AD SENSE

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Velho, meu querido velho....



Envelhecer é um mistério. Um daqueles mistérios tão grandes, quanto o mistério de nascer, ou acordar. Nascer, porém, são compreensíveis, porque é onde se abrem as cortinas para o espetáculo da vida. Despertar, é onde há o medo e o mistério do dia que nos espera. Mas envelhecer não tem mais nada disso, não. Envelhecer é um conjunto de mistérios que se abraçam desesperadamente ao desconhecido para formularem suas esperanças e sublimarem seus medos.

Envelhecer é algo vergonhoso para a civilização moderna, ocidental ou oriental, isso já tanto faz, em nossos dias. Já não se envelhece mais como antigamente. Nosso envelhecer é visto de duas formas, e em tempos diferentes, de uma terceira forma. Na leitura antiga, a palavra "ancião" tinha certa reverência. Hoje, significa apenas "velho". E velho é descartável. Então ancião, é lixo.

Na cultura antiga, o idoso era visto com poderes espirituais notáveis, quase mágicos. Uma bênção proferida por um avô, era um decreto de prosperidade, de santidade. Um colóquio com o macróbio era sinal de sabedoria, de aprendizado, de reflexão. Hoje, o velho vale quanto pesa, ou melhor, quanto recebe de pensão. Um grande percentual de pessoas consegue suprir suas contas com a aposentadoria dos pais ou avós. E outra grande porção, administra os bens dos velhos, em parceria com o depósito de velhos, carinhosamente e gentilmente chamada de "Lar". Que lar, que nada. Lar é bem diferente disso. Lar é um lugar onde podem ser ouvidos gritos, choro, gargalhadas, queixas, elogios, gente insistindo na vez de ir ao banheiro, rezando, discutindo, aconselhando, negando conselhos. Isso é um lar. Então, até mesmo o significado de lar mudou. Mudou pra pior, é o que acho.

A beleza e a formosura da idade são guardadas nas gavetas do tempo. Antigas caixas de camisas ou sapatos, abarrotadas de fotografias. Excelente opção para sentir saudade, rir junto, ou emocionar-se, em tardes de chuva, visitando as lembranças dos instantâneos amarelados, e desbotados  pelo tempo. Beleza e formosura são raízes profundas, que dão vigor á árvore da existência, onde só o que se vê é o tronco, e no inverno, de muitas delas, a nudez do inverno, a casca grossa retorcida, as cicatrizes dos machados, e até de, talvez, uma marca antiga de um coração com duas iniciais dentro.

Formosura não diz respeito à imutabilidade da pele, mas ao frescor da alma. Vencemos o desprezo pelas pregas dos anos pelo perfume da vontade. Somos por demais, comparativos, e estamos sempre a comparar o presente, que somos, ao passado, que nos deixou. Por esta razão, perdemos tempo em lutar contra a velhice, em lugar de abraçá-la como algo que de fato nos representa. Não estamos envelhecendo. Estamos apenas caminhando dentro do nosso tempo.  Somos a civilização do consumo, e para consumo deve haver produção, e para que haja produção, são necessários braços fortes e pernas ágeis. Antigamente os velhos previam as chuvas e a estiagem. Hoje, o metabuscador resolveu tudo. Desaprendemos a fazer perguntas, porque antes mesmo de as formularmos, o sistema já nos apresenta opções de perguntas que nem mesmo sabíamos que poderiam ser feitas. Hoje as perguntas são mais ágeis que nossa capacidade de assimilação do enunciado das coisas. Nem mesmo sabem, muitas pessoas, o que é um enunciado.

Outro dia mesmo, fiz uma brincadeira em uma rede social, propondo um desafio, onde eu responderia a qualquer tipo de pergunta formulada, sem nenhuma exceção. Em poucas horas, respondi a várias perguntas. O meu espanto não era que eu sabia tais respostas, mas que as pessoas não tinham lido o enunciado de meu desafio: eu "responderia a qualquer pergunta formulada, por mais difícil que fosse". O que não entenderam é que eu não disse que sabia as respostas. Mas que responderia, e até um "essa eu não sei", seria uma resposta. Perdemos o enunciado da vida. perdemos a necessidade de fazer perguntas do modo correto, e muito menos de respondê-las, pois uma máquina nos precede nas respostas. Antes, eram os velhos quem respondiam as perguntas. Todas as perguntas. Hoje há mais velhos e menos perguntas a fazer.  Então, não somos nós que envelhecemos, mas a sociedade nos torna obsoletos pela falta de uso. A sociedade de nossa civilização binária, está completamente confusa, perdida, desamparada.

Não são apenas os velhos, os esquecidos (e que também se esquecem), mas os pequeninos, aqueles que choram, fazem birra, sujam fraldas, sujam roupas, as crianças, se alguém não lembra o que são estes espécimes. O Ser Humano inverteu os valores  e supriu de forma mais econômica e prática seus valores. Trocou pele por pelo. Passou a chamar cães e gatos de filhos, e filhos, se tornaram alunos. As crianças vão para as creches e aulas integrais, para serem educadas, em lugarem de serem instruídas, enquanto os pais vão para o trabalho, manicure, passeio com o animalzinho para que faça cocô e xixi nos jardins alheios. Lógico que manicure, empresa e compromissos são necessários, e isso não os torna irresponsáveis.

