AD SENSE

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Velho, meu querido velho....



Envelhecer é um mistério. Um daqueles mistérios tão grandes, quanto o mistério de nascer, ou acordar. Nascer, porém, são compreensíveis, porque é onde se abrem as cortinas para o espetáculo da vida. Despertar, é onde há o medo e o mistério do dia que nos espera. Mas envelhecer não tem mais nada disso, não. Envelhecer é um conjunto de mistérios que se abraçam desesperadamente ao desconhecido para formularem suas esperanças e sublimarem seus medos.

Envelhecer é algo vergonhoso para a civilização moderna, ocidental ou oriental, isso já tanto faz, em nossos dias. Já não se envelhece mais como antigamente. Nosso envelhecer é visto de duas formas, e em tempos diferentes, de uma terceira forma. Na leitura antiga, a palavra "ancião" tinha certa reverência. Hoje, significa apenas "velho". E velho é descartável. Então ancião, é lixo.

Na cultura antiga, o idoso era visto com poderes espirituais notáveis, quase mágicos. Uma bênção proferida por um avô, era um decreto de prosperidade, de santidade. Um colóquio com o macróbio era sinal de sabedoria, de aprendizado, de reflexão. Hoje, o velho vale quanto pesa, ou melhor, quanto recebe de pensão. Um grande percentual de pessoas consegue suprir suas contas com a aposentadoria dos pais ou avós. E outra grande porção, administra os bens dos velhos, em parceria com o depósito de velhos, carinhosamente e gentilmente chamada de "Lar". Que lar, que nada. Lar é bem diferente disso. Lar é um lugar onde podem ser ouvidos gritos, choro, gargalhadas, queixas, elogios, gente insistindo na vez de ir ao banheiro, rezando, discutindo, aconselhando, negando conselhos. Isso é um lar. Então, até mesmo o significado de lar mudou. Mudou pra pior, é o que acho.

A beleza e a formosura da idade são guardadas nas gavetas do tempo. Antigas caixas de camisas ou sapatos, abarrotadas de fotografias. Excelente opção para sentir saudade, rir junto, ou emocionar-se, em tardes de chuva, visitando as lembranças dos instantâneos amarelados, e desbotados  pelo tempo. Beleza e formosura são raízes profundas, que dão vigor á árvore da existência, onde só o que se vê é o tronco, e no inverno, de muitas delas, a nudez do inverno, a casca grossa retorcida, as cicatrizes dos machados, e até de, talvez, uma marca antiga de um coração com duas iniciais dentro.

Formosura não diz respeito à imutabilidade da pele, mas ao frescor da alma. Vencemos o desprezo pelas pregas dos anos pelo perfume da vontade. Somos por demais, comparativos, e estamos sempre a comparar o presente, que somos, ao passado, que nos deixou. Por esta razão, perdemos tempo em lutar contra a velhice, em lugar de abraçá-la como algo que de fato nos representa. Não estamos envelhecendo. Estamos apenas caminhando dentro do nosso tempo.  Somos a civilização do consumo, e para consumo deve haver produção, e para que haja produção, são necessários braços fortes e pernas ágeis. Antigamente os velhos previam as chuvas e a estiagem. Hoje, o metabuscador resolveu tudo. Desaprendemos a fazer perguntas, porque antes mesmo de as formularmos, o sistema já nos apresenta opções de perguntas que nem mesmo sabíamos que poderiam ser feitas. Hoje as perguntas são mais ágeis que nossa capacidade de assimilação do enunciado das coisas. Nem mesmo sabem, muitas pessoas, o que é um enunciado.

Outro dia mesmo, fiz uma brincadeira em uma rede social, propondo um desafio, onde eu responderia a qualquer tipo de pergunta formulada, sem nenhuma exceção. Em poucas horas, respondi a várias perguntas. O meu espanto não era que eu sabia tais respostas, mas que as pessoas não tinham lido o enunciado de meu desafio: eu "responderia a qualquer pergunta formulada, por mais difícil que fosse". O que não entenderam é que eu não disse que sabia as respostas. Mas que responderia, e até um "essa eu não sei", seria uma resposta. Perdemos o enunciado da vida. perdemos a necessidade de fazer perguntas do modo correto, e muito menos de respondê-las, pois uma máquina nos precede nas respostas. Antes, eram os velhos quem respondiam as perguntas. Todas as perguntas. Hoje há mais velhos e menos perguntas a fazer.  Então, não somos nós que envelhecemos, mas a sociedade nos torna obsoletos pela falta de uso. A sociedade de nossa civilização binária, está completamente confusa, perdida, desamparada.

