palha para buscar-nos. Somos destinados a caminhar e caminhar sempre, e não há como acelerar o passo, porque o destino parece perceber nossa ânsia pelo fim, e afasta-se de nos lentamente, para que encontremos a celeridade de equilíbrio, sem rastejar nem tampouco correr. 

O destino não caminha a nossa jornada. Ele apenas nos espera, e nesta espera, não caminhamos de mãos vazias, mas carregamos um cesto, para coletarmos frutos pelo caminho, para a jornada incerta. Tal cesto não é demasiado grande, que não o  possamos suportar, nem tão pequeno, que pouco possa armazenar as benesses que levaremos até o ponto de chegada. Neste cesto, coletaremos frutas, que renderão outros frutos, uma vez que a finalidade não é chegarmos com os cestos abarrotados,mas acompanhados por aqueles com quem tenhamos dividido, compartilhado nossas frutas, sendo que tais companhias serão os frutos das frutas, e o fruto da jornada serão os  portais que nos esperam para o banquete final.

Nesta caminhada, encontraremos subidas e descidas, e não estaremos sós, antes, cruzaremos por muitos outros,com muitas outras cestas, umas cheias, outras vazias, uns tristes, outros alegres, uns afortunados, outros empobrecidos, e nas subidas mais íngremes e escarpadas, nossos cestos parecerão pesados, o que nos permitirá torná-los leves, distribuindo as frutas que coletamos, aos que coletaram menos que nós. Nesta subida, faz-se mister que subamos de cabeça baixa, para que, se necessário for descer para ajustar nossa rota, o façamos de cabeça erguida. Assim, de encontro em encontro, de fruta e fruto em fruto e fruta, perceberemos que a chegada é precedia por uma planície, e que flores e perfumes alcatifam nossos pés ao frescor das manhãs, e que perceberemos, em dado momento, não termos mais cestas em nossos braços o peso das cestas,mas o calor de outros braços que foram alimentados por nossas frutas. No destino da jornada,não levaremos mais nada, senão a nós mesmos, e aqueles com quem estivemos ao longo do caminho. De cabeça baixa ao subir, e levantada ao descer, pois o contrário disso nos faz perder o rumo da vida, o sentido da existência, e o premio tão desejado.




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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Gauderino - Conto

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Gauderino assentava-se à soleira da porta do ranchinho, e ficava só bombeando o movimento dos transeuntes. Negaceava as nuvens e agourava o tempo. Levantava mecanicamente a chaleira preta para encher a cuia, e trocava de mão, "pous" era falta de respeito servir um mate pela mão canhota. Gauderino era pobre, mas guardador dos bons costumes, como devia de ser, sim senhor. Trocava de mão para servir a si mesmo, porque havia muito que não tinha mais ninguém para estender uma cuia.


Vivia só, ainda que cercado de vizinhos. O choupo em que vivia, há muito não estava mais perdido à léguas do povoado, porque o povoado havia buscado avizinhar-se com a maloca de Gauderino. Não mais acordava ao canto do galo, mas pelo alarido do povoedo que atirava pedras na cancela de telhas velhas de zinco, que separava seu ranchinho da ruela lamacenta e malcheirosa. Entre a cancela de zinco e o rancho, um carreirinho ladeado por brejo, e escondido entre as folhas do brejo, um e outro pé de couve, um chazinho pra gripe, e uma morangueira que se adonava do espaço, espargindo suas largas folhas agarradas às mangueiras de seu caule. Gauderino olhava para as mangueiras, tragava um gole, e viajava no lombo da saudade até a querência da infância, onde brincava com os canudinhos das morangueiras durante as chuvaradas de verão. Olhava os pés de couve espalhados, e tomava outros dois ou três goles.

Gauderino fora um habilidoso fazedor de coisas. Mexia com ferramentas, com madeiras, pregos enferrujados, e com graxa patente, aquela preta, que se passa em roda de carreta. Hoje, o velho já tem mãos trêmulas, que não firmam mais o martelo e o facão, para talhar um boizinho de figueira para os miúdos. Gauderino apenas caminha de um lado a outro, com a chaleira preta em uma mão, e a cuia com cor de cuia na outra, enchendo e tomando, enchendo e tomando, enchendo e suspirando. Gauderino dá a volta no rancho, e larga a chaleira num velho banco de pé em "V", para apanhar um graveto e espantar um guaipeca que cagava na moita de chá de Pariparóva.