Quando éramos crianças (nós, os velhos), nossas mães e avós levavam um lanchinho na bolsa, porque sabiam que em algum momento, a fome ia atacar valendo. A fome continuou, e hoje basta um cartão de débito ou crédito, e um tablet. Assim, envelhecemos na obsolescência da vida, e então chega o medo. Ninguém quer envelhecer (ninguém, exceto eu), porque a velhice pressupõe a lembrança da morte. Eu penso diferente disso. Minha velhice pressupõe o perfume da eternidade.

Na sociedade moderna, a ciência avançou na cura e prolongamento da vida, mas não deu conta de ocupar a mente de quem teve a vida esticada pelos anos, e assim, este vazio existencial das pessoas. Esta falta de vontade de largar tudo e cair pela vizinhança ajudando a carpir uns lotes. Temos alimentos mais saudáveis, apesar da gritaria contra os agrotóxicos e transgênicos. Vivemos esta geração, dos transgênicos e dos transgêneros, porque, pelo primeiro, ou se muda a genética dos alimentos, para que sejam de gosto ruim para as pragas, ou se come apenas orgânicos, caros, inacessíveis, e insuficientes, ou morremos de fome. Ou carcinomas, que atacam pessoas (na maioria) acima de meio século, e isso não era assim antes. Não. Não era mesmo. As pessoas morriam de diarreia, verminose, difteria ou varíola aos quarenta anos, se tivessem a sorte de escaparem das doenças da infância. Mesmo assim, naquele tempo parecia ser melhor. Não era. Apenas éramos crianças, jovens, e a vida é sempre melhor quando temos sonhos para o futuro.

Os velhos ultrapassaram correndo pelo futuro, e quando perceberam, sua felicidade voltou a permanecer no passado, na infância, como um sonho em engenharia reversa. Eu mesmo, me pego sonhando e pensando, como seria bom se aqueles sonhos já sonhados tivessem dado certo. Aí sonhamos sobre o que faríamos com os sonhos que deram certo. Sonhar olhando pra trás. Quem nunca?

Eu gosto de envelhecer, e também gosto de pensar na eternidade, coisa que de certo modo, para ser atingida, temos que passar naquela portinha apertadinha, onde a obesidade do desânimo nos impede de atravessar. Mas temos que chegar lá, então não tenho medo de morrer, pois todos os meus medos acontecem apenas durante o tempo em que eu estiver vivo: sofrimento, dor, angústia, fome, etc. Estes medos são reais, mas o descanso solene, esse não. Mesmo porque, estou envelhecendo rápido demais. Não é opinião minha, mas dos espelhos que debocham de mim quando os enfrento. Morremos sempre que deixamos de sonhar, mesmo que seja pelos nossos sonhos que não chegaram a acontecer. Há quem morra em vida e passa anos nessa condição. Há quem viva esperando a morte chegar, com a boca escancarada sem nenhum dente mais. E há quem faça empréstimo da vida que corre em turbilhão, pela gritaria dos netos e palavreado chulo dos jovens, ou pelo prazer em delongas ao olhar o verde da mata, ou estasiar-se diante de um broto que rasga a casca dura da árvore, atento a cada detalhe, como se fosse o último de tantos que perdemos, porque o tempo não nos deu tempo, e avida nos tomou da vida, enquanto perdidos em nossas reminiscências, envelhecemos, a não poder mais.






domingo, 28 de julho de 2019

Romeu Dutra, Roberto Sperb, Rui Corso, A Freira que me odiava, e outros causos

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....Foto: Arquivo pessoal


João Romeu Dutra, ou Romeu Dutra, foi o primeiro Secretário de Turismo de Gramado, efetivamente com esse título, porque antes disso havia o COMTUR - Conselho Municipal de Turismo, e se não estou enganado, seu último titular foi o antigo membro do Consulado Britânico, Mr. George Edward Fox, ou Mr Fox, pelos amigos, e "Tio George", pelos escoteiros. Já comentei isso aqui, e pouco sei da biografia dele, então limito-me a falar do que conheço sobre meus personagens.

Romeu Dutra era professor de matemática no Ginásio Estadual de Gramado, ou Ginásio Estadual Noturno, o GEN, quando duas novas turmas foram criadas para o turno matutino e para isso, também o temível "Exame de Admissão", já comentado também. E assim, já doidinho por desafios, lá estava eu, com nove anos de idade, disposto a assentar-me junto aos grandes nas carteiras (à época, chamadas de classes mesmo), para enfrentar o Ginásio, período que ia após o quinto ano do primário. O Ginásio era de quatro anos, e depois disso, o "Científico". Romeu então, era inspetor de uma turma, onde eu estava, durante a prova.

