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sábado, 12 de julho de 2025

Tia (bruxa) Margarida














Imagem: Chat GPT

# TIA MARGARIDA


O período que transcorreu logo após a tragédia, creio, não precisa ser descrito. Dor é dor. Cada um tem a sua. Em casa, eram muitas as dores: uma morte, um crime, um desaparecimento (meu pai sumiu, foi julgado à revelia, condenado, mas nunca cumpriu a pena. Com medo de uma vingança, desapareceu no mundo).


Mas havia o dia seguinte. É sempre o pior. No momento da tragédia, há uma multidão que deseja participar, confortar. Depois, um silêncio crepuscular domina tudo. Começa a angústia. A tragédia passou. A dor começou. A angústia vem de se saber o que não se pode dominar: o amanhã. O que será do amanhã? Quem seremos amanhã? Onde estaremos amanhã? Haverá amanhã? Há. Depois da dor, há muitos amanhãs. E todos doem sempre.


Enquanto uma sobrinha de minha avó emprestava um pedaço de terreno, cujo limite eram as próprias paredes do ranchinho de tábuas, fui levado a uma tia-avó velha e sem filhos, chamada Margarida. Todos a conheciam como "Tia Margarida". Era casada com um matuto aposentado chamado Arcílio, mas conhecido como "Tio Alcides". Ambos eram ranzinzas. Um par de velhos ranzinzas. E o fato de não terem filhos os tornava pessoas amargas e insensíveis. Vou além: eram cruéis.


Pode-se pensar: como podem ser cruéis pessoas que acolhem um bebezinho órfão de pai e avô, na quase absoluta miséria? Talvez por isso mesmo.


Fiquei lá por mais ou menos quarenta dias. Não lembro nada. Seria um fenômeno se eu pudesse lembrar. Mas me contaram com tanta riqueza de detalhes que chego a visualizar com nitidez as cenas que descrevo aqui. Tenho boa memória. Uma excelente memória, aliás. Como eu dizia... do que mesmo eu falava? Ah, sim, Tia Margarida.


Soube, por exemplo, que meu nome foi trocado pelo casal de velhos. Num desses dias, fui levado ao médico e, na ficha, deram meu nome como "Hugo Luiz da Silva". Esse foi, aliás, meu segundo nome, pois eu havia sido batizado na paróquia de Cazuza Ferreira com o nome de "Paulo Celso Cardoso Borges dos Reis". Paulo, por sugestão de minha mãe. Celso, ideia do meu pai. Cardoso era meu avô paterno: Assis Brasil Cardoso. Reis, de minha avó materna, uma caboclinha "cafuza", cruza de índio e negro, nascida na Bahia e criada por um casal de alemães, cujo pai adotivo era pastor. E Borges era por parte de meu avô paterno: Donato de Oliveira Borges, vulgo "Donato Bonito".


Na verdade, pouco importava que nome me davam, pois eu não tinha sido registrado. Isso só aconteceu aos seis anos, quando fui para a escola pública. Mas chego lá. Tem muito brejo no meu caminho ainda até me encontrar com minha primeira professora.


A questão agora era o que Tia Margarida fazia. Ela dizia, vejam só, que era minha mãe natural! Claro que poderia dar certo, pois Sara, mulher de Abraão, tornou-se mãe aos noventa e um anos. Tia Margarida era bem mais jovem, tinha 58 anos, ou próximo disso, no máximo. Mas, enfim, se ela era minha mãe, nada mais natural que eu a chamasse por esse adjetivo: "mamãe". E eu chamava. Fazer o quê? Ela insistia tanto nisso e me deixava comer casquinhas de queijo.