-Te raspa daqui, cusco maleva! Eia-te que te capo e apincho os bago pros gato, animáli xujo!
O cusco esguia-se em curva, enfia o rabo no traseiro e sai ganindo umas palavras de desacato ao velho resinguento. Depois, tudo volta ao que era. A chaleira volta para a mão, e a cuia permanece na outra mão.

O galo canta cedo, mas nunca encontra Gauderino dormindo. Não senhor! Quem tem a solidão por parceira, não tem tempo nem vontade para dormir. Dormir é coisa de quem não vive de lembranças e precisa sonhar. Não senhor! Gauderino, assim como todos os solitários, não brincam com a insônia, pois é a única companheira de quem vive só. Ao menos, na noite escura, insônia e solidão se aparceiram, e abraçadas, esperam o alvorecer. O galo que cante quando quiser, mas galo tem mais o que fazer do que controlar a horas de dormir das pessoas. Gauderino pensa assim, sim senhor.

Gauderino tem um causo de vida, mas não gosta de comentar. Envolve apreço e bem querer, e isso é cousa pros mais moços. Um taura enrugado pela vida não tem tempo a perder com reminiscências de  feitos antigos que façam doer o coração. Não se mexe com os sentimentos da pessoa, e por isso preferia falar de feitos e peleias em guerras e revoluções de onde nunca chegou perto. E quem disse que é preciso terciar ferro numa justa para sentir o tinir do aço nas lembranças edificadas pela solidão? O fogo de chão e a trempe balançando a cambona do refestelo de logo mais são motivo suficiente para engendrar um causo, e do causo, razão para soltar uns gritos de entusiasmo ao falar de uma carreira em cancha reta, ou uma bebedeira e briga de faca num bolicho de lá adiante, por conta de umas percantas desbocadas. Assim, de causo em causo, de cuia em cuia, de olhar em olhar, de gritos de vizinhança, Gauderino devorteia o rancho á espera da morte, com quem pretende ainda tomar umas cuias, antes da derradeira mateada na querência do infinito.


Convites para mateadas, churrascadas, charlas e palestras, pelo zap: 48 999 61 1546. É só botar uns pilas na guaiaca que eu me bandeio pra prosa.


terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O peregrino - Conto

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Ninguém sabia seu nome, nem de onde viera. Apenas o chamavam de "Peregrino", e para os mais incultos, era "Seu Pelegrino". Falava pouco, e olhava de lado, desconfiado, solene, exceto para as crianças, a quem não economizava sorriso, especialmente com o olhar.

Catava umas ervas por onde passava, e com elas chamava atenção sobre si, quando pediam algum conselho para dores do tipo que não aparece, nos aparelhos dos médicos, mas enchem hospitais de doenças, e algumas vezes até, de doentes. Com suas ervas e rezas, ele era capaz de fazer leitura de almas, estas, as mais doentes. Peregrino fazia ar de mistério, balançava uma caneca velha amassada e rodopiava gemendo umas mandingas em linguagem incompreensível, para que os chás pudessem fazer efeito naqueles que deles bebessem com fé. A fé é assim mesmo, incompreensível, e no dia em que somos capazes de compreendê-la, perde o efeito, pois a força está no mistério, assim como o chá, cuja força está em quem bebe e não em quem serve.

Em todas as cidades existem uns doidos. Uns mais, outros menos, mas é só ter um velório, que lá estão eles: os malucos e os bêbados, chorando mais que os enlutados. Bêbado e doido choram com sentimento verdadeiro, ainda que nem tenham conhecido o morto. Bêbado e doido são como mariposas, que não resistem a passarem uma noitada de farra à volta de um poste iluminado, assim também, maluco e borrachos, não se contém diante de qualquer aglomeração de pessoas, ainda que seja velório ou comícios políticos.

Mas também, em todas as cidades, de tempos em tempos, aparecem os peregrinos. São tipos sinistros, silenciosos, avessos à higiene pessoal e à socialização, que deslizam pelas rodovias, ora empurrando um carrinho de mão ou de supermercado, cheio de traquitanas, cuja utilidade seja digna de análise sociológica, haja vista que  dificilmente teriam eles, utilidade específica para o tambor de uma máquina de lavar enferrujado, ou cinco pares de sapatos desencontrados e de numeração inferior aos seus próprios pés, amarrados,uns aos outros e pendurados no cabo do carrinho. Ou a pilha de jornais velhos embolados em sacolas de mercadinho, amontoadas com trapos velhos e outras inutilidades simbólicas que chamam de suas. E tente oferecer comida, quando não estão com fome, apenas tente, e ver´a expressão "sheakesperiana" de desprezo e orgulho contrastando com a aparência desgrenhada e indiscutivelmente de uma nobreza às avessas, capaz de fazer calar a hipocrisia do gesto de quem quase força uma esmola para aplacar a consciência.

