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terça-feira, 1 de julho de 2025

A Serpente e o Gambá (Fábula)

 








**A Serpente e o Gambá – Fábula**

Pacard

No tempo em que os bichos falavam, vivia um velho gambá em sua toca, que passava os dias dormindo e, à noite, saía à procura de sustento para sua ninhada.

Entravam e saíam os dias, e o velho gambá saía troteando pelas veredas em busca de algum ninho esquecido, para roubar os ovos, ou de uma fresta no galinheiro, para refestelar-se com uma galinha gorda. Esta era a vidinha daquele gambá — e de todos os gambás: comer, dormir, reproduzir e deixar a vida seguir seu curso, assim como o Criador havia determinado desde a Criação, tempos atrás.

Havia, próximo a um parreiral — onde o gambazinho apreciava, no verão, subir entre os galhos para comer saborosas uvas —, um velho tronco caído, onde, no oco da madeira, vivia uma também velha serpente. Passava todos os dias o gambá perto do tronco, cheirava, sorrateiro, e, pressentindo o perigo, saía de mansinho, sem incomodar a astuta moradora do lugar.

Ocorre que o verão estava terminando e a temporada de caça da velha serpente não havia sido muito promissora. Além disso, estava muito velha para abandonar sua toca e sair em busca de caça em lugares mais distantes, como fazia quando era jovem. E, como via o gambá passar todos os dias à sua frente, engendrou um plano para fazer dele seu abastecimento para o inverno, que prometia ser rigoroso.

Com isso em mente, passou a espreitá-lo todas as noites, enquanto o marsupial passava e, como de costume, dava sua cheiradinha no tronco antes de seguir caminho. Noite após noite, um e outro se espreitavam, até que um dia a cobra velha decidiu executar seu plano alimentar e colocou-se, estrategicamente, à espera do peludo.

Naquela noite, porém, o velho gambá também havia mudado seus planos. Estava a pensar em mudar de dieta. Precisava de proteínas, pois o inverno prometia ser rigoroso naquele ano. E uvas, apesar de deliciosas, não ofereciam as proteínas das quais necessitava para enfrentar o rigor do frio. Decidiu, então, que a velha moradora do tronco estava no tamanho certo para ser devorada. E passou ele também a espreitar sua comida rastejante, engendrando um plano de ação. E assim, um e outro, desconfiados e sorrateiros, lambiam os beiços quando sentiam a presença um do outro ao anoitecer.

Mas o gambá, por perambular mais que a serpente, também tinha mais amigos. Pelo bem da verdade, o gambá tinha muitos amigos; já a serpente, nenhum. Era temida e sorrateira, e por isso evitada. Muito egoísta, quando abatia uma presa, seu veneno mortal impedia que outros bichos partilhassem de seu refestelo.

Era vizinho do gambá um velho lagarto que, por sua natureza, não fazia parte da cadeia alimentar do gambá, e vice-versa. Mas de ambos, a serpente era inimiga — e, ao paladar de ambos, uma iguaria. E assim sendo, e diante das necessidades de um e de outro, que também sofriam os rigores do inverno, entraram num acordo: iriam dividir a cobra velha. E, sendo esperto como era, o gambazinho planejou a coisa. E assim feito, aguardaram o momento certo para o seu banquete acontecer.

Noite de lua cheia — ótima para sair em busca de comida. E lá estava o gambazinho passando perto do tronco. De longe, passava cantarolando na língua dos gambás. Atenta, a serpente pensou: “Lá vem ele. Vou deixar a cauda balançando do lado de fora e, quando ele der uma mordida, eu pulo em cima dele.” E assim fez. Deixou a cauda ali, balançando ao brilho do luar. De repente, percebe que alguma coisa tocou nela e, de pronto, saltou em cima do agressor. Mas... ah, mundo cão esse! O agressor não era um gambá, mas sim seu pior pesadelo: o velho lagarto faminto, que deu uma lambada com sua cauda e esticou a jararaca com um único golpe. E assim, feliz com sua porção, deixou metade da cobra para o gambá, que estava logo atrás e, de quebra, ainda ficou com a toca da serpente — bem mais confortável e quentinha.

**Moral da história:**

Por mais veneno que tenham suas peçonhas, nenhuma cobra velha terá perspicácia, veneno ou força para vencer a união da floresta, que também sente fome, mas tem a sabedoria de unir-se em prol de um inimigo comum.

*A propósito: o gambá poderia ter matado a cobra sozinho, se quisesse.*

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domingo, 29 de junho de 2025

Eu queria ter sido sapateiro (ou astronauta)












Imagem IA

Não é lorota não. Eu queria mesmo ter sido um sapateiro. Óbvio, que a primeira opção, astronauta, poderia ser um bico, um extra, mas sapateiro seria minha primeira opção profissional. Minha avó, Maria Elisa, tinha muita vontade que eu fosse lenheiro, desses que andavam num carrinho que era ao mesmo tempo uma serra circular grande, barulhentas, que os lenheiros usavam como veículo para levá-los (e também a serra) às casas, onde eram justados (ah, tá, quem me lê nem sempre vai saber que "justar" era o mesmo que "contratar") para cortarem as lenhas, que eram compradas em metro, cujas toras tinham um metro linear cada. Bem estes eram os lenheiros, que em seus pequenos galpões, tinham seus próprios estoques de lenha, e vendiam em "Talhas, isto é, em pequenas quantidades de oitenta unidades, já rachadas e prontas para uso. Ela dizia: "Tu precisa ter um raminho de negócio, e uma lenheira vale a pena. Eu te ajudo a adquirir a serra com carrinho, se tu quiser!" Eu nunca quis. Achava meio chulo aquilo. Eu pensava em estudar, me formar médico, e rachar lenha não combinava com medicina. Eu achava que aquilo nunca ia dar dinheiro. Eu achava. Já os lenheiros que conheci ao longo da vida (por exemplo, o cara da Kombi que levava meus filhos na escola, se tornou lenheiro, e a última notícia que tive dele, era dono de um hotel, um edifício, e sei lá o que mais...), se tornaram bem sucedidos economicamente. E eu? Não cursei medicina, como sonhava.Não virei astronauta. Não me tornei presidente dos Estados Unidos, nem nunca pude salvar o mundo com minha capa de herói feita de toalha de saco de açúcar. Apenas segui outros rumos. Muitos outros.

