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segunda-feira, 5 de maio de 2025

Odeio falar de arte, e mesmo assim, sou artista

É um paradoxo, mas segundo um antigo conceito filosófico — que acabo de inventar — todo artista é um doido varrido, e apenas alguns conseguem disfarçar. Eu não estou entre os afortunados maestros da dissimulação. Não disfarço as minhas verdades. O máximo a que me deixo convencer é a não falar cuspindo, nem atender ao chamado da natureza fora do meu banheiro. Tirando isso, assumo a minha constatação de que, para viver num mundo com tanta gente certinha, só sendo doido para suportar a vergonha de não ser perfeito. Daí, meto a mão na minha sacolinha de loucura e puxo um punhado para ir lambendo aos poucos.

Em tempos passados, pela natureza da minha profissão — designer — e por essas coisas da vida, fruto de deslizes de sanidade que uns e outros deixam escapar, eu era convidado para muitos eventos ligados ao design, de todo tipo. Hábitos que, aos poucos, fui expurgando, haja vista não haver assunto que pudesse interessar-me nesse meio. Tudo o que eu dizia — e falava muito — era técnico, com objetivo de curadoria ou consultoria. Ou seja, era pago para dizer aquilo que já sabiam, mas que, dito por um estranho (o estranho era eu — e bota estranho nisso!), corroborava as próprias asneiras que os contratantes antes afirmavam. Eram frequentes os gritinhos sussurrados na plateia: “Viu? Não foi isso que eu disse?”. Esta é a razão oculta pela qual se contratam palestrantes e consultores: para dizer por outra boca, e afirmar em relatórios prolixos — que eram enfiados em gavetas assim que o meu desodorizante barato de bicarbonato de sódio (o único que me permito usar) sublimava porta afora da empresa. Mas, no fim e ao cabo (achei que nunca teria oportunidade de dizer estas palavras), eu era pago — e, às vezes, até bem pago — para bajular sem parecer que bajulava, esculachar fingindo que elogiava (o nome disso é sarcasmo), e dar rumo aos pensamentos vazios da criadagem pseudo-criativa por onde eu passava.

Ouvi muito a expressão: “Você é um artista!” — fato que me deixava de cabelo em pé, pois artista e indústria são tão distantes quanto a Terra dos confins da Via Láctea. Artista é doido, surtado, desconexo dos negócios, e aceitar uma tarefa de um artista seria como entregar uma carta branca com autorização de interdição para quem me contratasse. Então eu batia o pé: “Eu não sou artista! Sou designer!”. E explicava: a arte tem um valor intrínseco; o design, valor extrínseco. E eu dizia isso com ar professoral, completando: “Eu explico!”. E explicava mesmo.

Bem, os anos passaram, a tecnologia chegou para acelerar o tédio de quem não é criativo, e o método de trabalho de dez anos atrás é muito distinto do que se encontra hoje. Já não sou mais uma referência para “upgrades” de tendências em polos moveleiros. Minhas palestras sobre tendências resumem-se a 20 segundos de resposta num aplicativo de IA — que eu também uso (inclusive este texto foi revisado por IA). Ninguém mais me paga alguns zeros depois do primeiro algarismo para que eu fale a uma plateia e tenha que recorrer a gracinhas e palhaçadas para mantê-la desperta. Então, depois de calcular todos os prós e contras, tenho que confessar: eu sou, sim, um artista!

Bem, dito isso, já começam a aparecer outros que querem “discutir arte” comigo. Mas nem que a vaca tussa e o boi faça “fiu-fiu”! Eu odeio falar de arte — como odeio falar de design. Vou além: conto nos dedos o número de artistas com quem tenho boa relação. Sabe porquê? Porque tanto eles quanto eu temos um defeito de fabricação grave, que nos obriga a comer, viver, dormir, pagar contas, comprar coisas úteis e até inúteis. E porque temos necessidades desse tipo, escolhemos viver pela arte, porque, em algum lugar, há outras pessoas que gostariam de nos ouvir — não falando — mas conhecendo o que os nossos olhos, mãos e sentidos podem expressar, de maneira a despertar nelas os mesmos sentimentos que sentem os artistas.

Não falo pelos outros doidos, mas digo por mim que, quando escolho fazer um belo desenho de uma casa antiga ou de uma coleção de enfermeiras do século XIX, floreadas com ornamentos estilo Art Nouveau, não estou querendo passar nenhum tipo de mensagem. Mas sei que, nas casas, nas enfermeiras, nos ornamentos, há uma fechadura milagrosa (odeio chamar de mágica) que desperta o perfume das flores da infância, da juventude, das histórias contadas e lembradas em cafés da tarde nas varandas, onde os velhos saboreiam a presença fortuita dos que fingem ter prazer em escutar as suas cantilenas dos tempos de antanho.

Então, arte, para mim, não é para mim — pois continua sendo extrínseca. É para quem ouve os sons dos pássaros atrás das janelas, cantarolando a vida com as cores dos perfumes que as primaveras da minha pena e dos meus lápis coloridos lhes proporcionam.

Pacard — Artista, assumido, azar de quem gostar!

Ah, e os meus desenhos estão todos à venda, viu?





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