Peregrino, nosso convidado para este ensaio, fugia bastante deste arquétipo,pois era asseado, agradável, cortês, e acima de tudo, generoso. Abstêmio, estendia a mão espalmada ao rejeitar um gole de cachaça que lhe ofereciam, ao passar por um boteco, onde os bêbados sociais tentavam divertir-se às custas do forasteiro, mas não funcionava com este andarilho.Não senhor. Apenas pedia, delicadamente um copo de água, e quando a fome apertava, com singular educação, olhava em direção aos quitutes do balcão, e tecia bondosos elogios ao perfume que exalavam, e às propriedades nutritivas das especiarias utilizadas na composição dos sabores oferecidos. Funcionava quase sempre, e era convidado a assentar-se com os demais, que respeitosamente ouviam suas histórias e dissertações sobre temas de relevância espiritual ou cultural. Naquele dia, eram vendidos mais refrigerantes e quitutes, do que cervejas ou pinga.Mas até o bodegueiro, com um pano sujo ao ombro, recostava-se no lado externo do balcão para ouvir-lhe dissertar sobre Divina Proporção ou história das civilizações.

Todo andarilho tem uma historia triste, e nem todos querem contar sua história, porque é triste. Muitos caíram na estrada porque perderam alguém da família de forma dramática. Outros, porque caíram na bebida, nas drogas, e desmoronaram em suas carreiras e laços familiares.Cada história é única, mas alinha-se com as demais no resultado dos dramas: as ruas, a estrada, o mundo sem fronteiras a desbravar.

Peregrino não era um andarilho qualquer.Não falava asneiras, embora fosse divertido, bem humorado, contador de piadas, e menestrel. Cantava canções antigas e compunha versos de improviso para divertir a assistência. E como já mencionei, se houvessem crianças no ambiente, as canções eram direcionadas aos pequeninos. Peregrino era crianceiro, adorava os pequeninos, e era amado por eles também.  Não era apenas falante, mas sabia e gostava de ouvir também, e em dado momento, sua presença suscitava desabafos e choros, confissões, e pedidos e conselhos. E Peregrino, os dava, mas não ao modo tradicional de perguntas e respostas, mas suscitava os queixosos a formularem suas próprias perguntas, e refletirem sobre possíveis respostas, silenciosamente pensadas e pesadas como possibilidade de mudanças. Era assim que Peregrino deixava saudade por onde passava. Era assim que edificava relações em sua jornada. Jornada que teve um começo, mas não havia planos para o fim, pois acreditava que o mundo é redondo e há muitos lugares para caminhar, muitos ouvidos para levar esperança, muitos corações machucados para abrandar com seus chás, suas rezas, e sua prosa agradável.

Peregrino nunca se despedia. Odiava despedidas! Dormia à porta dos botecos por onde havia encontrados novas amizades na noite recente, e ainda noite, precedendo o alvorecer, com a mochila às costas, bebia uns goles de água, e seguia seu curso. Ninguém sabia de onde vinha, e tampouco havia condição de saber onde encontrá-lo novamente, mas aquele andarilho que chegava recusando bebida e saía ao amanhecer, deixava profundas lembranças em todos, ainda que com poucas horas de proximidade. O maior atributo de Peregrino era sua sabedoria quando se calava,e era o seu silêncio que intrigava e deixava saudade. Peregrino talvez fosse um anjo. É, talvez fosse sim. Isso eu não sei dizer, pois não tenho uma tabelinha que identifica anjos, exceto quando já se foram, sem deixarem pegadas. É! Peregrino caminhava com passos bastante leves, e nunca deixou pegadas. Só saudade.