Não são apenas os velhos, os esquecidos (e que também se esquecem), mas os pequeninos, aqueles que choram, fazem birra, sujam fraldas, sujam roupas, as crianças, se alguém não lembra o que são estes espécimes. O Ser Humano inverteu os valores  e supriu de forma mais econômica e prática seus valores. Trocou pele por pelo. Passou a chamar cães e gatos de filhos, e filhos, se tornaram alunos. As crianças vão para as creches e aulas integrais, para serem educadas, em lugarem de serem instruídas, enquanto os pais vão para o trabalho, manicure, passeio com o animalzinho para que faça cocô e xixi nos jardins alheios. Lógico que manicure, empresa e compromissos são necessários, e isso não os torna irresponsáveis.

Quando éramos crianças (nós, os velhos), nossas mães e avós levavam um lanchinho na bolsa, porque sabiam que em algum momento, a fome ia atacar valendo. A fome continuou, e hoje basta um cartão de débito ou crédito, e um tablet. Assim, envelhecemos na obsolescência da vida, e então chega o medo. Ninguém quer envelhecer (ninguém, exceto eu), porque a velhice pressupõe a lembrança da morte. Eu penso diferente disso. Minha velhice pressupõe o perfume da eternidade.

Na sociedade moderna, a ciência avançou na cura e prolongamento da vida, mas não deu conta de ocupar a mente de quem teve a vida esticada pelos anos, e assim, este vazio existencial das pessoas. Esta falta de vontade de largar tudo e cair pela vizinhança ajudando a carpir uns lotes. Temos alimentos mais saudáveis, apesar da gritaria contra os agrotóxicos e transgênicos. Vivemos esta geração, dos transgênicos e dos transgêneros, porque, pelo primeiro, ou se muda a genética dos alimentos, para que sejam de gosto ruim para as pragas, ou se come apenas orgânicos, caros, inacessíveis, e insuficientes, ou morremos de fome. Ou carcinomas, que atacam pessoas (na maioria) acima de meio século, e isso não era assim antes. Não. Não era mesmo. As pessoas morriam de diarreia, verminose, difteria ou varíola aos quarenta anos, se tivessem a sorte de escaparem das doenças da infância. Mesmo assim, naquele tempo parecia ser melhor. Não era. Apenas éramos crianças, jovens, e a vida é sempre melhor quando temos sonhos para o futuro.

Os velhos ultrapassaram correndo pelo futuro, e quando perceberam, sua felicidade voltou a permanecer no passado, na infância, como um sonho em engenharia reversa. Eu mesmo, me pego sonhando e pensando, como seria bom se aqueles sonhos já sonhados tivessem dado certo. Aí sonhamos sobre o que faríamos com os sonhos que deram certo. Sonhar olhando pra trás. Quem nunca?

Eu gosto de envelhecer, e também gosto de pensar na eternidade, coisa que de certo modo, para ser atingida, temos que passar naquela portinha apertadinha, onde a obesidade do desânimo nos impede de atravessar. Mas temos que chegar lá, então não tenho medo de morrer, pois todos os meus medos acontecem apenas durante o tempo em que eu estiver vivo: sofrimento, dor, angústia, fome, etc. Estes medos são reais, mas o descanso solene, esse não. Mesmo porque, estou envelhecendo rápido demais. Não é opinião minha, mas dos espelhos que debocham de mim quando os enfrento. Morremos sempre que deixamos de sonhar, mesmo que seja pelos nossos sonhos que não chegaram a acontecer. Há quem morra em vida e passa anos nessa condição. Há quem viva esperando a morte chegar, com a boca escancarada sem nenhum dente mais. E há quem faça empréstimo da vida que corre em turbilhão, pela gritaria dos netos e palavreado chulo dos jovens, ou pelo prazer em delongas ao olhar o verde da mata, ou estasiar-se diante de um broto que rasga a casca dura da árvore, atento a cada detalhe, como se fosse o último de tantos que perdemos, porque o tempo não nos deu tempo, e avida nos tomou da vida, enquanto perdidos em nossas reminiscências, envelhecemos, a não poder mais.






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