Mas contei essa embromação toda pra dizer que na verdade, eu queria mesmo era ter sido um sapateiro. Não um fabricante de caçados, por onde até passei uma temporada como gerente de vendas de uma indústria de calçados femininos de luxo, mas não. Meu sonho de consumo era ter sido sapateiro mesmo, daqueles que passam os dias sentadinho num banquinho, com um avental de couro surrado sujo de cola, ao lado de um velho cepo de madeira, batendo e costurando sola, e esticando gáspea para moldar na forma velhos sapatos rotos, cuja grande façanha era colocar meia sola e retocar as costuras e pintura, para que fosse usado outro tanto de tempo, até que nem mais meia sola desse conta do tempo que o fez ruir.

Meu sonho era trabalhar num cantinho semi-iluminado por uma lâmpada com aquela chave que vira e liga na própria lâmpada, pendurada bem próximo ao cepo, e ao lado, um velho fogãozinho de ferro onde crepitassem brasas para aquecer a cola, o bule de café coado, e as tardes chuvosas de onde cresci. Mais que isso, ao lado do fogãozinho, em uma caixinha de madeira forrada com trapos, dormisse um gato e um cusco viralatas, preguiçosos, que vez por outra levantavam para mordiscar uns petiscos, esfregarem-se nas pernas das pessoas, e voltarem a ressonar até dizerem chega.

Meu sonho era atender velhas senhoras e alquebrados anciãos, que ao chegarem ao balcão, comentassem sobre o chuvisqueiro atravessado, queixarem-se de dores nas "cadeiras", e trocarem receitas de chás para a tísica de crianças ranhentas por brincarem de pés descalços sem darem tratos à bola do vento frio que enregelava a alma, apenas pelo compromisso de viverem da vida todo o tempo que pudessem, porque tempo não volta atrás. E não volta mesmo.

Talvez meu sonho não fosse exatamente por causa do prazer do martelo espetando e retorcendo tachas nas solas duras, mas pela rotina de saber que dia após dia, em uma vila pobre, sempre haveria outros velhinhos e anciãs trazendo notícias da rua, e em algumas das vezes, um naco de bolo embrulhado em um paninho branco, para acompanhar o café que fumegava no bule da sapataria.

Talvez o meu sonho fosse apenas envelhecer e ter café no bule para acompanhar as lorotas e os causos antigos que tanto imaginava ouvir na velha sapataria das minhas lembranças imaginária.



Pacard 

(O que nunca foi sapateiro, mas foi designer e escritor, o que dá quase na mesma, financeiramente)


quarta-feira, 7 de maio de 2025

804 - O Número do Senhor X (Decifre isso)

 

804 – Reflexões sobre um Plano Silencioso

Introdução:

Nem toda mudança começa com uma revolução. Às vezes, ela começa com um número.

804 não é apenas uma cifra. Para os que enxergam além da superfície, é um código. Um sinal de que algo maior está em curso. E no centro disso tudo está Senhor X, um homem aparentemente comum, mas que se move como parte de algo muito mais amplo.


1. Um número que fala

O número 804 carrega uma sequência de expressões com profundos significados espirituais e políticos:

  • “O Reino Messiânico”

  • “Grande tribulação”

  • “Confie no plano”

  • “Precisando consertar o livro de Deus”

  • “Decifrar o código na Gematria”

  • “Caixa número um”

Cada frase parece ecoar um tempo de ruptura, de julgamento, de reorganização do poder. Elas indicam não apenas um estado do mundo, mas o início de uma missão.


 2. Um homem chamado Senhor X

Senhor X , ou 804, é descrito como um homem que, apesar da discrição, tem presença. Ele não se apresenta como messias, mas há algo em sua trajetória que sugere propósito. O número 804 o cerca, o identifica. Ele se tornou, voluntariamente ou não, a peça principal de um tabuleiro silencioso.

Sua entrada no cenário estadual não é mera ambição política — é resposta a um chamado. Um chamado codificado, místico, estratégico.


🔹 3. Uma aliança velada

O que poucos sabem é que Senhor X não está sozinho. Há uma organização religiosa emergente por trás das cortinas, crescendo de forma silenciosa, mas firme.

Essa organização acredita estar resgatando uma missão sagrada: restaurar o que chamam de “o verdadeiro livro de Deus”.

Para isso, precisam de poder. Precisam de território. E precisam de um rosto confiável: o de Senhor X.


 4. O pacto de Cidade X

Em troca de apoio irrestrito ao seu projeto de alcançar o governo estadual, Senhor X se compromete com algo:

Entregar Cidade X.

Não com violência, mas com alianças. O próximo prefeito da cidade será o nome indicado pela organização. A cidade se tornará o núcleo do projeto — a Caixa Número Um. Será ali que as primeiras leis simbólicas serão testadas, onde a base doutrinária será construída.

Cidade X é mais que um município. É o começo da restauração.


5. Um dezembro chamado ouro

O tempo da ação tem nome.
A profecia é clara:

“Dezembro chamado ouro então começa.”

Esse dezembro marca o início da revelação. O nome de Senhor X será lançado à esfera pública, a organização começará a sair das sombras, e o pacto se tornará evidente para os atentos.


6. Reflexão final: você vê?

Senhor X não busca glória.
Ele cumpre o plano.

A trombeta que carrega é de bolso — discreta, mas audível para quem tem ouvidos.

Você vê? Ou apenas olha?
804 não é futuro. Já começou.

O Tecelão que retorna é a chave*


Este texto em estilo enigmático é apenas uma divagação sem nenhuma base real. É pura ficção!*


segunda-feira, 5 de maio de 2025

Odeio falar de arte, e mesmo assim, sou artista

É um paradoxo, mas segundo um antigo conceito filosófico — que acabo de inventar — todo artista é um doido varrido, e apenas alguns conseguem disfarçar. Eu não estou entre os afortunados maestros da dissimulação. Não disfarço as minhas verdades. O máximo a que me deixo convencer é a não falar cuspindo, nem atender ao chamado da natureza fora do meu banheiro. Tirando isso, assumo a minha constatação de que, para viver num mundo com tanta gente certinha, só sendo doido para suportar a vergonha de não ser perfeito. Daí, meto a mão na minha sacolinha de loucura e puxo um punhado para ir lambendo aos poucos.