Como e não havia feito o quinto ano primário, senão durante três meses de madrugadas estudando com minha mãe, professora, evidente que tinha coisas que eu apanhava muito. Ninguém pode pular uma etapa da vida, e eu pulei muitas. Entrei na escola primária aos seis anos, quando a lei exigia que fosse aos sete. Mas eu era alfabetizado desde os três anos, ora bolas! Então pular etapas era minha especialidade. Só que não

Estando eu tomando uma surra da raiz quadrada, durante a prova, Romeu passava várias vezes por mim, e dizia, baixinho: A resposta ali é tal...eu olhava pra ele com cara de: "Mas quem esse metido pensa que é para me dizer a resposta? Aposto que quer ferrar comigo, me passando resposta errada. E ainda insistia: Tu não vai escrever? Eu só olhava, com aquele "não te conheço", carimbado na testa. E mesmo assim, acho que foi ele quem corrigiu as provas, e me fez passar. Mas isso é uma suposição, uma remota hipótese, pois prefiro acreditar que meu conhecimento em matemática aproximar-me-ia de Einstein, ou de um ancestral distante meu, por parte de pai, Don Adam Ries, o grande matemático, o que foi definitivamente desmascarado quando entrei no ginásio, e aquela freira ignorante, minha professora desta disciplina, jamais compreendeu a dimensão das respostas e de meus cálculos, que excediam, transbordavam sua capacidade de perceber a sutileza de um 9 em lugar de um 7 e um 4, por exemplo. E assim, me ferrei na primeira série, na segunda série...

Tinha ainda aquele professor que,  segundo reza a lenda, atirava bolinhas de ranho no ouvido de quem dormia nas suas aulas. Mas este não chegou a ser meu professor. felizmente.

Já o Robertão, Professor de Ciências, Roberto Sperb, pegou implicância com minha pessoa, mas nunca prejudicou-me nas notas por isso. E nem precisava, pois as macaquices, herdadas de minha avó, trilhavam meu próprio caminho quase diário pela porta da rua, pra onde eu era mandado.
- Cardoso!
-Presente!
-Não tou te chamando. Vai pra rua!
- Mas eu nem fiz nada (ainda), professor!
- É pra nem começar a fazer! Hoje tou com nojo da tua cara!
E eu ia, feliz, brincar lá fora. Às vezes, ele mandava alguém pra fazer-me companhia.

Rui Corso, era um professor, baixinho, meio gago, que vinha de Caxias do Sul, lecionar Geografia, em Gramado. Bonachão como ele só (todos eram, na realidade), quando me botava pra fora de sala, pedia desculpas.

Tinha ainda a professora que eu amava, pela doçura e bondade: Dona Elinor Sevante! Professora de inglês, finíissima, elegante, e bondosa Isso tudo na primeira séria, logo após o banho de conhecimento na prova do exame de admissão.

Mas, como nem tudo são louros e flores, os espinhos vem junto. Uma freira, belíssima, mas dura e fria como mármore, lecionava matemática. Não dava moleza. Não era má pessoa, mas tinha uma frieza matemática (combinou). Certa ocasião, lembro que o Papa Paulo VI, aboliu o hábito dos religiosos, tornou-o optativo. E assim, Irmã Fulana de Tal, que usava sempre um hábito cinza, fez uma enquete na sala, sobre a possibilidade de que largasse o hábito e passasse a usar roupas civis. Foi quase unânime, exceto UM aluno, cujo Cláudio Sartor deixarei de fora o nome, que votou pela permanência do hábito religioso. No dia seguinte, veio ela, belíssima...de minissaia! Dali em diante, minhas notas de matemática pioraram muito. Paciência, não se pode ver tudo ao mesmo tempo: Coxas brancas ou nota alta no boletim. Minha mãe não entendeu bem a queda das notas, que não eram boas, chegaram quase ao zero absoluto.  Ah, o desgramado Cláudio  continuou com sua coleção de notas altas no boletim. Acho que eu devia ter votado com ele, sei lá.

Desintoxicando a Alma - Os chás da "Tia Ilizia"





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https://youtu.be/zJ5TpbCzd3Q


