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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Gauderino - Conto

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Imagem: internet


Gauderino assentava-se à soleira da porta do ranchinho, e ficava só bombeando o movimento dos transeuntes. Negaceava as nuvens e agourava o tempo. Levantava mecanicamente a chaleira preta para encher a cuia, e trocava de mão, "pous" era falta de respeito servir um mate pela mão canhota. Gauderino era pobre, mas guardador dos bons costumes, como devia de ser, sim senhor. Trocava de mão para servir a si mesmo, porque havia muito que não tinha mais ninguém para estender uma cuia.


Vivia só, ainda que cercado de vizinhos. O choupo em que vivia, há muito não estava mais perdido à léguas do povoado, porque o povoado havia buscado avizinhar-se com a maloca de Gauderino. Não mais acordava ao canto do galo, mas pelo alarido do povoedo que atirava pedras na cancela de telhas velhas de zinco, que separava seu ranchinho da ruela lamacenta e malcheirosa. Entre a cancela de zinco e o rancho, um carreirinho ladeado por brejo, e escondido entre as folhas do brejo, um e outro pé de couve, um chazinho pra gripe, e uma morangueira que se adonava do espaço, espargindo suas largas folhas agarradas às mangueiras de seu caule. Gauderino olhava para as mangueiras, tragava um gole, e viajava no lombo da saudade até a querência da infância, onde brincava com os canudinhos das morangueiras durante as chuvaradas de verão. Olhava os pés de couve espalhados, e tomava outros dois ou três goles.

Gauderino fora um habilidoso fazedor de coisas. Mexia com ferramentas, com madeiras, pregos enferrujados, e com graxa patente, aquela preta, que se passa em roda de carreta. Hoje, o velho já tem mãos trêmulas, que não firmam mais o martelo e o facão, para talhar um boizinho de figueira para os miúdos. Gauderino apenas caminha de um lado a outro, com a chaleira preta em uma mão, e a cuia com cor de cuia na outra, enchendo e tomando, enchendo e tomando, enchendo e suspirando. Gauderino dá a volta no rancho, e larga a chaleira num velho banco de pé em "V", para apanhar um graveto e espantar um guaipeca que cagava na moita de chá de Pariparóva.

-Te raspa daqui, cusco maleva! Eia-te que te capo e apincho os bago pros gato, animáli xujo!
O cusco esguia-se em curva, enfia o rabo no traseiro e sai ganindo umas palavras de desacato ao velho resinguento. Depois, tudo volta ao que era. A chaleira volta para a mão, e a cuia permanece na outra mão.

O galo canta cedo, mas nunca encontra Gauderino dormindo. Não senhor! Quem tem a solidão por parceira, não tem tempo nem vontade para dormir. Dormir é coisa de quem não vive de lembranças e precisa sonhar. Não senhor! Gauderino, assim como todos os solitários, não brincam com a insônia, pois é a única companheira de quem vive só. Ao menos, na noite escura, insônia e solidão se aparceiram, e abraçadas, esperam o alvorecer. O galo que cante quando quiser, mas galo tem mais o que fazer do que controlar a horas de dormir das pessoas. Gauderino pensa assim, sim senhor.

Gauderino tem um causo de vida, mas não gosta de comentar. Envolve apreço e bem querer, e isso é cousa pros mais moços. Um taura enrugado pela vida não tem tempo a perder com reminiscências de  feitos antigos que façam doer o coração. Não se mexe com os sentimentos da pessoa, e por isso preferia falar de feitos e peleias em guerras e revoluções de onde nunca chegou perto. E quem disse que é preciso terciar ferro numa justa para sentir o tinir do aço nas lembranças edificadas pela solidão? O fogo de chão e a trempe balançando a cambona do refestelo de logo mais são motivo suficiente para engendrar um causo, e do causo, razão para soltar uns gritos de entusiasmo ao falar de uma carreira em cancha reta, ou uma bebedeira e briga de faca num bolicho de lá adiante, por conta de umas percantas desbocadas. Assim, de causo em causo, de cuia em cuia, de olhar em olhar, de gritos de vizinhança, Gauderino devorteia o rancho á espera da morte, com quem pretende ainda tomar umas cuias, antes da derradeira mateada na querência do infinito.


Convites para mateadas, churrascadas, charlas e palestras, pelo zap: 48 999 61 1546. É só botar uns pilas na guaiaca que eu me bandeio pra prosa.


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