Em tempos passados, pela natureza da minha profissão — designer — e por essas coisas da vida, fruto de deslizes de sanidade que uns e outros deixam escapar, eu era convidado para muitos eventos ligados ao design, de todo tipo. Hábitos que, aos poucos, fui expurgando, haja vista não haver assunto que pudesse interessar-me nesse meio. Tudo o que eu dizia — e falava muito — era técnico, com objetivo de curadoria ou consultoria. Ou seja, era pago para dizer aquilo que já sabiam, mas que, dito por um estranho (o estranho era eu — e bota estranho nisso!), corroborava as próprias asneiras que os contratantes antes afirmavam. Eram frequentes os gritinhos sussurrados na plateia: “Viu? Não foi isso que eu disse?”. Esta é a razão oculta pela qual se contratam palestrantes e consultores: para dizer por outra boca, e afirmar em relatórios prolixos — que eram enfiados em gavetas assim que o meu desodorizante barato de bicarbonato de sódio (o único que me permito usar) sublimava porta afora da empresa. Mas, no fim e ao cabo (achei que nunca teria oportunidade de dizer estas palavras), eu era pago — e, às vezes, até bem pago — para bajular sem parecer que bajulava, esculachar fingindo que elogiava (o nome disso é sarcasmo), e dar rumo aos pensamentos vazios da criadagem pseudo-criativa por onde eu passava.

Ouvi muito a expressão: “Você é um artista!” — fato que me deixava de cabelo em pé, pois artista e indústria são tão distantes quanto a Terra dos confins da Via Láctea. Artista é doido, surtado, desconexo dos negócios, e aceitar uma tarefa de um artista seria como entregar uma carta branca com autorização de interdição para quem me contratasse. Então eu batia o pé: “Eu não sou artista! Sou designer!”. E explicava: a arte tem um valor intrínseco; o design, valor extrínseco. E eu dizia isso com ar professoral, completando: “Eu explico!”. E explicava mesmo.

Bem, os anos passaram, a tecnologia chegou para acelerar o tédio de quem não é criativo, e o método de trabalho de dez anos atrás é muito distinto do que se encontra hoje. Já não sou mais uma referência para “upgrades” de tendências em polos moveleiros. Minhas palestras sobre tendências resumem-se a 20 segundos de resposta num aplicativo de IA — que eu também uso (inclusive este texto foi revisado por IA). Ninguém mais me paga alguns zeros depois do primeiro algarismo para que eu fale a uma plateia e tenha que recorrer a gracinhas e palhaçadas para mantê-la desperta. Então, depois de calcular todos os prós e contras, tenho que confessar: eu sou, sim, um artista!

Bem, dito isso, já começam a aparecer outros que querem “discutir arte” comigo. Mas nem que a vaca tussa e o boi faça “fiu-fiu”! Eu odeio falar de arte — como odeio falar de design. Vou além: conto nos dedos o número de artistas com quem tenho boa relação. Sabe porquê? Porque tanto eles quanto eu temos um defeito de fabricação grave, que nos obriga a comer, viver, dormir, pagar contas, comprar coisas úteis e até inúteis. E porque temos necessidades desse tipo, escolhemos viver pela arte, porque, em algum lugar, há outras pessoas que gostariam de nos ouvir — não falando — mas conhecendo o que os nossos olhos, mãos e sentidos podem expressar, de maneira a despertar nelas os mesmos sentimentos que sentem os artistas.

Não falo pelos outros doidos, mas digo por mim que, quando escolho fazer um belo desenho de uma casa antiga ou de uma coleção de enfermeiras do século XIX, floreadas com ornamentos estilo Art Nouveau, não estou querendo passar nenhum tipo de mensagem. Mas sei que, nas casas, nas enfermeiras, nos ornamentos, há uma fechadura milagrosa (odeio chamar de mágica) que desperta o perfume das flores da infância, da juventude, das histórias contadas e lembradas em cafés da tarde nas varandas, onde os velhos saboreiam a presença fortuita dos que fingem ter prazer em escutar as suas cantilenas dos tempos de antanho.

Então, arte, para mim, não é para mim — pois continua sendo extrínseca. É para quem ouve os sons dos pássaros atrás das janelas, cantarolando a vida com as cores dos perfumes que as primaveras da minha pena e dos meus lápis coloridos lhes proporcionam.

Pacard — Artista, assumido, azar de quem gostar!

Ah, e os meus desenhos estão todos à venda, viu?





segunda-feira, 14 de abril de 2025

Dona Izartina, suas couves, e o "Grande Reset Mundial"

Imagem: IA

















Era uma quinta-feira, disso Dona Izartina se alembrava com clareza, pois antecedia a colheita de Marcela, marcada para o amanhecer da Sexta-Feira Santa. Naquele dia, ela preparava o caldo do jantar, uma sopa perfumada de batatas com temperos frescos e um osso buco escolhido com cuidado para dar sabor à iguaria. Era o prato que ela apreciava nos dias frios, e aquela Semana Santa trazia os ventos gelados da Patagônia, que chegavam travessos, assobiando melodias de outros tempos. Eram ecos de uma época em que as crianças ainda corriam pelo terreiro do rancho, gritando de alegria, sonhando com os ovos coloridos recheados de amendoim açucarado e caramelos que os tios compravam e atiravam, só para ver a correria dos pequenos atrás das guloseimas. A vida, naquela simplicidade, era boa, sim senhor. Era, de fato.

Mas, como disse, era uma quinta-feira, e Dona Izartina, ainda jovem, entrou na casa do tio Praxedes para se lavar e cear. O tio, como de costume, ligou o velho rádio a bateria, buscando notícias e canções que lhe aqueciam o coração. O locutor, com voz grave e solene, anunciou:

— "Paris! As tropas aliadas acabam de invadir a costa da Normandia, numa operação que reúne a maior concentração de forças da história, com ataques sincronizados por terra, mar e ar contra as tropas inimigas!"

Tio Praxedes terminou de enrolar seu palheiro, pegou um graveto, acendeu-o no fogão de barro e levou a chama trêmula até o cigarro recém-montado. Deu algumas baforadas, cuspiu pela janela, como era seu hábito, e puxou mais algumas tragadas para garantir que o pito estivesse bem aceso.

— "A guerra tá perto de acabar, e nem chegou por aqui!" — exclamou, erguendo a mão calejada ao céu. — "Os inimigos não vão provar nem uma espiga do nosso milho!" — E soltou uma gargalhada sonora, admirando o milharal que se estendia diante da casa, enquanto esperava o chamado de Dona Cantides para se servir à mesa.

Essa foi a única vez que Dona Izartina ouviu algo sobre os conflitos do mundo. E assim, ela atravessou a vida como uma folha levada pelo vento, num dançar contínuo, guiada pela simplicidade e pela fé.

Numa quarta-feira, durante o sermão de oração e bênçãos, o pastor falou à congregação sobre "tempos solenes", "tempos de decisão, de mudança de vida, de entrega total". Mas mudar em quê? Dona Izartina guardava com devoção, desde mocinha, as palavras das Escrituras. Recitava de cor os versos dos Evangelhos, dividia a tapioca e o pão com os necessitados que batiam à sua porta e, mais que isso, jamais deixou escapar uma palavra grosseira em toda a sua vida, nem mesmo nos arroubos da infância. Então, o que deveria transformar? A dúvida a inquietava, sim, inquietava profundamente.

