Casarão dos Castilhos, by Pacard, 2021
A Gramado de 2040
Pacard (Escritor - Designer - Contador de Causos)
Longe, muito longe de mim, designar-me profeta. Isso não se escolhe. É dom que D's dá, e com D's, não se negocia. Se espera, aceita, e agradece, porque, no lucro, estamos sempre. Então,ao Amado Criador, não interessou, por ora, tornar-me profeta, posto que o preço de tal atributo é sempre muito alto. Todos os profetos amargaram cruentas vias e grande parte deles, sucumbiu pela dor, até porque, saber o que vai acontecer, e muitas vezes, não entender o que acontece, pode causar dores na alma, além das dores do corpo, que os destinatários dos vaticínios causavam, por intolerância, e por que, mesmo sabendo que mudar uma má notícia pode depender muito mais de nós, do que do Altíssimo, é muito mais fácil culpar o emissário, do que perceber que a notícia era apenas uma admoestação, uma advertência, porquanto ainda estaria em tempo de mudar. Assim sendo, reitero que não sou profeta. Sou apenas um observador atento, com algum razoável resquício de memória, ao que chamo de lembranças, grande parte delas, boas, pois também recebi a graça de abstrair aquilo que me machuca, assim, tanto malvados, quanto malvadezes de meus tempos inglórios, batem em mim como água bate nas penas do pato.
Já que não sou profeta, também futurólogo, não almejo ser. Vamos entender que futurólogo não trabalha com os mistérios do espírito, mas com o espírito dos mistérios, isto é, trabalha com a lógica das evidências, diante daquilo que reúne em suas observações, por exemplo: se o céu está carregado de nuvens espessas, ribombam trovões, e é riscado por luzes contínuas de relâmpagos, associando-se isso aos fortes ventos, natural é que muito em breve será necessário recolher-se, pois chuva certamente virá. Assim é a ciência da futurologia: evidências!
Falemos de Gramado então. A minha amada Gramado, a Gramado das minhas doces lembranças dos tempos em que floresciam as hortênsias e azaléias, e o minuano cortava as madrugadas cantarolando cantigas de bravatas ancestrais. Tempo em que as papoulas e amores-perfeitos, miúdas e cintilantes flores, alcatifavam os jardins enfileirados da Avenidas Borges, colorindo os dias daqueles que perambulavam em périplos de vaivém entre um canteiro e outro a apreciar o tapete vivo das primaveras. Falemos da Gramado repleta de chaminés, que com tímida fumaça azulada transbordava perfume de café das casas iluminadas pelas janelas da cozinha, onde a família começava os dias, e encerrava as noites, ao perfume do pão quentinho, da sopa ao entardecer, da carne de panela que acompanhava o arroz branquinho, a massa caseira, a moranga com milho da horta aos fundos, e o doce de pera em calda, armazenado em prateleiras para o refestelo da família, no ano todo.
Falemos da Gramado, onde todos se conheciam, mas nem todos se gostavam, como deve ser a vida, pois um lugar onde todos se gostam sem diferenças, é um lugar tedioso, e isso Gramado nunca soube ser: entediante! Gramado nunca causou tédio a ninguém, por uma razão muito simples: o tédio é o vazio da falta de objetivos, e objetivos sempre abarrotaram as despensas dos gramadenses, sempre. E as pessoas, como disse, se conheciam, se gostavam ou se odiavam, e tinham assunto para as manhãs e entardeceres nos cafés e botequins, nas varandas, e nos armazéns, que eram mais que pontos comerciais de lucro e abastecimento, eram lugares de convivência do quarteirão, da vila (porque nesse tempo não haviam bairros: eram vilas: Baixada, Vinida, Cantão, Vila Moura, Mato Queimado, e Lago Negro (Sim, Lago Negro já foi uma vila pobre, onde moravam pobres em seus casebres, cujos meninos jogavam bulita, caçavam de funda, e mandava, respeitosamente a mãe tomar naquele lugar, mas ainda assim, chamando-a de "senhora" : "Vai tomá no cu da senhora!")