 Minha avó, Maria Elisa, tinha chá pra tudo. Chá de picão para os rins. Chá de "Erva de Bicho" para diurético. Chá de "Tanchagem (Tansagem)" como antinflamatório da garganta. Óleo de Capivara (que só ouvi falar, mas nunca a vi tomar), como fortificante, e para curar tuberculose. Ela insistia demais em tomar esse chá, nem faço ideia do porquê, pois tinha uma saúde de ferro, e nem resfriado pegava. Chá de flor de sabugueiro com avenca para a bronquite. Chá de "Paripariparova", chá de "Catinga de mulata", para fumentar um tornozelo virado, numa bacia com água quente e sal. Chá de cidró e "Massanilha" para sossegar o coração. Chá de folha de ameixeira européia (Néspera) como acompanhante de uma fatia de Pão-de-Ló com as visitas. Era muito chá. Chá de losna para problemas digestivos. Óleo de rícino para constipação, e tinha ainda o famoso Bálsamo Alemão, misturado em açúcar, mas sem beber água por uma hora, para prevenir todos os males de quem nunca se tinha ouvido falar.
Para tudo ela tinha um chá, uma receita, uma pomadinha, um emplastro de sabão com açúcar para furúnculos, tudo. Tudo tinha remédio. Tudo mesmo. Até para as dores da alma. Esta era a sua especialidade. Era conhecida nos quatro continentes, considerando que os quatro continentes ficassem a um raio de poucos quilômetros de sua casa. E nem só os chás, mas também os segredos para estancar a dor pela ferroada de um marimbondo, por exemplo. Certo dia, cheguei  em casa, aos prantos, porque o marimbondo havia ferroado meu bracinho fino. Imediatamente ela tomou uma bacia e me fez mijar dentro. Daí, com a mão mesmo, sem perder tempo, fazia conchinha com a mão, e esfregava meu mijinho no bracinho dolorido. Não sei quanto tempo levou, mas sei que hoje não dói mais, e nem lembro em qual braço foi.

Mas Maria Elisa, vulgo, "Tia Ilizia", sabia muito mais do que preparar chás ou curar ferroadas com mijo da própria vítima. Sabia ela, com sabedoria de gente velha, amaciar a dureza da alma das pessoas, e suavizar as dores do coração. Sabia porque entendia do assunto. Transferia sua própria dor para a panela onde fritava bolinhos, ou um feijão mexido, um "Tio Bento Ruivo" (farofa de ovo com farinha de mandioca), e na caneca onde preparava um chá de mate, feito com a erva do chimarrão, ao costume serrano de preparar. E desdas panelas, levava, em prato e caneca, ao paciente, que choramingava suas mágoas no canto da velha mesa de pinheiro. Enquanto comia e bebia, ela ia fazendo perguntas, e fazia com que a pessoa falasse tudo o que lhe vinha à lembrança, exceto o motivo da dor. Desta, maria Elisa tinha a perspicácia de pular a página, para as boas lembranças e bênçãos que receberam, no passado, os que choravam no presente, com medo do futuro.

- "O futuro, deixa que chegue sozinho, porque D-s (Deus) proverá!" - Dizia ela. A mistura do cozido com chá de mate, eram os chás que aliviavam a carga do desgosto de quem a procurava. Por vezes, nem procurá-la, era necessário, porque ela tinha uma percepção quase sobrenatural. Ela sabia ler expressões, e cheirava, com faro apurado, quando alguém guardava um soluço, por vergonha ou timidez.

- "Isso vai passar, meu filho! Deixe nas mãos de D-s!" - Ela repetia.
O "paciente" esquecia a tristeza, pelas risadas que ela arrancava, com suas palhaçadas e macaquices, e fazia isso, para que, sem perceber, fossem transferidas para ela, as nossas dores, pois ao final do dia, lá estava ela, soltando as tranças, de joelhos, citando caso por caso do que ouvira, e pedindo intervenção divina no caso. Suas orações eram intermináveis, pois cada vez a lista de pessoas aumentava mais a e mais. A gente passava perto do quarto, e ria de seu balbuciar quase audível: "Pscht, pscht, pscht, pscht...". E dê-lhe oração atrás de oração. Até que as duas tranças estivessem desfeitas, e entrava o pente em ação, e esfregada por esfregada, os longos cabelos brancos se transformavam num véu, caindo na altura da cintura, pois nunca foram cortados, e mais alguns instantes, a velha cama de tábuas, com colchão de palha, e só mais tarde, de espuma, abraçava-a por uma noite inteira do sono dos justos. O chá de cobertas servia para aplacar as suas próprias tristezas, e fortalecer seu espírito para o dia seguinte, que começava muito cedo, com mais uma rodada de "Pscht, pscht, pscht, pscht,,,".

PS* Ainda sobre chás, recordo que uma de nossas visitantes era a Senhora Amélia Kraemer, dona do laboratório com o mesmo nome, em Porto Alegre.
Dona Amélia, levava sempre junto duas coisas: Seu inseparável crochê, e uma sacola de frutas, e ao voltar, a sacola voltava junto cheia de cascas das frutas, que as enviava para o seu laboratório. Nada era desperdiçado.

sábado, 27 de julho de 2019

Tio Gêre - o Padrinho da criançada na Vila Moura




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Rádio Vintage muito semelhante ao rádio do Geremias. 

Pois tomei por missão pessoal, por dar certo valor à minha afeição às letras e às palavras, isso tudo, associado à parte que ainda funciona da minha memória, em resgatar certo período de minha vida, e neste particular, da infância, não apenas minha, mas de todas as pessoas que foram contemporâneas dos meus primos, os Moura, e aqui nestas memórias, do "Tio Gêre", título nobiliárquico dado ao solteirão convicto, Geremias Elias de Moura, e sua importância na minha formação familiar. E antes que acham que errei, é Geremias mesmo, com "G". Problema do escrivão analfabeto. Eis o causo!