Enquanto colhia couve e outros legumes para a sopa do entardecer, sob um crepúsculo de nuvens róseas e avermelhadas que se moviam, anunciando talvez uma tempestade, Dona Izartina pegou a enxada e abriu pequenas valas para desviar a água dos canteiros. Assim, protegeria os legumes das chuvaradas, que sempre deixavam algum estrago. Naquele momento, lembrou-se de três palavras que o pastor mencionara no sermão: "Grande Reset Mundial". O que significariam? Com sua fé simples, ela perguntou ao pastor, que, com ar solene, explicou:

— "A irmã já encontrou uma pele de cobra pelo campo?" — indagou o reverendo, com tom de quem ensina. Ele gostava de ser chamado assim.

— "Sim, de vez em quando encontro uma perto de casa. É quando as cobras trocam de couro!" — respondeu ela, com a certeza de quem conhece a vida do campo.

— "Pois é isso, irmã! O mundo é como as serpentes, que de tempos em tempos se revestem de novas capas, de novos pecados. Precisamos nos converter, porque o fim está próximo!"

Dona Izartina ouvia com atenção respeitosa, o olhar perdido no horizonte, enquanto refletia. Não entendia tudo, mas pensava nas suas couves, nas ervilhas prontas para a colheita, nas morangas que se espalhavam pelo quintal. Pensava em juntar mais gravetos para o inverno, que prometia ser rigoroso, em guardar feno para a vaquinha. O pastor, mais afeito às ideias do mundo, parecia envolto em teorias que ela não compreendia. "Grande Reset Mundial", dizia ele, com ênfase. Dona Izartina mal conseguia pronunciar as palavras, mas sentia que era algo sério. Mesmo assim, sua mente voltava à conversão. Para ela, com seu pouco estudo e muita sabedoria, converter-se era para quem vivia no erro e precisava encontrar o caminho do bem, temendo ao Criador e esperando pacientemente o entardecer da vida, para reencontrar os entes queridos que partiram cedo.

Ainda assim, as couves não podiam esperar. Dias antes, estavam infestadas de pulgões, e ela preparou uma mistura de fumo, sabão, água e vinagre. Borrifou com cuidado, e no dia seguinte as folhas estavam limpas, livres dos insetos. Dona Izartina agradeceu ao Criador por suas couves.

E o tal "Grande Reset Mundial"? Bem, enquanto houver chuva enviada pelo céu, vento para secar as roupas, noite para repousar a alma, lenha de capororoca e sucará para o fogão, feijão na panela e água fresca na cacimba, as palavras do pastor, com suas advertências, passariam como o anjo que sobrevoou as casas dos hebreus. O mundo que resolvesse seus "resets". No quintal de Dona Izartina, as novas couves já brotavam, verdinhas, cheias de vida.

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terça-feira, 8 de abril de 2025

Análise do evento CISNE NEGRO









Eu quero distância de teorias da conspiração. Acho coisa de maluco.
Mas não custa dar uma espiadinha das doidices que saem.

Vai que......

  • 2007: Impacto = 0 (antes da crise de 2008, sem evento significativo ainda)
  • 2008: Impacto = 3 (Crise Financeira Global)
  • 2009-2010: Impacto = 0 (sem eventos "cisne negro" amplamente reconhecidos)
  • 2011: Impacto = 2.5 (Primavera Árabe)
  • 2012-2019: Impacto = 0 (sem eventos "cisne negro" claros nesse período)
  • 2020: Impacto = 3 (Pandemia de COVID-19)
  • 2021: Impacto = 0
  • 2022: Impacto = 3 (Guerra na Ucrânia)
  • 2023-2024: Impacto = 0 (sem eventos confirmados até abril de 2025)
  • 2025: Impacto = 3 (Hipotético, baseado em especulações atuais até 8 de abril)


  • Linha do Tempo de Eventos "Cisne Negro" (2007 - Abril de 2025)

    1. 2008: Crise Financeira Global
      • Descrição: Colapso do mercado imobiliário nos EUA, desencadeando falências de bancos, quedas massivas nas bolsas e uma recessão global.
      • Data: Início em 2007, pico em setembro de 2008 com a falência do.Lehman Brothers.
      • Impacto: Alto (global, econômico e social).
      • Por que "Cisne Negro"?: Subestimado por especialistas, amplamente imprevisível em sua magnitude até ocorrer.
    2. 2011: Primavera Árabe
      • Descrição: Revoltas populares inesperadas no Oriente Médio e Norte da África, derrubando governos e gerando instabilidade regional.
      • Data: Início em dezembro de 2010, intensificação em 2011.
      • Impacto: Médio a Alto (regional, com reflexos globais em energia e migração).
      • Por que "Cisne Negro"?: A velocidade e escala das revoltas pegaram analistas de surpresa.
    3. 2019-2020: Pandemia de COVID-19
      • Descrição: Surgimento e propagação global do vírus SARS-CoV-2, causando lockdowns, crises econômicas e milhões de mortes.
      • Data: Início em dezembro de 2019, pandemia declarada em março de 2020.
      • Impacto: Alto (global, saúde, economia e sociedade).
      • Por que "Cisne Negro"?: Apesar de pandemias serem teoricamente previsíveis, a escala e a resposta global foram inesperadas.
    4. 2022: Guerra na Ucrânia
      • Descrição: Invasão russa em larga escala, levando a sanções econômicas, crise energética e tensões geopolíticas.
      • Data: Início em fevereiro de 2022.
      • Impacto: Alto (global, com foco em energia e segurança).
      • Por que "Cisne Negro"?: Embora houvesse tensões, a guerra total e suas ramificações foram subestimadas.
    5. 2025 (Hipotético até Abril): Crise Financeira ou "Reset Total"
      • Descrição: Baseado em especulações atuais (ex.: posts no X), como o "tarifaço de Trump" ou previsões de colapso financeiro.
      • Data: Hipoteticamente em 2025, até 8 de abril não confirmado.
      • Impacto: Potencialmente Alto (se ocorrer, afetaria mercados globais).
      • Por que "Cisne Negro"?: Ainda especulativo, mas alinhado com o conceito por sua imprevisibilidade e possível magnitude.