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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Das Dores e Fridulino - Fábula

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Das Dores, a quem as comadres abreviavam para "Dasdô", levantava com o pé esquerdo enfiado no urinol, e começava as tarefas do dia, chutando o pé do armário com o dedinho estropiado do pé direito. Toda vila tomava conhecimento de que ela acordara, nem tanto por isso, mas porque, ato contínuo, enfiava a cara na janela, esticava o pescoço, se retorcendo pra posicionar o berro em curva, descabelada, ainda sem a dentadura(que nesse tempo estava com três dentes em falta), vestindo o camisolão preto desbotado, e uma das tetas quase despencando pelo parapeito, e desatava a verborréia rumo ao marido (se é que aquilo podia ser chamado de marido):

- "Fridulino, desgraça! Eu não te mandei que levasse o penico pra lavar ainda treisontonte? Onde é que tu anda com essa cabeça de porongo, seu bosta imprestável?"


Fridulino apenas esticava o pescoço instintivamente, em direção aos berros, e serenamente retornava ao cócoras para terminar de obrar, enquanto pitava um toco de palheiro, resmungando qualquer blasfêmia que parecia demonstrar nenhuma importância aos berros da macróbia.

Dasdô corria, pulando em uma perna só, até a varanda, onde havia um velho tanque de tábuas também acinzentadas e cobertas de limo, que transbordava água da velha bica de mangueira preta, para lavar o pé enlameado de bosta e mijo. Enquanto lavava o pé, praguejava heresias e barbaridades, desconjurando o marido por todas as desgraças do mundo, desde que o mundo era mundo, pois afinal, era era culpado pela estrada barrenta, porque não atormentara o Prefeito,para que mandasse uma patrola para emparelhar a buraqueira. Era culpado, o Fridulino, na opinião dela, porque a vizinha comprara um vestido novo, e ele, nem para comprar-lhe um vestido novo, prestava. 

Com os pés lavado, caminha até a ponta da varanda e estica o pescoço, ainda vestindo o camisolão desbotado, que deixava uma teta de fora, e berra pelo marido, que apenas resmunga, acocorado, dando uma última pitada no palheiro babado, e depressa passa a mão em um sabugo de milho para limpar o traseiro, do jeito que der. Examina o sabugo, e o atira sobre a "obra" que fizera, erguendo as calças e ajeitando os suspensórios, para atender à patroa que à esta altura dos fatos, já engrossava a veia do pescoço, e desatava o cordel de ofensas ao atarantado sujeito.

- "Busque lenha e pique cavaco pra móde acender o fogo, seu imprestável!" - Berrava ela, ainda sem dentadura, e com a teta ainda de fora. E traga uns temperos da lavoura, se quiser comer alguma coisa (ele queria comer alguma coisa, mas era ele mesmo quem preparava seu pirão).

E assim, dia a pós dia, o azedume de um e outro era fermentado.Não trocavam sequer um "Bom dia!",porque se ele desse tal "Bom dia!",viria um saco de ofensas e desgraças de arrasto, e caso, por estes descuidos da vida, o cumprimento partisse dela, quem escarrava janela a fora, fingindo que tossia, para não ter que responder, era ele. Deste jeito, andavam, ela se arrastando com um trapo amarrado na perna besuntada por linimento e chás, e com a teta de fora, ou ele,se peidando pela casa, com a calça rasgada nas virilhas, e o saco espiando o mundo, como se tivesse vontade de fugir daquele ambiente infecto. Um e outro, com a bunda fedendo, ou a teta de fora, eram unidos pelo ódio que sentiam entre si, e pela vida, após longos anos de esquecimento da razão que os unira, um dia, ao som de melodias, ao perfume das flores da primavera, quando juraram amar-se até que a morte os separasse. O problema é que a morte se esquecera deles, e até é compreensível aceitar que nem mesmo a morte queira um de bunda fedendo e outra com a teta de fora. Seria muito zoada, debochada, pelos colegas, quando aparecesse no mundo das sombras e do silêncio, com aquela dupla de infelizes.Não, a morte não os queria daquele jeito, e precisava,imagine, a morte preocupada com seus clientes, dar um jeito para que se tornassem mais apresentáveis, no dia solene da partida. Assim, a morte aliou-se à dor, ao sofrimento, à angústia,à maledicência, à todos os males do mundo, chamou a mentira, o ódio, as facilidades ao mal, e abriu a porteira para que saíssem à farra.