Após o retorno à Gramado, minha família foi morar num ranchinho de tábuas de cerne de araucária, que até o presente momento, ainda compõem a casa que pertenceu á minha avó, Maria Elisa, naturalmente ampliada, pintada, e posteriormente vendida. Mas está lá, firme e forte. As mesmas tábuas que testemunharam tantas coisas. Mas não é este o caso, e sim que tal ranchinho foi construído num pedaço de terra pertencente aos primos Francisco Vaz Corrêa Filho (In memorian), e sua esposa, Cândida, irmã de Geremias e dos demais Moura. Havia certo receio de acolher minha família e alguns parentes, aos quais não nominareis, exceto nas coisas boas que fizeram, que apresentaram forte oposição à que minha família fosse assentada próximo deles, ao que Cândida e Francisco fizeram impor sua autoridade sobre seu patrimônio, e disseram: "Não iremos deixar nossa tia, e nossos primos dormirem na rua. O terreno é nosso, e eles podem construir sua casa nele até que deem a volta e comprem seu próprio terreno. Atitude de coragem, e assim foi. O tancho foi construído pelos primos Ananísio Elias de Moura, chamado de "Ananias" (In Memorian), e Orlando Alves de Moraes, um primo de minha avó.

Minha avó foi trabalhar em um restaurante, no Motel Balneário (Motel, naquele tempo não tinha a mesma conotação de hoje. Era apenas um pequeno hotel ou pousada), como auxiliar de cozinha. lavar louças, panelas, toalhas, etc, do Restaurante, pertencente à Família Nelz, mas que era arrendado ao casal Rost, Armando e Lourdes. Minha mãe, voltou a estudar e recebeu emprego de Professora Primária. Meu tio Samuel, então com cerca de 8 ou 9 anos, já trabalhava descascando vime, ou limpando frutas nas fábricas locais. Esaú, (In Memorian), o irmão do meio, trabalhava em serrarias, ou empreiteiras, como ajudante, e mais tarde, motorista de caminhões. E eu, comia as quaresmas, e os restos de comida que minha avó trazia, deixando sempre a melhor parte pra mim, e comendo o resto do resto.

Pois foi nesse tempo que, já sem pai ou avô, figuras masculinas importantes na formação de uma criança, que meu saudoso primo "Gêre" (In memorian), adotou-me como seu fiel escudeiro. Foi com ele e Saulo, seu irmão especial (Downiano), que aprendi a tomar chimarrão, todos os dias, antes do almoço, enquanto Tia Zezé (Maria José de Moura)(In Memorian), concluía o preparo do almoço. Ah, que cehiro saía daquelas panelas. Feijão, arroz, batatas, couve, carne, moranga, e como sobremesa, que sempre variava, uma moranga caramelada, uma batata doce, acompanhados de leite gordo, de uma vaca que tinham.

Poucos anos depois, minha avó comprou um minúsculo terreno, mais acima, ao lado de onde hoje fica o mercado Rissul, e onde está um dos prédios em ruínas do extinto Artesanato Gramadense (ainda contarei muita coisa deste lugar e pessoas relacionadas, se D-s quiser), do primo Elias Francisco de Moura (In memorian), e ali assentou nossa casinha, já um pouco maior. e mais confortável. Nesse tempo, nos fins de semana, eu passava com Geremias, Tia Zezé, e Saulo, e no sábado, ia com ele para o lugar que chamava de "Chácara", uma pequenina lavoura e pomar, onde tenho as melhores lembranças da infãncia. Passávamos o sábado à tarde lá, e eu o ajudava na lavoura. No meio da tarde, Tia Zezé levava uma cesta repleta de guloseimas com café, e a chamava de "Fristique", do alemão Frühstück, e do yídish:  פֿרישטיק (Lembra que já contei que descendemos de judeus? Pois é! Algumas palavras e costumes, permaneceram no inconsciente dos nossos antigos). Ao final do dia, ele me dava uns trocadinhos, com os quais, eu ia ao matineé, no domingo á tarde, com meus amigos.

Geremias não foi especial apenas pra mim, mas todos os sobrinhos e amigos, eram apaixonados por ele. Chegou a montar uma playground todo de madeira, com escorregador, balanços e gangorra, para a diversão da piazada da Vila Moura.

Divertido, brincalhão, e sempre sorridente, Geremias caminhava segurando a cuia, na mão, e a garrafa térmica debaixo do braço, servindo mate à todos. De sua chácara, lembro das frutas que gostava: Pêssego, maçã, tangerina, e principalmente uva, ao seu tempo cada uma. Havia porém uma frutinha não plantada, que produzia o ano todo: eram os "Moranguinhos de Sapo", um morango silvestre, com pouco  açúcar, mas deliciosos quando preparados com açúcar e égua, comidos de colherinha.

Outras frutas que comíamos em sua propriedades, à vontade, sem restrição alguma, eram Guabiroba "Gavirova", Araçá, Pinhão, Goiaba serrana, e quaresma do mato. Uma vez por ano, Geremias e seus irmãos se reuniam num certo domingo, e à sombra de um colossal pinheiro Araucária, abriam uma vala, e ali faziam um churrasco para toda a família. Toda mesmo. Eram algumas dezenas de sobrinhos e agregados que compareciam. E eu era convidado especial. Estas coisas são difíceis de esquecer. E também nem quero.