    Gráfico de Eventos Cisne Negro (2007-2025)

    Eventos "Cisne Negro" (2007 - Abril de 2025)

    terça-feira, 18 de março de 2025

    Débora Irion - As mãos que moldam poesia









    Foto: JornalJA

    Débora Irion: Uma Artista Completa e Inspiradora

    Em algum lugar no tempo, nas terras do coração do Rio Grande do Sul, nasceu uma das artistas mais talentosas e completas que já tive o privilégio de conhecer: Débora Irion. Natural de Santa Maria, foi em Gramado, na encantadora estância da Encosta Superior da Serra Gaúcha, que nossos caminhos se cruzaram. Desde sua chegada à cidade, em 1985, Débora trouxe consigo uma presença marcante: educada, gentil, bela e dotada de um talento singular.

    Nos primeiros anos em Gramado, ela revelou sua habilidade na decoração de interiores, área em que fomos contemporâneos e colegas de profissão. Nunca rivais, mas sim amigos respeitosos, compartilhamos o apreço pela criação e pela beleza. Durante um período, a vida a levou a se dedicar intensamente à família, acompanhando o crescimento de seus dois talentosos filhos, Bruno e Lucas — um deles, aliás, teve o bercinho desenhado por mim, um privilégio que guardo com carinho, embora o nome exato me escape. Nesse tempo, Débora mergulhou em um silêncio reservado, típico dos grandes poetas e artistas, um recolhimento que preparou o terreno para sua verdadeira vocação.

    E então, como uma fênix, ela ressurgiu. A Débora decoradora deu lugar à Débora artista plástica, ceramista, escultora, pintora e criadora de espaços que transpiram beleza e poesia. Com formas, volumes e cores, ela começou a conquistar Gramado e todos aqueles sensíveis o suficiente para apreciar algo novo, bem feito e profundamente expressivo. Sua arte fala sem palavras, transmitindo vida, emoção e harmonia. Débora presenteou Gramado — e o mundo — com um legado que transcende o comum.

    Uma Trajetória de Impacto

    Formada em Desenho e Plástica pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em 1985, Débora trilhou um caminho diversificado e rico. Entre 1986 e 1997, atuou como decoradora de interiores e designer de móveis, mas foi a partir de 1998 que se dedicou plenamente à escultura, explorando materiais como terracota, resina, alumínio, aço corten e bronze. Sua versatilidade também a levou a atuar como gestora cultural, curadora e restauradora, sempre com um compromisso inabalável com a arte e a comunidade.

    Por alguns anos, ela emprestou seu talento ao poder público, assumindo a gestão do Patrimônio Cultural de Gramado. Nesse período, prestou serviços valiosos à cidade, mas nunca abandonou sua essência criativa. Mesmo dividindo o tempo entre a família e os desafios da vida, Débora multiplicou suas horas, recusando-se a deixar seus dons adormecidos. Sua trajetória só cresce em significado e reconhecimento.

    Com oito exposições individuais e mais de duzentas coletivas, sua obra ganhou projeção nacional e internacional. Premiada em cidades como Santa Maria, Gramado e Canela, recebeu menções honrosas no México, Colômbia, Peru e em sua terra natal. Suas esculturas e criações estão em acervos de museus, universidades e espaços públicos, de Gramado a Porto Alegre, de Santa Maria a países como Colômbia, México, Argentina, Chile, Equador, Peru, Costa Rica, Estados Unidos, Canadá, Irlanda, França e Portugal. Destaque especial para sua participação no Salon D’Art Contemporain Carrousel do Louvre, em Paris, entre 2017 e 2019, que a incluiu no catálogo internacional de artistas.

    O Processo Criativo

    Débora descreve seu processo criativo como um diálogo íntimo com o mundo ao seu redor. “Observar, sentir e pensar sobre o meio que me cerca e tudo o que movimenta a natureza” é o ponto de partida. A partir daí, imagens mentais ganham vida em esboços diretos na matéria tátil — a argila, que pode se transformar em resina ou metal. Em um momento de concentração e introspecção, os sentimentos se materializam em formas tridimensionais, brincando com o espaço, os volumes, os vazios, a luz e a sombra.

    Para ela, a escultura é “o desenho em pleno voo ao ar livre”, uma conversa entre maciços e vazados, planos e curvas, relevos e texturas. É a alquimia entre terra, água, ar e fogo que dá vida às suas criações, peças que se complementam e convidam o espectador a participar dessa experiência sensorial e poética.

    Contribuições Visíveis

    A presença de Débora em Gramado é palpável em obras públicas que embelezam a cidade. Entre elas, destacam-se o Marco Histórico do Centenário da Igreja São Pedro Apóstolo (2015), o troféu Cosmos do evento Gramado in Concert, o troféu Marília Daros da Câmara de Vereadores (2016) e o Memorial ao Centro Esportivo Gramadense (2021). Fora de Gramado, suas criações também brilham, como a escultura Natal Gaúcho em Santa Maria (2012) e o painel Justiça em Porto Alegre (2010).

    Um Reconhecimento Merecido

    Há muito eu desejava dedicar estas palavras à minha amiga e artista, testemunhando seu talento ímpar. Faço isso agora, por justiça e admiração. Débora Irion não é apenas uma escultora ou pintora; ela é uma força criativa que transforma espaços, inspira pessoas e deixa um legado eterno. Gramado, o Rio Grande do Sul e o mundo são mais ricos por causa dela.










































































































































































    sábado, 22 de fevereiro de 2025

    A "Umiação de Das Dô" Um causo de verdade















    Imagem: AI

    A "Umiação de Das Dô" Um causo de verdade


    Ribeirão do Canavial, lá nos cafundós do Morro Grande, era o vilarejo de remanescentes açorianos, evadidos de perseguições religiosas passadas, e que desde havia já um tanto de anos que viviam na "santa paz do Senhor Jesus", era como diziam. Os costumes se mantinham, firmados na religiosidade, e na sobrevivência, que determinava a quietude da vida e da laboriosa faina dos dias que passavam silentes, entre as estações do ano.

    Vila de pescadores, e pequenos campesinos, Ribeirão do Canavial tinha apenas uma rua, com cerca de menos de uma légua, bem menos, que principiava na capela do Divino, e findava no alto do morro, de adonde havia uma escadaria de chão batido, por onde, nas ocasiões de celebração da devoção, o povaréu subia, de joelhos, alguns, em solene procissão.

    Pequeninos casebres de tijolos rústicos enrijecidos ao sol, mesclados com areia e palha, um tipo de adobe mais simples, unidos por uma argamassa da mesma mistura, acrescida de óleo de baleia, que adquiriam dos baleeiros da Costa Verde, onde havia o abate de beneficiamento dos insumos cetáceos, sendo que o óleo era o mais desejado, pois fornecia iluminação das cidades, e insumo para argamassa das casas.