Falemos de Gramado que celebra 50 anos do Festival de Cinema, e engavetou num cantinho a "Festa das Hortênsias", cujas rainhas e princesas desfilavam, junto com as demais riquezas do município, em carros alegóricos ricamente ornamentados com hortênsias e mais flores. Falemos da Gramado que distribuía cartilhas nas Brizoletas pelo interior, e no Santos Dumont, ao centro, e que fazia do Lago Negro a praia de todos os que não tinham dinheiro para passarem o verão em Tramandaí.
Falemos da Gramado laboriosa e ambiciosa, que em cinco décadas tornou-se a desejável Disneyworld brasileira, antes Suíça brasileira, mas como a Suíça permanece a mesma Suíça desde Zwinglio, estagnar não pertence ao dicionário de Gramado, e o universo dos gritos frenéticos de turistas desfrutando adrenalina e bom vinho, representa bem mais o cenário de uma válvula de escape da ebulição contemporânea. Representa bem mais que banhar-se nas cascatas dos Narcisos, Véu de Noiva, ou tremer de ouvir falar na Cascata da Morte, aos fundos da velha casa do Tristão. Representa bem mais que disputar uma mesa no Café Tia Nilda, ou um lugar à mesa no café Cacique, cujos lugares eram designados aos seus frequentadores fiéis, para deleite dos que ficavam de pé, à volta, ouvindo as conjurações políticas deste ou daquele partido. Representa muito mais que desejar "bom dia" dezenas de vezes ao dia, à casa encontro pelas calçadas, e janelas abertas para o mundo, na jornada entre ir e vir ao "Gramado", como chamavam a sede do município, pelos mais humildes. Representa cessar o barulho e apurar o ouvido para ouvir o apregoar do sino da Matriz, que anunciava um velório, ou a marchinha militar alemã, ao passar um recado à comunidade, por uns trocados, que o Padre Manéa e Isidoro faziam.
Falemos da pequena multidão reunida em frente à Sociedade Recreio durante o escrutínio dos votos nas disputadas eleições, e falemos do aperto de mão dos candidatos, ainda ao manhecer, de casa em casa, implorando por votos, onde o mais difícil era sair sem um café com mistura, ou uma galinhada com arroz, nas reuniões políticas, á noite, durante as campanhas. Falemos de cantar o Hino nacional, à entrada da escola, todos os dias, e de ensaiar a marcha de sete de setembro, ainda no mês de agosto, uma hora por dia, cinco dias por semana. Falemos de tomar refresco gelado nos botecos, ouvindo o tagarelar de vantagens dos bêbados gabolas, e comer um "Farroupilha", porque o sabor do ovo e do pastel eram diferentes dos que se comia em casa. Falemos de levar os sapatos nos "Irmãos Broilo", para conserto, porque um bom par de sapatos poderia durar quase uma geração, se fosse bem cuidado, pois no dia a dia não se usava sapatos, não os meninos. Era "chinela de dedo", a que a televisão teimou em transformar nas "Havaianas". Falemos do perfume misto de café moído na hora e sorvete do Café Brasil. Falemos dos filmes de sábado e domingo á noite, além das "Matineés" nas tardes dominicais, do Cine Embaixador, que depois, mais suntuoso, tornou-se em "Palácio", e nos palácios, o povo permanece do lado de fora, tremulando bandeirolas para os príncipes... Até no dia em que os nobres se enclausuram de cordões, e o povo volta às suas choupanas.
Falemos da Gramado que terá que mudar os nomes das ruas, pois seus heróis já se escondem na escuridão do esquecimento.
Falemos de 2040, o ano em que o mundo terá que consumir o que sobrou de humanidade, e que a geração que contava histórias em 2022 não soube ensinar a geração seguinte a ouvir histórias. E a história que não foi ouvida, não terá mais como ser contada.
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