Ao mio dia, ouvíamos as notícias, em seu rádio à pilha com capa de couro, enquanto mateávamos á espera do almoço que fumegava no fogão á lenha de Tia Zezé, fazendo bailar perfumes que iam do feijão, da couve, da carne de panela, da massa caseira refogada na cebola frita, e no café coado, para acompanhar as refeições.

Geremias tinha um fusca 1961 ou 1962, não tenho certeza. Verde. original. Com porta-luvas feito de bambu com telinhas de cordão como prateleira. Bem velhinho. Isso foi depois da velha bicicleta preta, que era estacionada em uma pequenina casinha que ficava na metade do morro da descida para sua casa. Mais ou menos a uns 200 metros da estrada principal, e outros 300 metros de sua casa, lá embaixo. A casinha era fechada com uma tramela, e só isso. Nunca foi roubada. Parece fantasia isso, não é verdade? Pois era assim mesmo. A casinha que servia para nosso esconderijo nas brincadeiras de "mocinho e bandido", com a "primaiada" toda. Mas, voltando ao tal fusquinha verde, velhinho, fedido, perguntei a ele a razão de não trocá-lo por um carro mais novo. Respondeu que dinheiro não lhe faltava para comprar outro carro melhor, mas a verdade era que com aquele carro ele levava os pobres, os bêbados, as moças de pouco prestígio, e não precisava se importar com cuidados de asseio no autinho velho, e que ele gostava de servir aos outros, gostava duma festinha com uma e outra  daquelas moças, gostava de levar seus pobres de cá pra lá, e que em um carro novo, ele passaria a preocupar-se mais com o carro do que com o bem estar das pessoas.

Geremias não era um sujeito religioso, mas também não era nenhum desgarrado da fé. Tinha seu lugar em sua congregação Metodista, e eram frequentes as visitas de pastores e membros de sua comunidade repartindo um almoço ou um churrasco, ou tomando uma taça de bom vinho que fazia em companhia do amigo Giovani Pizetta. E por falar no Pizetta, vou encerrar este capítulos de meu saudoso primo com um episódio divertido que presenciei.

Uma vez ao ano, Pizetta ia à casa do Geremias, para auxiliá-lo no preparo do vinho, de suas parreiras. E certo sábado, após o almoço, chega á casa o Pizetta, muito educado, com forte sotaque italiano, mas de um bom português gramatical, e com a mesma educação pergunta ao meu querido primo Saulo, um menino especial, de quem já falei):

_ O Geremias está?
Saulo, mais que prontamente, em sua inocência hospitaleira, responde à queima-roupa:
- Celemia tá cagando!

Pizetta, em um sorriso, esperou Geremias chegar. E fomos preparar o vinho.
Mais tarde, lembrando e achando graça da situação, contei ao Geremias. Ele respondeu-me:
- O Saulo é um bobaião. Eu estava só escovando os dentes.

Geremias era uns trinta anos mais velho que eu, mas por essas coisas da vida, entramos no Ginásio juntos, em 1968. Na época era feito um exame de admissão, após o quinto ano primário. Eu não fiz o quinto ano. Apenas presteis os exames, e passei em todos, pois fiz exame de admissão com nove anos de idade, e passei. E neste ano, entraram comigo, além do Geremias, também outras pessoas de mais idade, como Dona Nadir Reis, Antoninho Moreira, Hortêncio Gil, e outros, que um dia vou lembrar quem eram.

Por hoje chega, mas tem muito mais. No ano seguinte, se não falha a memória, Geremias tornou-se Presidente do grêmio Estudantil, e fez uma revolução positiva em sua gestão. Organizou festas, rifas, livro ouro, e conseguiu recursos para construir uma quadra de esportes, e montou uma banda marcial com 96 componentes, com todos os instrumentos, uniformes, maestro, e tudo o que uma banda tinha direito. E lamento informar que na minha gestão, muitos anos depois, tive que extinguir a banda, porque quase todo o dinheiro arrecadado pelo Grêmio estudantil, ia para um saco sem fundo da banda, que já estava aos pedaços, e não havia mais como recuperá-la e ainda fazer uma gestão saudável para os estudantes. Mas isso é tema para outra prosa. Vale dizer que Geremias modernizou o atendimento da cantina da escola, e fez muitas outras coisas, que a memória gentil dos ingratos tratou de enterrar no vazio. Felizmente eu ainda lembro disso, e certamente seus contemporâneos também haverão de lembrar.

