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Imagem: InternetNinguém sabia seu nome, nem de onde viera. Apenas o chamavam de "Peregrino", e para os mais incultos, era "Seu Pelegrino". Falava pouco, e olhava de lado, desconfiado, solene, exceto para as crianças, a quem não economizava sorriso, especialmente com o olhar.
Catava umas ervas por onde passava, e com elas chamava atenção sobre si, quando pediam algum conselho para dores do tipo que não aparece, nos aparelhos dos médicos, mas enchem hospitais de doenças, e algumas vezes até, de doentes. Com suas ervas e rezas, ele era capaz de fazer leitura de almas, estas, as mais doentes. Peregrino fazia ar de mistério, balançava uma caneca velha amassada e rodopiava gemendo umas mandingas em linguagem incompreensível, para que os chás pudessem fazer efeito naqueles que deles bebessem com fé. A fé é assim mesmo, incompreensível, e no dia em que somos capazes de compreendê-la, perde o efeito, pois a força está no mistério, assim como o chá, cuja força está em quem bebe e não em quem serve.
Em todas as cidades existem uns doidos. Uns mais, outros menos, mas é só ter um velório, que lá estão eles: os malucos e os bêbados, chorando mais que os enlutados. Bêbado e doido choram com sentimento verdadeiro, ainda que nem tenham conhecido o morto. Bêbado e doido são como mariposas, que não resistem a passarem uma noitada de farra à volta de um poste iluminado, assim também, maluco e borrachos, não se contém diante de qualquer aglomeração de pessoas, ainda que seja velório ou comícios políticos.
Mas também, em todas as cidades, de tempos em tempos, aparecem os peregrinos. São tipos sinistros, silenciosos, avessos à higiene pessoal e à socialização, que deslizam pelas rodovias, ora empurrando um carrinho de mão ou de supermercado, cheio de traquitanas, cuja utilidade seja digna de análise sociológica, haja vista que dificilmente teriam eles, utilidade específica para o tambor de uma máquina de lavar enferrujado, ou cinco pares de sapatos desencontrados e de numeração inferior aos seus próprios pés, amarrados,uns aos outros e pendurados no cabo do carrinho. Ou a pilha de jornais velhos embolados em sacolas de mercadinho, amontoadas com trapos velhos e outras inutilidades simbólicas que chamam de suas. E tente oferecer comida, quando não estão com fome, apenas tente, e ver´a expressão "sheakesperiana" de desprezo e orgulho contrastando com a aparência desgrenhada e indiscutivelmente de uma nobreza às avessas, capaz de fazer calar a hipocrisia do gesto de quem quase força uma esmola para aplacar a consciência.
Peregrino, nosso convidado para este ensaio, fugia bastante deste arquétipo,pois era asseado, agradável, cortês, e acima de tudo, generoso. Abstêmio, estendia a mão espalmada ao rejeitar um gole de cachaça que lhe ofereciam, ao passar por um boteco, onde os bêbados sociais tentavam divertir-se às custas do forasteiro, mas não funcionava com este andarilho.Não senhor. Apenas pedia, delicadamente um copo de água, e quando a fome apertava, com singular educação, olhava em direção aos quitutes do balcão, e tecia bondosos elogios ao perfume que exalavam, e às propriedades nutritivas das especiarias utilizadas na composição dos sabores oferecidos. Funcionava quase sempre, e era convidado a assentar-se com os demais, que respeitosamente ouviam suas histórias e dissertações sobre temas de relevância espiritual ou cultural. Naquele dia, eram vendidos mais refrigerantes e quitutes, do que cervejas ou pinga.Mas até o bodegueiro, com um pano sujo ao ombro, recostava-se no lado externo do balcão para ouvir-lhe dissertar sobre Divina Proporção ou história das civilizações.
Todo andarilho tem uma historia triste, e nem todos querem contar sua história, porque é triste. Muitos caíram na estrada porque perderam alguém da família de forma dramática. Outros, porque caíram na bebida, nas drogas, e desmoronaram em suas carreiras e laços familiares.Cada história é única, mas alinha-se com as demais no resultado dos dramas: as ruas, a estrada, o mundo sem fronteiras a desbravar.
Peregrino não era um andarilho qualquer.Não falava asneiras, embora fosse divertido, bem humorado, contador de piadas, e menestrel. Cantava canções antigas e compunha versos de improviso para divertir a assistência. E como já mencionei, se houvessem crianças no ambiente, as canções eram direcionadas aos pequeninos. Peregrino era crianceiro, adorava os pequeninos, e era amado por eles também. Não era apenas falante, mas sabia e gostava de ouvir também, e em dado momento, sua presença suscitava desabafos e choros, confissões, e pedidos e conselhos. E Peregrino, os dava, mas não ao modo tradicional de perguntas e respostas, mas suscitava os queixosos a formularem suas próprias perguntas, e refletirem sobre possíveis respostas, silenciosamente pensadas e pesadas como possibilidade de mudanças. Era assim que Peregrino deixava saudade por onde passava. Era assim que edificava relações em sua jornada. Jornada que teve um começo, mas não havia planos para o fim, pois acreditava que o mundo é redondo e há muitos lugares para caminhar, muitos ouvidos para levar esperança, muitos corações machucados para abrandar com seus chás, suas rezas, e sua prosa agradável.
Peregrino nunca se despedia. Odiava despedidas! Dormia à porta dos botecos por onde havia encontrados novas amizades na noite recente, e ainda noite, precedendo o alvorecer, com a mochila às costas, bebia uns goles de água, e seguia seu curso. Ninguém sabia de onde vinha, e tampouco havia condição de saber onde encontrá-lo novamente, mas aquele andarilho que chegava recusando bebida e saía ao amanhecer, deixava profundas lembranças em todos, ainda que com poucas horas de proximidade. O maior atributo de Peregrino era sua sabedoria quando se calava,e era o seu silêncio que intrigava e deixava saudade. Peregrino talvez fosse um anjo. É, talvez fosse sim. Isso eu não sei dizer, pois não tenho uma tabelinha que identifica anjos, exceto quando já se foram, sem deixarem pegadas. É! Peregrino caminhava com passos bastante leves, e nunca deixou pegadas. Só saudade.
Contatos para palestras: (48) 999 61 1546
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