Assim, todos os males do mundo cercaram aquelas duas infelizes criaturas, e como milagres acontecem, um e outro estavam de costas entre si, para defenderem um ao outro, e defenderem aqueles a quem amavam,  para enfrentarem todas as dores do mundo, na ânsia de protegerem-se do mal que vinha de fora. Fridulino não via mais a teta de fora de Dasdô, e Dasdô não sentia mais o cheiro de bunda do companheiro, porque um e outro apenas se abraçavam em choro convulso e no desejo de confortarem-se entre si. E então, assim abraçados, um não via o outro, mas olhava distante no passado, vendo uma pessoa amada que caminhava em sua direção. Ela via um jovem elegante e valente, ousado, trabalhador, e ele via uma princesa perfumada e com um sorriso que iluminava a escuridão da vida. Um e outro sentiam apenas o perfume da historia que deixaram apagar-se m seu caminho, e outro, abraçando o "um", falava apenas pelo bater do coração. Um e outro corações se encontraram, e finalmente a morte poderia trancafiar seus assistentes desvairados,  pois já restaurara duas vidas de seu itinerário. No entanto, era tão sublime o quadro, que a senhora vestida de preto pensou que poderia voltar outro dia, pois os que lhe pertencem,não a desampararão de seus compromissos.

E o que aconteceu depois disso? Bem, Dasdô continuava com a teta de fora, e Fridulino ainda não limpava direito a bunda, então evitava assentar-se sobre os travesseiros, e Dasdô vestia uma roupinha mais adequada, ao menos quando recebia visitas na varanda, para falar mal de Fridulino, e darem gargalhadas dos causos contados. Fridulino, de seu cantinho debaixo da macieira, ajeitando seu palheirinho, silenciosamente também gargalhava, deixando à mostra os dentes tortos e amarelos, todos os três.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

O general durão e a editora de fundo de quintal

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Foto: internet

Tava aqui puxando o carretel das memórias, e localizei um rosto conhecido, o do General Carlos Alberto dos Santos Cruz, que toma posse hoje como Ministro do Presidente Bolsonaro, e encontrei a resposta em 1996, quando o então Presidente, Fernando Henrique Cardoso visitou Gramado. Bem, se não era ele, era alguém com o mesmo biotipo, mas tenho em conta ser bom fisionomista, e creio não estar assim, redondamente enganado. Creio que era ele sim.

Eu tinha uma humilde revista, chamada Hortênsias (nada a ver com uma que existe hoje, que foi plágio descarado), e recebi credenciamento para acompanhar a comitiva presidencial durante dois dias, o que fiz, em companhia de uma pequena multidão de jornalistas mais tarimbados na função. Eu era o bobo alegre que olhava pra um e outro e anotava tudo o que diziam, pois eles sabiam fazer melhores perguntas que eu.


Como eu morava próximo a uma casa de idosos, visitada pelo cortejo, cheguei antes, para conseguir um lugar mais privilegiado para as fotos. Lá já estava o aparato de segurança presidencial, comandado pelo então Tenente Coronel Carlos Alberto, extremamente simpático e atencioso, explicando-me como funcionava o esquema de segurança, etc e tal.
Falei a ele que eu fazia uma pequena revista de interesse local, ao que me respondeu que já conhecia a revista, e deu-me detalhes de minha editora com precisão matemática, e ainda pediu-me que enviasse a ele um exemplar,com a reportagem. Nunca enviei,pois esqueci de pedir o endereço. E nem era preciso. Com certeza ele recebeu minha revista já impressa, antes mesmo de mim.


*Coloquei uma foto dele em traje civil, porque foi assim que o conheci.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Lembranças de priscas eras de minha infância - "Véia Fróca"

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Foto ilustrativa colhida na internet e modificada artisticamente

Uma tragédia familiar levou-nos de volta à Gramado. Fomos morar em um pequenino ranchinho de tábuas sem pintura, no terreno emprestado dos primos Francisco e Cândida Corrêa, na localidade de Vila Moura,um cafundó (à época) do Município. Houve certa resistência de parte da família, em que minha avó instalasse ali sua provisória morada, atitude gerada  pelo preconceito da tragédia que abalara nossa casa. Coisas da Natureza humana: o medo, o preconceito, e uma pitada de egoísmo, que como todos os paradoxos da vida, faz brotar também a solidariedade e a compaixão. Toda tragédia tem estes dois lados.

Éramos cinco, no começo da nova caminhada: Maria Elisa, minha avó, a matriarca; Minha mãe Ester, menina, com  dezessete anos;Esaú, o menino rebelde da casa, com treze anos; Samuel Isaac, com cerca de sete anos de idade, e finalmente, o velho escriba que vos relata, com um glorioso e turbulento Um ano de existência e resistência, para dar fôlego à trupe daquele drama, semente de resiliência e muitas histórias para contar, mais à frente.