Geremias era apolítico, e estimado por todos, inclusive os políticos. Tive a infelicidade, mas também a honra de acompanhar seus últimos dias, em 1983, mesmo moribundo, ainda brincalhão e risonho, cercado de irmãos e amigos. Chorei o quanto foi preciso chorar a minha perda, mas guardei tanta e tão boas lembranças que o mínimo que devo à ele, pelo carinho que teve por mim, é contar sua história, como espero que um dia, talvez dentro de uns 40 anos após o meu descanso, alguém também conte a minha, que nem é tão interessante assim.






sexta-feira, 19 de julho de 2019

O diabo se vestia de preto - Causos e coisas de minhas memórias

A imagem pode conter: 2 pessoas, pessoas em pé, sapatos, criança e atividades ao ar livre
Foto: Cilo Beux (Eu e meu primo Decio, lá pelos idos de 1961 ou 62)

Pra quem não acredita no diabo, pois saibam que ele existe, é mau, e faz "bem feito" seu trabalho, quando quer, e como sempre quer, então, sobram os respingos da infância roubada de muitas crianças pelo mundo afora. No tempo em que se fala de violência doméstica, dizendo que é um "sinal dos tempos", o que eu também acho que seja, mas estes tempos já começaram há bem mais tempo que parece. O que mudou, é que hoje a imprensa, as ideologias, que se beneficiam da desgraça para buscarem prosélitos pelo ódio e não pela esperança, fazem proliferar pelas redes sociais as histórias escabrosas, pérfidas, satânicas, das coisas que acontecem.

Pois o caso deu-se quando, após uma tragédia em família, lá nos cafundós onde eu nasci, minha avó voltou para sua terra natal, Gramado, levando junto os filhos: Minha mãe, e seus dois irmãos, e o traste que vos tecla, então, com cerca de um ano de idade. Pois nesse ínterim, entre a tragédia (que irei poupá-los de conhecer, por ora), e a construção de um ranchinho de tábuas velhas em terreno emprestado de parentes, minha mãe precisou deixar-me aos cuidados do demônio, disfarçado de tia de minha mãe. Vou tentar descrever um pouco do mau caráter do toco seco com duas pernas finas e um nariz afilado e longo, amparado por um olhar ruim, e uma voz angustiante, cuja expressão favorita era, em tom de espanto: "Mistério!". repetia isso a cada coisa que se dizia. Tudo era mistério, pavor, espanto. A Tia Margarida, a quem as ciganas chamavam de "Tia Margurita", para provocá-la. A mesma que anos mais tarde, ofereceu-me melancia, e dizendo que eu havia tomado leite, tirou da minha boca o pedaço guardou no armário para que eu não comesse. Mas o causo começa bem antes. Vou contar-lhes o que sei.

Quando ainda jovem, recém casada, com o Arcílio, conhecido por Alcides, ela encheu a barriga, por baixo do vestido preto que sempre usava, com trapos, dando a impressão de uma gravidez, que nunca aconteceu, para que o marido não fosse convocado a servir o Exército, em tempos de revolução (lá por 1923). Pois o traste tanto infernizou a vida de meus avós, que eram proprietários de terras, onde hoje se localiza a Expo Gramado, e todo aquele morro, num total de 50 hectares, que, acompanhados de minha bisavó, venderam sua parte na herança, e foram embora. Como nêmades, passaram por várias terras (Canastra, onde tinham armazém e moinho, destruido por uma inundação), Barragem do Salto, onte também tinham armazém que vendia fiado aos contrutores da barragem, cuja empresa faliu, e com isso, arrastou meus avós a buscarem outras terras lá por São Fancisco de Paula, e finalizaram onde nasci, na costa do Rio das Antas, um lugarejo chamado "Serra do Pinhão", nas proximidades de Cazuza Ferreira.

Pois lá, após a tragédia de que falei, uma carreta de mulas transportou as tábuas do rancho e suas matolotagens (pertences sem valor0, junto com a família destroçada, e o escriba do presente causo. E assim, minha mãe precisou deixar-me aos cuidados de alguém, para auxiliar a família nas arrumações da nova vida. E a escolhida foi a tal Tia Margarida, que de imediato pegou afeição pelo pacotinho que mijava nas fraldas, e enquanto minha mãe estava ausente, a velha se desmanchava em alegria. Até meu nome foi trocado, pois pela minha certidão de batismo católico (sim senhor, já me fizeram católico por conta de meu pai que seguia essa tradição), era chamado de "Paulo Calso Cardoso Borges dos Reis". A velha, porém não gostou do nome, e deu-me o nome de "Hugo Luís da Silva". Levou-me ao médico, o saudoso Dr. Erico Albrecht, e deu este nome na ficha de pacientes. (Anos mais tarde, quando trabalhei por duas vezes no hospital, contei a história, e perguntei ao Dr Erico, se ainda existia tal ficha. Ele riu, e disse que sabia quem era minha família, eram amigos, e conhecia a história, pois meu avô Assis Brasil, falecera sob seus cuidados, naquele mesmo hospital dias antes, e não deu bola pra velha maluca).