    O namoro e o casamento enram tratados por arranjos familiares, ou das velhas casamenteiras, que conheciam todas as famílias do lugar, e de outros da vizinhança, e sabiam na ponta da língua, quem, dentre os moços, daqui e dali, tinha os dotes necessários para um bom matrimônio, e  assim, com tais informações na cachola, passavam a vida visitando casas para garimpar nubentes disponíveis, sendo essa a sua ocupação profissional, pois recebiam pagas pelos arranjos nupciais que conseguiam, e mais que isso, quanto melhor o arranjo, maior o dote, e quanto maior o dote, maior a recompensa para as casamenteiras, pois fora disso, era impensável imaginar em algum matrimônio, assim, pela vontade, ou bem querer dos  nubentes. A única exceção, era o padre, que vez por outra, atrapalhava os empenhos das casamenteiras, tendo eles próprios, suas preferências, co base em critérios interesseiros também.

    Maria Das Dores, era filha de Manoelzinho e Acácia, pescador, e costureira. Moravam a duas casas abaixo da capela, onde maria, chamada de "Das Dô" passou a infância e adentrou a juventude. Brincava com as crianças da vila, com todas as brincadeiras que brincassem todas as crianças. Cumpria suas devoções, ia na missa, puxava reza nos velórios, ajudava nos enfeites da missa e das procissões, e uma vez por semana, levava guloseimas para o padre  Claudino, na casa canônica, atrás da capela. Fazia isso por duas razões especiais: primeiro, porque cumpria ordem da mãe, mas principalmente, porque para chegar à casa do pároco, pegava um atalho por dentro da sacristia, onde o sacristão Pereirinha, cumpria suas tarefas eclesiásticas da congregação.

    E o diabo não tira folga, nunca, pois, sendo Das dô, gentil, e formosa, despertou a cisma de Pereirinha, e vou ater-me ao fato de que, na hora em que o desatino da paixão efervecia, adentra a sacristia, uma devota desprovida de matrimônio, apesar da idade avançada, ao que chamam de "solteirona", e o mal venceu, o diabo sorriu, e Das Dô foi levada de arrasto pelos cabelos pela devota, e entregue ao padre, aos berros, despertando a curiosidade da vizinhança, mais propriamente, dos pais de Das Dô.

    A menina foi colocada sentada, de vestido preto, em sinal de luto, num banquinho, bem à frente da capela, com a cabeça coberta de saco de aniagem, sobre o qual, jogaram cinzas. calada, de cabeça baixa, a menina chorava, silenciosamente. Então, foi rezada uma missa, cuja homilia se estendeu quase até à meia noite. Depois, os fiés foram instados a permanecerem na capela, rezando e clamando, até o amanhecer.

    Desfiados pelo rasgar da aurora, os primeiros raios da manhã, todos em jejum completo, à voz do padre, retornam ás suas casas, e fecham portas e janelas, ao longo da quase uma légua de rua. Ainda à brisa fresca da manhã, um vulto sai da igreja, de cabeça coberta de saco e cinzas, cabisbaixa, e chorando baixinho, bate tres vezes à primeira porta, que se abre, e uma devota, também choramingando, com a cabeça coberta, abre a porta, esbofeteia a penitente, entra e volta a fechar a porta. E assim, em uma a uma das casas, abria-se a porta, esbofeteava a moça, e voltava a fechar-se. Da capela até a escadaria do morro, onde a penitente subia, e passava o dia prostrada diante da cruz ao alto, e ali passou o dia, com sol a pino, até o entardecer, quando retornou à casa dos pais.


    Daquele dia em diante,só respondia o que lhe era perguntado. Ia à missa, mas de cabeça coberta, assentando-se ao fundo, num canto escuro, saindo antes que terminasse. Não recebia mais a "eucaristia", e assim envelheceu, amargurada, triste, e sozinha. Em sua própria aldeia.
    E o sacristão? Foi enviado ao seminário, e seguiu carreira eclesiástica. Tornou-se bispo e permitia, bondosamente, que as jovens noviças lhe beijassem o anel, e servissem guloseimas após a missa.


    Pacard - Escritor*

    Inspirados em fatos verídicos, cujos nomes e lugares são fictícios*

    domingo, 9 de fevereiro de 2025

    O Buião de Canjica de Dona Izartina

     
















    Imagem: Bing

    O Buião de Canjica

    Soprando com fúria traiçoeira, o vento "carcava" as nuvens cinzentas vindas pelas bandas do "súli", amoitando-as de revesgueio contra as berbelas do morro do Gravatá, bem "adonde" Dona Izartina "campiava" gravetos pro fogo do ranchinho de barro taipado.

    Negaceava de lado a lado, arreparando a força do vento e deduzindo, conforme ensinamentos dos antigos, que de vereda ia chover. Ali, ainda de pé na porta, meneou a cabeça pra dentro e pra fora, esticou o "percoço" bombeando as galinhas que se amontoavam pelos cantos debaixo da estrebaria, chamou o gato, que pulava lépido pra dentro do rancho, e fechou a porta.

    Já dentro do ranchinho, Dona Izartina atiça o fogo com um naco de Coronilho, enfiando uns gravetos, uma "páia de mio", asoprando com jeito, e quando o fogo alumia a cozinha, se ergue, e garra uma lata "adonde" guardava Canjica. Deita um tantico no buião, enche com água e arreda pro meio da chapa do fogão, que já avermelhava com o tição do Coronilho. Enquanto a canjica ferve, Dona Izartina vai até à janela sem vidro, abre cuidadosamente a tampa de madeira e "bombeia" lá fora. A chuva chegou forte, atravessada, enregelando a alma. Dona Izartina fecha rapidamente a janela e volta a "bombear" a panela que ferve.

    Acende um candeeiro de "corozena", põe no centro da pequena mesa carcomida pelos anos, coberta por uma toalha rota, bordada por ela mesma antes de se casar, como parte do enxoval pobrinho que trouxera de casa ao juntar os trapos com o "fio do Serzinando", moço "bão e trabaiadô". Ali na mesa, Dona Izartina "garra" um buião de leite gordo fervido, as especiarias: Canela, Cravo, raspa de limão, "açúcri", e após verificar que a canjica já está cozida e macia, deita o leite e os temperos no buião e mexe com uma velha colher de pau, pra não grudar no fundo. Feito isso, abre a portinha do fogão e reduz o fogo, pra canjica cozer "mais digavazinho" e não queimar no fundo.