Foram as casquinhas de queijo, na verdade, que desencadearam uma encrenca danada entre aquela garotinha de dezesseis anos que me pariu e aquela gentil senhora que perambulava pela parentela, garbosamente “miraculando-me” como um rebento de sua pureza senil (era caduca mesmo). As casquinhas de queijo, que gosto até hoje e só não como mais porque acho que nem todos os queijeiros lavam as mãos ao transportar as bolotas para o mercado, e também porque acho que nem todos os empilhadores de queijo lavam bem as mãos após a visita ao banheiro. Bem, eu não tenho comido cascas de queijo ultimamente. Mas, na época de Tia Margarida, eu comia, sim. Até porque era o que ela me dava como guloseima. E minha mãe (a de verdade) viu isso no dia em que foi me visitar. Tia Margarida tinha outras visitas e, generosa como achava que era, resolveu oferecer um café com mistura. Havia pão, geleia, café, leite, biscoitos e queijo. Mas ninguém podia tocar nas cascas, porque as cascas eram para o nenê.


Minha mãe (a de verdade, não a velha impostora) viu aquilo e tomou as casquinhas da minha mão, trocando-as pelo miolo do queijo. A velha viu isso e ralhou com ela, dizendo: "Não faça isso, minha filha. Assim ele acostuma mal. Ele tem que saber que criança não pode ter tudo o que deseja. Coma você o queijo e deixe que ele coma as cascas. Ele gosta de comer casquinhas. Sempre as come. Gosta também das casquinhas de pão. Eu sempre dou."


Minha mãe, candidamente, respondeu: "Mas eu não quero que meu filhinho coma casca de queijo. Deixe que eu dou a ele o meu pedaço."


A velha ficou possessa. "Seu filho?", esbravejou. "Essa peste é seu filho, então? Pois leva ele daqui. Some com essa sarna, esse piolhento. Se ele é teu, vai e cria tu mesma."


"Pois é o que vou fazer", disse minha mãe.  

E saiu comigo dali para nossa choupana.


Ainda de Tia Margarida, lembro que, alguns anos mais tarde, eu deveria ter sete, talvez oito anos, fui visitá-la à tarde. Era uma tarde quente. Ela me chamou para dentro e me fez sentar à mesa. Então, com uma doçura terrivelmente peculiar, ofereceu-me um pedaço de melancia. Eu adorava melancia. Era tão difícil termos melancia em casa, mas, quando havia, minha avó, generosamente, deixava que a maior parte ficasse comigo. Na verdade, todos comiam muito, pois minha avó comprava sempre as maiores. Pouco comprava, mas, quando comprava, era para valer.


Minhas mãozinhas tremiam de emoção. A boca se enchia d’água, e eu já me preparava para as delícias oferecidas pela doce melancia. Mas eu esquecia (na época, eu tinha péssima memória, memória de criança) que, entre mim e aquela doce melancia, havia uma muralha de maldade chamada “Tia Margarida”. Com ar astucioso, ela tirou a melancia do armário (geladeira era luxo só de ricos), pôs à mesa, serviu-me um suculento pedaço bem generoso e, quando eu ia levá-lo à boca, interrompeu-me e perguntou com solene preocupação: "Meu filho, você tomou leite hoje?"


"Não, tia. Não tomei."


"Tomou, sim."


"Não, não tomei."


E, retirando o prato com a melancia da minha frente, sentenciou:  

"Tomou, sim. Você não vai comer melancia."


Eu tenho certeza de que a vi sorrir escondida.


Pobre Tia Margarida. Quando morreu, na passagem dos anos de 1972 para 1973, reuniram-se os parentes pobres. Todos. Alguns dias depois, seus bens foram divididos (Tio Alcides já havia morrido bem antes). Coube à minha mãe um belíssimo relógio de parede que tinha o som mais lindo que eu conhecia. Acho que era um relógio americano. Fiquei muito feliz, mas por pouco tempo, pois nem minha mãe, nem minha avó permitiram que aquela tralha, ou qualquer coisa que lembrasse a velha inescrupulosa, fizesse morada em nossa casa. Que pena. Era um relógio tão lindo.


Mas, hoje, lembrando bem, acho que toda vez que o carrilhão tocava, eu parecia ver o olho vesgo arregalado de Tia Margarida perambulando pelos cantos escuros e tramando alguma perversidade. Melhor que o carrilhão se fosse mesmo. Melhor assim.


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