Minha avó, Maria Elisa, saiu em busca de subsistência, e começou a lavar pratos no restaurante do "Motel Balneário", à época ainda servindo de sede para o Gramado Tênis Clube, arrendado para o alfaiate Armando Rost e sua esposa, Lourdes. Lavava pratos, e coletava restos de comida, para abastecer o meu pratinho em casa.

Minha mãe, Ester, foi trabalhar como cuidadora dos filhos do querido e saudoso casal Marcílio (Tio Março), e Irani Cardoso,em cuja casa passei parte de minhas boas lembranças, recebido como filho e irmão dos queridos Manuel Inácio, Alexandre, e Caetano Cardoso, e não sei coordenar bem as datas, mas também (antes disso) dos filhos do saudoso Orlando Koetz e sua queridíssima esposa, Teresa, Flávio, Paulo, Fátima e Zenaide. Não por muito tempo, porque "Tio Março" leva Ester para uma visita ao então Prefeito, Arno Michaelsen, e a apresenta como "Filha do Assis", velho amigo dos dois, e diz que ela precisa de trabalho e estudo. Segundo relata ela própria, Arno diz assim: "Filha do Assis? Temos que prover uma colocação para ela imediatamente então!" E a nomeia como Professora na pequenina e distante escolinha da "Curva da Farinha", onde hoje está o Loteamento Casagrande.

Há uma história que precisa ser resgatada deste lugar, e o que aqui vou contar,não tem intenção de diminuir ou pisar na moral de ninguém,mas de resgatar as gratas lembranças de gente que representa o espírito generoso que edificou Gramado.

Morava pertinho da escolinha, na Curva da Farinha, uma senhorinha que não gozava de boa reputação, sendo motivo de piadas e rejeição pela dita "sociedade" gramadense na ocasião, e esta senhorinha era conhecida pela alcunha de "Véia Fróca".

A Curva da Farinha dista cerca de cinco quilômetros de onde morávamos,e era inverno. Todos sabem como são os invernos em Gramado: Rigorosos! Minha mãe não tinha um bom guarda-chuva, não tinha um bom calçado, não tinha roupas térmicas e impermeáveis, e deveria chegar às sete horas na escola. A chuva era inclemente. Congelava até a alma. E a jovem professorinha, com dezessete anos de idade, e um filho sem pai, deixado em casa, passara da cor pálida para roxa, queixo batendo, tremendo como vara verde ao vento, e assim entrou na escola, para dar aula. Poucos instantes depois, entra na salinha, para surpresa dos alunos, a "Véia Fróca". Diz carinhosamente e com firmeza às crianças, que continuem comportadas, pois ela precisava levar a professora à sua casa por alguns instantes. E fez!

Chegando à casa de "Véia Fróca",a professorinha tirou as roupas encharcadas e foi envolta em uma velha coberta de trapos, junto ao fogão à lenha, que crepitava aquecendo todo o ambiente, como uma ante-sala do Paraíso. Uma caneca de café bem quente, e uma batata doce assada, esperava à mesa para alimentá-la, enquanto se aquecia e recompunha as forças. E depois voltou para seus alunos, temperada pelo carinho de "Véia Fróca".

Mas pensam que termina aqui a história? Não termina não! Ester, a professorinha, foi chamada à Secretaria de Educação, e levou uma reprimenda do Secretário, por ter sido "vista frequentando a casa de uma mulher indecente e mal falada", que que esse tipo de atitude não era esperada por uma jovem professora, de boa família, e investida no cargo de educadora de crianças inocentes.

Felizmente, a professorinha era filha de Maria Elisa, e contou detalhadamente o que havia acontecido, e depois perguntou ao Secretário, onde é que estavam as "boas senhoras decentes e cristãs" que espiavam pela janela, rindo de sua situação, no instante em que a única pessoa que não tinha motivo algum para rir de outra pessoa, percebeu a necessidade da professorinha gelada e encharcada que cumpria suas obrigações na escola.

Eu até sei o nome do dito Secretário, que entendeu imediatamente que dera ouvidos à gente de má índole, e cumprimentou a professorinha pelo excelente trabalho que estava fazendo na escolinha da Curva da Farinha. 




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