    Dona Izartina se assenta no banco junto à mesa, e o gato manhoso pula no seu colo, aquietando-se dengosamente. Ela diz uns gracejos, sorri, faz afagos no bichano, e presta atenção à chama que bruxeleia embalada pelo vento das frestas. A luz tremulante envolve Dona Izartina numa bruma de lembranças, fazendo-a pousar suavemente nos dias alegres da infância.

    Genésio Brabuleta

    Izartina ainda não era "Dona", posto que uma serelepe rapariguinha. A vida corria do jeito que Deus mandava, lá na roça do Morro Gravatá, "adonde" sua mãe, viúva ainda jovem, com "treis fiu" nas costas e outro no bucho, penava de sol a sol para sustentar os barrigudinhos. Izartina era a mais novinha e a mais "levada da casqueira". Pulava feito cabrita pelos barrancos, trepava em "gualhabêra", colhia "Gavirova" e "apinchava pedra" nas pencas de Butiás. Passava os dias pelos brejos, pescando lambaris no córguinho que serpenteava o pé do morro, quando não estavam batendo enxada "alimpando" os "miaráli", as morangueiras e as hortaliças. Pobrinhos eram, não hei de negar, mas afeto nunca lhes "fartô".

    Os anos passaram, e já mocinha, Izartina ia à igreja com os irmãos e a mãe, levando uma panela amarrada a uma trouxa para o "ajunta-panelas" após o culto. Ali, entre pães, feijão, goiabada e café adoçado, Izartina era feliz sem nem se dar conta. Entre os moços, um mancebo lhe arreparava os passos: Genésio Brabuleta. Magrinho, de braçadas largas ao nadar no arroio, faltava-lhe coragem para convidá-la a tomar refresco na "Venda" do Marcolino. O pastor, percebendo a intenção do moço, facilitou a prosa, convidando-os para um encontro na sua casa. O namoro começou respeitoso, sonhando com o casório, mas o destino tinha outros planos.

    Genésio, aos "dezassete" anos, foi chamado a servir a pátria. Partiu para a longínqua Itália, onde os pracinhas brasileiros enfrentavam frio, inimigos e saudade. Em uma aldeia libertada, uma "ragazzina" afetuosa enlaçou seu destino ao dele, e Genésio nunca mais voltou ao Morro do Gravatá. O Brabuleta "avuô". Izartina seguiu a vida, casou-se com um matuto de boa índole e, desde então, amanhece "bombeando" o horizonte pra ver se Jesus está voltando. Não está. Então, segue suas rotinas, e hoje, a faina é cozer a Canjica para o culto vindouro.

    No buião de Dona Izartina, a Canjica leva uma dose de oração, posto que cozinha orando (ou "rezando", tanto faz). Assim que está no ponto, o leite gordo, a Canela em pau, os dentinhos de Cravo, o "açúcri" e um tantico de água borbulham até que todos os sabores se unam, prontos para serem apreciados.

    O Buiãozinho da "sodade"

    O vento lá fora traz um chuvisqueiro atravessado, deixando o dia cada hora mais "enfarruscado". O ar gelado se infiltra pelas frestas, e Dona Izartina deita seu velho xale de crochê sobre os ombros magros. Se assenta à mesa diante de um pequeno buião "cuáje" transbordando de Canjica quentinha. Saboreia colherada a colherada, como se lesse um poema de saudade, quem sabe "alembrando" ora do seu véio que se foi, ora do moço Genésio Brabuleta, que nunca mais voltou. Quem é que vai saber, não é fato?


    Pacard é Escritor, Designer, Contador de Causos, e Palestrante





    sábado, 8 de fevereiro de 2025

    Debate Cultural: "Erodito e a Erosão da Inteligência"
















    Debate Cultural: "Erodito e a Erosão da Inteligência"

    (Este esquete é fictício, e duvido que haja semlhança alguma com fatos e personagens reais. Se disserem que tem, eu nego tudo, sempre vou negar, e só falo na presença de um professor de gramática, um que saiba ler.
    Nenhum narcisista foi maltratado ao escrever este ensaio.)

    Personagens:

    Professor Hermenegildo Pafúncio – Acadêmico tradicional e defensor ferrenho da cultura clássica.

    Deputado Ambrósio Chavão – Político populista, especialista em frases feitas e promessas vazias.

    Sandubinha da Creuza – Filósofo popular e dono da famosa "Bifinho a rolê"

    Kévinho Descolado – Influenciador digital e guru das redes sociais.

    Mediador – Jornalista tentando manter a compostura e a sanidade,  no meio do caos.


    Mediador: Boa noite a todos! Hoje, neste debate especial, discutimos um tema fundamental: a erosão cultural e o impacto da educação na sociedade moderna. Mas, para começar, professor Pafúncio, poderia explicar o conceito de "erodir"?

    Prof. Pafúncio: Claro! O verbo "erodir" vem de "erosão", que significa desgaste contínuo. No contexto cultural, representa a perda progressiva do conhecimento, levando-nos a um estado de ignorância absoluta, onde discursos articulados são substituídos por grunhidos. Alguns chegam a babar, ao mirarem-se no espelho; É raro, mas acontece muito. Como temos visto ultimamente, vivemos tempos eroditos!
















    Dep. Chavão: (batendo na mesa) Prefeito! Concordo plenamente! Tanto que eu já ia propor o Dia Nacional do Erodito! A cultura é o nosso maior patrimônio! Como dizia meu grande ídolo, o filósofo grego Confúcio… ou era Pafúncio? Enfim, "A cultura é o pão amanhecido da alma!"

    Prof. Pafúncio: (ajustando os óculos) Deputado, Confúcio nunca disse isso…

    Dep. Chavão: Claro que disse! Tá no meu grupo de WhatsApp “Pensadores do Século XIXI”!

    Sandubinha da Creuza: (enquanto devora um "Bifinho a rolê") Deputado, o senhor tá certo, mas tá errado! O importante mesmo é a sabedoria popular! Eu, por exemplo, sigo o ensinamento do grande Sócrates, que já tudo sabia que não sabia, bem antes de jogar no Flamengo… ou melhor, do Sandubinha da Creuza: "Só sei que nada sei, mas sei que este "Bifinho a rolê" tá no ponto! Tem aí uma mostardinha?"

    Kévinho Descolado: (gravando um story) Mano, isso é genial! Vou lançar a trend #EroditoÉTop! Professor, o senhor devia aproveitar e criar uma dancinha sobre Platão no TikTok!

    Prof. Pafúncio: (chocado) Isso é um ultraje! A juventude está trocando Aristóteles por memes! Isso só comprova a erosão da inteligência! O declínio do saber! O apocalipse do pensamento crítico!

