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sábado, 1 de setembro de 2018

Apolônio Lacerda - Um entardecer no Bassorão, com Revirado de Cuscuz


Pous pensem naquele dia cinzento, domingo lá pelo meio da tarde, o bolicho fechado, não fazendo frio nem calor, e uma ameaça de chuva se avizinhando. Pense que as reses já estavam guardadas, a lenha empilhada, cavacos picados para acender o fogo, logo mais, ao chegar da noite, e a cachorrada já se enroscava debaixo do rancho, lambendo as sarnas e a pingola, não necessariamente nessa ordem, enquanto os gatos vadios já estavam aninhados sobre um pelego atrás do fogão, que, ainda que apagado, oferecia um confortável aconchego aos peludinhos do rancho.

A patroa viajara pra cidade, e Apolônio Lacerda, nesta tarde, solito, um taura que apreciava uma boa prosa e um mate com rapadura, olhava entediado para o horizonte, recostado na janela fechada por tampão de tábuas acinzentadas pelo tempo, procurando e esperando a sorte de ver alguma alma se achegando para dividir o mate. Em vão, Com o tempo enferruscado do jeito que estava, todas as almas do Cêrro do Bassorão, naquele momento faziam o mesmo. Nenhum indivíduo com são juízo teria disponibilidade para aventurar-se  pelas veredas da serra em véspera de temporal. Não mesmo. Asim, mascando um graveto, Apolônio aproveitava a solitude para espremer uns cravos do saco, côsa que devia ser feita com muita cautela. Mas até cravos tem limite, e logo o tédio avançava, e não teve outro jeito Apolônio, que não o de cuspir na cabela dum galo que passava no terreiro, e depois disso, escrafunchar no bolso em busca de um isqueiro de pederneira que levava sempre consigo.

Com três ou quatro batidas do toco de lima na pedra sílex, um faisquedo alumia o rancho, e logo um fogo bicharedo crepita nas grimpas do velho fogão de chapa. Apolônio alça mão na velha chaleira de ferro, e com uma caneca de porongo, enche a chaleira e leva ao fogo. Mexe no tição e ajeita as labaredas. Vai até à gamela no canto, passa a mão num naco de sabão, e num ato de coragem repentina, lava as mãos e as fuças, passa um pouco de água ensaboada nas melenas, e penteia os poucos cabelos brancos que ainda restam. O velho espelho emoldurado com dourado descascado serve de parceiro para uma prosa corriqueira, e olhando para si próprio, do outro lado do vidro, Apolônio faz uma murisqueta, e sorrindo, ri de si mesmo.

A chaleira chia, e Apolônio busca numa lata velha, a erva para o mate.Um toco de guampa serve de concha para abastecer a cuia com a erva amarga do rancho. Um tanto de água para cevar, um tanto de água para preencher a cuia, e aí entra a bomba de prata carcomida pelo tempo. Um gole, dois goles, e no terceiro gole, a expressão de satisfação. Acabou-se o tédio, acabou-se a solidão. O mate parceiro faz-lhe companhia, e juntos falam da vida.

Lá fora, o minuano geme, e uma saracura canta no banhado, anunciando chuva. O cusco responde erguendo a cabeça, mas logo volta a enroscar-se para escapar ao frio. As galinhas não ousam soltar um pio, mas até poderiam, porque do jeito que o tempo está, nenhuma raposa terá coragem de sair da toca. A fome pode esperar pro dia seguinte.

Apolônio vai até à janela, que está próxima ao fogão, agora quente, tomando seu mate, e olha pro lado de fora, no quintal, onde tem plantados uns pés de couve, umas verdurinhas, e umas ervas. Estica o pescoço virando de um lado a outro, e encontra os tempero que estava buscando. Toma mais dois goles de mate, e vai lá fora buscar os temperos. Volta, cantarolando, e começa a preparar o jantar. Uma frigideira pendurada na parede serve para o intento, e pouco a pouco, os ingredientes são jogados dentro dela.Um naco de charque bem picado,uns temperos, alho, salsinha, cebolinha verde, gordura, ovo, cebola, e o frito está pronto. Mais uns gols de mate, e com uma colher grande, coloca generosas porções de cuscuz que estava pronto, já aquentado, ali do lado, dentro daquela mistura de fritos, e mexe com delicadeza, movendo a colher pra lá e pra cá com maestria. E em pouco tempo, um revirado de cuscuz está pronto para a última refeição do dia. Ali do lado, um velho e amassado bule servirá para o preparo do chá de mate, feito com a mesma erva do chimarrão. Um tanto de tempo breve sobre a chapa  quente para dar uma tostatinha na erva, e a seguir, a velha chaleira preta divide sua água com a cambona, eum ferver espumante e perfumado anuncia o chá de mate que acompanhá a ceia do revirado de cuscuz.

O leite gordo da vaca "Manhosa", já fervido, deixa à mostra uma cobertura de uma camada grossa de nata, num ladinho do fogão, e Apolônio serve um caneco bem grande com aquele leite, pela metade do caneco, completado pelo chá de mate, e umas duas generosas colheres de açúcar amarelo, lá da venda do Barbosa. Um naco de pão guardado debaixo de um pano velho, sobre a mesa, é colocado à frente da frigideira de revirado de cuscuz, acompanhado por uma tigela de marmelada e outro naco de queijo gordo. Está servida a refeição.

Apolônio assenta-se à mesa, e reza um agradecimento pelas goloseimas. Pede proteção para a patroa que está fora, para as reses guardadas, as galinhas, o cusco e até o gato. Pede pela saúde de Carsulina, sua velha amiga, e por fim, lembra de si próprio no finalzinho da reza. A chuva desaba lá fora.O fogo crepita e cantarola no velho fogão. A mesa está servida, e Apolônio come descansado o seu quinhão de quitutes. É um homem rico. Não há de querer mais que isso nesta vida. É tudo que ele precisa para ser feliz. Depois disso, a noite, o catre, e o sono dos justos.


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