Alguns dias mais tarde, minha mãe foi visitar-me, e nesta ocasião, a velha recebia outras pessoas também. Serviu à todos, um lauto café com mistura, acompanhado de um queijo serrano, comum à época. Todos comiam e conversavam, felizes, e o futuro escriba engatinhava pelo chão, próximo à mãe. A velha, então, descasca o queijo para as visitas, e atira ao chão as casquinhas para que eu comesse. Minha mãe, ao ver aquilo, recolheu as cascas, e trocou pelo queijo servido à ela, comendo em meu lugar as casquinhas. A velha Margarida, contrariada, disse que não deveria fazer aquilo, porque o guri precisava aprender, ao que minha mãe a contradisse, dizendo que ela não permitiria que seu menino comesse cascas de queijo, enquanto ela comesse o miolo da iguaria. Suas palavras foram:
- "Meu filho não precisa comer isso. Deixe que eu como, Belzebu, digo, Tia Margarida" (Aditivo maligno acrescentado por minha conta).
- "Meu filho?" - Esbravejou a velha. Tu disse "meu filho? Pois se é "teu filho", leva essa sarna daqui!". E ela levou mesmo.


Poucos anos se passaram, e a velha, que não deixou de remoer o podio por aquela desfeita, tratou de resolver a situação, e adotou um lindo menino (o garboso da foto, com chapeuzinho), para mostrar à minha família, "como é que se criava uma criança".

Anos mais se passaram, e minha mãe, professora de nós dois na Escola Olidio Moura, certo dia, recebeu o menino, atrasado, cabisbaixo, e meio choroso, que entrou e foi assentar-se no fundo da sala, sozinho. Minha mãe, percebeu que havia algo errado, e o chamou para fora, pois percebeu manchas na sua camisa branca, tipo "Volta ao Mundo" (quem tem mais de 60 anos saberá o que eram), e pediu que ele tirasse a camisa e mostrasse as costas. Estavam lanhadas de marcas de cinta, de tanto apanhar.

Para bater nele, a velha fazia assim: segurava o menino, enquanto o velho Arcílio, já entrevado,assentado em uma cadeira de palha, batia com uma cinta, um pedaço de pau, uma vara, ou o que estivesse ao seu alcance.

Minha mãe tomou alguma providência, junto à família e um primo, Elias Francisco, assumiu a tutoria da criança, pois era o inventariante e auxiliava os velhos, o que o fez até que tivesse ido se preparar para o juízo final. Depois deu ao moço, anos mais tarde, sua parte na herança, e nunca mais ouvi falar dele. Uma pena, Um grande amigo e primo, que penou as penas cuja única culpa eram da velha diaba que vestia de preto.

No dia que morreu, o traste, os pertences foram inventariados, segundo seu desejo, e lá para minha casa, foi enviado um belíssimo relógio de parede, ao qual minha avó mandou ser devolvido imediatamente, pois só o ouvir das batidas das horas lembrava cada ato de maldade da velha. Fiquei meio triste, porque eu tinha planos de desmontar o relógio, para ver como funcionava. Paciência. É dura, mas esta é a história que vale a pena ser lembrada, pois aquela descgraça serviu para que minha família  fosse unida. Pelo menos por algum tempo. Mas foram bons tempos. Livres do feixe de urtigas vestido de preto, com um lenço também preto, amarrado á cabeça. Cabeça que só serviu para imaginar maldades, e depois dizer: "Mistério!"




quarta-feira, 17 de julho de 2019

Uma prosa pra ser contada (Poema)



Uma prosa pra ser contada
Paulo Cardoso


No frio  inverno do tempo,
me tapei de solidão
vesti um manto de aurora,
me enrodilhei na geada
prendi saudades no laço
fiz das esperança uma estrada.

No frio minuano da sorte
vi que a morte já é lembrada
ainda que venha tarde
chegando devagarito,
sorrateira, sem alarde,
é o doce amargo que arde
a acidez do limão
o beijo com gosto de adeus,
o frio aperto de mão.

Atravessei madrugadas
conversando com as estrelas
mateei com primaveras
eram chinocas faceiras
enfeitadas de quimeras.

Bebi orvalho na guampa
redesenhando a estampa
do tempo que lá ficou.

No bornal eu levo os sonhos
nos braços, a prenda amada
no peito carrego, dentro
uma paixão esquecida
um amor correspondido
e uma dor, que é quase nada.

Branqueiam os campos  da história
nas melenas invernais
tempos que se abraçaram no vento
coisas que não voltam mais.
Brandindo a adaga da sorte
eu me recolho no pala
que é rancho de quem  se foi
bebo a água da sanga
durmo da relva sagrada
a Santa Ceia do boi.


Aqui me guardo pra história
e me visto de verdade
o meu canto é de saudade
dos velhos tempos de glória.
Vivencio aquilo que lembro
e invento o que não sei mais
pero ainda sou capaz
de retomar uma prosa
como um moço que se declara
à sua prenda formosa.

Aqui deixo meu epitáfio
que vou carregar muito em vida
sou valente e não covarde
porque o mesmo aço que arde
no tilintar da peleia
é o ferro que depois corta
a terra que dá a ceia
e como aço e ferro batido
mesmo que ainda ferido
hei de lutar com bravura
se for chamado pra justa
pois a única coisa que me assusta
é morrer sem ter vivido.




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