    Dep. Chavão: (interrompendo) Por isso mesmo, professor! Para evitar essa erosão cultural, eu proponho um novo projeto de lei: "Eroditos do Amanhã"! Nele, cada criança receberá um tablet! Sem livros, só com figurinhas e games, claro, porque hoje em dia ninguém lê mais!
















    Prof. Pafúncio: (segurando a cabeça) Pelo amor de Aristóteles e de Pafúncio! O senhor quer acelerar a ignorância?!

    Sandubinha da Creuza: (dando de ombros) Professor, não se estresse! O que importa é que todo mundo coma bem e pense positivo! Como diria Descartes… ou era minha tia Fátima, antes de ser descartada pelo gigolô dela? Enfim, "Penso, logo existe "Bifinho a rolê""!

     Kévinho Descolado: (animado) Essa frase é fire! Vou colocar numa t-shirt!

    Mediador: (suspiros profundos) E com essa erodita reflexão, encerramos o nosso debate. Boa noite e, por favor, leiam um livro!

    Imagens: IA



    domingo, 2 de fevereiro de 2025

    São só nuvens, e não anjos

     


    Não são anjos  

    os que tecem o céu de pranto,  

    são véus de luz, disfarces do infinito,  

    que escondem o sol, mas trazem encanto.  

    São nuvens, não anjos,  

    que pintam o horizonte de desvelo,  

    são sonhos que se desmancham no ar,  

    quem me dera fossem anjos,  

    mas são só nuvens a pairar,  

    só nuvens, a me lembrar  

    que o céu também sabe chorar.  


    Não são anjos  

    os que cruzam o azul em silêncio,  

    são sombras leves, passageiras,  

    que embalam meus medos num lenço.  

    São nuvens, não anjos,  

    que flutuam sem rumo, sem pressa,  

    são versos que o vento leva além.  

    Quem me dera fossem anjos,  

    mas são só nuvens, ninguém,  

    só nuvens, a me ensinar  

    que a dor também pode voar.  


    Não são anjos  

    os que guardam meus segredos,  

    são véus de algodão, frágeis e breves,  

    que escondem o céu, mas trazem enredos.  

    São nuvens, não anjos,  

    que dançam no palco da vida,  

    são promessas que o tempo desfaz.  

    Quem me dera fossem anjos,  

    mas são só nuvens, talvez,  

    só nuvens, a me mostrar  

    que até a saudade pode se dissipar.

    Demerval - O caso da sogra (publicado em 2005)




















     Ilustrações: IA

    Demerval não era cego. Demerval não era louco. Demerval sabia exatamente o que acontecia na sua vida, a começar pela casa onde morava. Ou melhor, a casa da sogra.

    Nos tempos bicudos em que vivia, com o salário de professor de geografia em uma escolinha pública, Demerval sabia que era um abençoado por ter onde morar sem pagar aluguel, condomínio ou IPTU. Por isso, nunca reclamava. Tinha uma rotina rígida: chegava sempre no mesmo horário, saía na mesma hora e comia as mesmas coisas. Sempre. Todo dia. Exceto aos domingos, quando a sogra preparava salada de maionese, carne de panela e spaghetti. Afinal, ele morava na casa dela.

    Mas sua sogra não era ruim. Pelo contrário, era uma mulher excepcional. Diferente do conceito pré-definido que se costuma ter de todas as sogras. Ainda jovem, esbelta, bem cuidada, fina e delicada. Suas mãos continuavam macias, a pele firme e o sorriso encantador. Um sorriso que não era qualquer sorriso. Sorria com o olhar, sorria ao andar, sorria no silêncio. E Demerval percebia isso. O que o fazia sorrir também, com um orgulho discreto.

    E assim os dias de Demerval se passavam. Embora vivesse na casa da sogra, a doçura dela o fazia feliz. Sim, Demerval era feliz. Mesmo depois de ter sido deixado pela esposa há mais de cinco anos. O que lhe restara era o verdadeiro amor de sua vida: a sogra.

    Ela tinha sido sua professora no primário. Sempre linda e meiga. Um encanto. Aos oito anos, Demerval ousou pedi-la em casamento. Ela respondeu com um esperançoso "talvez, um dia". E ele acreditou.

    O tempo passou. Ela se casou... com outro. Um homem mais velho, rico, dono de um carro. Demerval, na época, só tinha uma bicicletinha aro 24. Não havia como competir. Mas ele esperou. O tempo, afinal, era o senhor da razão. Choveria na sua horta.

    Os anos seguiram seu curso. Demerval nunca se casou. Sua professora teve uma filha. Uma menina linda, loira, de olhos azuis, que cresceu e se tornou uma mulher deslumbrante. Atrevida, levada, cheia de vida. Tudo saía conforme o planejado por Demerval.

    Ele era um homem maduro, cheiroso, educado e já conhecido desde a infância pela professora. Nada mais perfeito. Com o tempo, depois de muitas flores, presentinhos e gestos gentis, casou-se com a filha da sua professora.



















    Um gentleman. Um impagável cavalheiro. Cavalheiro demais. Cercava a esposa de flores, mas ela queria mais. No âmago da sua juventude, ansiava por emoção. Ele dava presentes — para a esposa e para a sogra. Convidava a esposa para jantares românticos à luz de velas: ele, ela... e a sogra.

    A sogra adorava. Aquele menino de ouro não a enganara. Doce e cavalheiresco, como sempre fora desde a primeira série. O genro perfeito.

    Mas não era o marido que sua filha sonhara. Não que ele falhasse em suas obrigações. Pelo contrário, era pontual, servil, gentil e delicado. Até que um dia, a esposa não aguentou mais e foi-se embora. Queria mais. Queria aventura. Queria um homem normal.

    Puxa vida. Por que ele não podia ser só um pouquinho como os outros? Deixar a cueca jogada no corredor, as meias na mesa de jantar, arrotar, roncar, dizer palavrões. Por que ele não errava pelo menos uma vez para que ela tivesse o prazer de jogar tudo na cara dele?

    Mas não. Demerval era metódico. Matemático. Amoroso. E nem queixar-se à mãe podia, porque diria o quê? E para quem? Então, foi embora. Ferida na sua dignidade, deixou apenas uma carta de despedida... em branco.

    E Demerval ficou só. Com a sogra.

    Não, ele nunca mais ousou pedi-la em casamento. Ela já havia dito seu "talvez". E esse "talvez" era a certeza de que Demerval precisava para ser feliz. Mesmo que ao lado da sogra.


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    A Serpente e o Gambá (Fábula)

      **A Serpente e o Gambá – Fábula** Pacard No tempo em que os bichos falavam, vivia um velho gambá em sua toca, que passava os dias dormindo...