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sábado, 4 de maio de 2024

Como posso confortar alguém que perdeu tudo numa catástrofe da Natureza?

É muito fácil confortar alguém, principalmente estando nós mesmos já confortados, seguros, e ilesos, então, sim, fica muito fácil orar, enviar um pequeno donativo para os grupos organizados que distribuem socorro aos desabrigados, que acolhem e amontoam os sobreviventes em pavilhões, escolas e igrejas nos locais não afetados, enfim, a dor do outro é sempre grande, mas nossa condição de segurança nos permite estender um abraço, ainda que virtual aos flagelados. Isso, porém, não minimiza os efeitos posteriores à tragédia, porque as águas irão baixar, o caos se aquieta, e a vida se volta para a rotina de esperar, pelos noticiários, pela próxima pauta que tomará o lugar desta, seja um escândadlo político, uma guerra no outro lado do mundo, ou um inocente agredido, atropelado, ou abatido numa troca de tiros entre bons e maus, pelos recônditos malditos da existência.

Porém, depois que os helicópteros de forem, depois que não houver mais a grande comoção, ainda resta, para quem foi atingido, o comprometimento com a "vida que deve seguir". Mas como? A casa ruiu, não há mais rua, seus pertences se desmancharam, foram levados, seu emprego se foi, porque também a empresa ficou debaixo d'água, virou escombro, lembrança, destruição. Bem, aos menos desafortunados, resta respirar "aliviado", porque "estão vivos", porém nem todos. Mas a vida precisa continuar, sem casa, sem chão, sem roupas limpas, sem uma panelinha e um bico de gás, para cozinhar, sem ter para onde ir buscar um chá para mitigar a dor indigesta pela água contaminada que bebeu, sem saber a quem recorrer, porque todos estão na mesma condição.

Pergunta-se, tavez, o contrito leitor (leia-se no sentido gramatical e não genérico, portanto incluso a elegante leitora também): O que um escritor senil, acomodado ao conforto de sua sala, em um lugar onde apenas poucas gotas da chuva da noite (sim, aqui na ilha, chove mais à noite), pode entender dessa tragédia que assola o seu amado Estado natal, e aos poucos começa a chegar ao Estado que o acolhe?
A pergunta é justa, e a resposta é precisa: Porque quando ainda não era tão senil, senão apenas abraçado na coragem quase irresponsável da juventude, esse escriba que vos tecla, também passou por uma calamidade da mesma magnitude (a tragédia em sua imensidão dolorosa não se mede pela superfície do mapa, mas pela dor que pode causar, ainda que a uma única pessoa, pois, mesmo que somados todos os afligidos, há a dor de cada um a ser considerada). Isso aconteceu mais de uma vez no seu (meu) histórico familiar: tragédias amontoadas, começando pelos ancestrais, judeus, depois chamados de "cristãos novos", fugindo aos borbotões das fogueiras e forcas promovidas pela Inquisição espanhola e portuguesa. Depois, no âmbito familiar, tendo o bisavô materno sido assassinado com um tiro na cabeça, tendo ao seu colo, um bebê de oito meses, minha avó. Esta, depois de adulta, com poucos anos de casada, teve seu esposo, com cerca de trinta e poucos anos de idade, também assassinado pelo genro (sinto dizer, que o tal era meu pai), e sendo proprietária de abundantes terras situadas às margens do Rio das Antas, o mesmo que também ceifou vidas nessa tragédia presente, precisou vendâ-las, a um sujeito escroque, que de seis parcelas, pagou duas e de arma em punho ameaçou quem tivesse ido cobrar as demais promissõrias. Minha avó, então, com três filhos adolescentes (miha mãe tinha 17 anos nesse tempo, e um neto de um ano de idade (eu, eu, eu!), amontoa os poucos "mijados" em cima de uma carreta de mulas, e volta, nesse estado de espírito para Gramado, sua terra natal. São oitenta quilômetros por stradas íngremes, perigosas, e barrentas, até o lugar onde os parentes se juntam para construírem, em um terreno emprestado, um ranchinho de tábuas. Poucos anos depois, minha avó, que nem teve tempo de chorar o tanto que precisava, perdeu um filho, Esaú, em um acidente de trabalho, longe de casa, e por lonos anos de minha infância, flagrei minha avó chorando escondida, se apressando em disfarçar à minha chegada, pois ela não passava recibo de fraqueza.
Foi nesse ambiente que eu cresci. Vou acelerar o arquivo (antigamente se dizia "filme, fita", e chgar na parte onde, por ocasião do nascimento de meu segundo filho, consegui um emprego como gerente de vendas em uma fábrica de calçados, em Igrejinha (olha ela aí outra vez), e depois de muito trabalho, amealhei amigos e uns caraminguás, e tomei a iniciativa de alugar uma fábrica muito antiga de esquedrias, e nela montei a minha própria fábrica de móveis, trabalhando sozinho, porém, com muitos pedidos de móveis, cheques na mão, com os quais subi á Gramado, e comprei uma carga de compensados, com os quais eu cumpriria os pedidos, e com os restantes, poderia aceitar mais encomendas. Mal entreguei a primeira encomenda, feliz, realizado, esperançoso, e veio a enchente. A barragem do Blangue foi aberta, porque estava transbordando, e em menos de duas horas depois, as cidades de Igrejinhas e Três Coroas, ficaram submersas. Escapamos por divina providência, pelo lapso de 15 dias, que mudamos para um edificio novo, pois a casa de vila, onde morávamos, ficou submersa até o bico da cumeeira, com mortos encontrados em seu terreno depois que as águas baixaram.
Passei este dia com água até a cintura, tirando pessoas de dentro das casas. Uma grávida, emprestou a barriga, como ilha, para as formigas, e quando a retiramos, estava em estado lastimável. Levei-a com um filho pequeno, para meu apartamento, onde minha esposa, com dois bebês também, cuidou dela por aquela noite. Ao final do dia, a água havia desaparecido. Olhei para o ceú estrelado, para o rio, que poucas horas antes arrastava casas e pessoas mortas à nossa frente, e agora, calmo, límpido, nem parecia aquele monstro desolador de poucas horas antes.

Na manhã seguinte, fui até a fábrica, e vi uma pilha imensa de compensados, boiando na água acumulada no galpão. Tudo foi destruído. Virei as costas e fui embora. Poucos dias depois, o efeito das águas, foi uma pneumonia, que me deixou por quinze dias hospitalizado. Tudo particular. Minhas reservas para os trabalhos da fábrica, se foram. As dívidas chegaram. passei a dever até conta telefônica até clientes que haviam adiantado dinheiro para seus móveis. Procurei então fabricantes de Gramado, pessoas a quem imaginei como amigos, e não apenas negaram, como destilaram todo o veneno que guardavam, a falar mal de mim, incitando meus clientes a me denunciarem como "estelionatário". O rescaldo da enchente estava começando a chegar. Arrumei trabalho como vendedor de  materiais de construção e toldos, para uma empresa de Porto Alegre. Bati perna em varios municipios do Vale até a serra, vendendo. Vendi muito, mas não recebi comissão. Tomei calote. Urubus cheiram carniça e fazem aquele bailado de morte pelos ares. Vi muitos acima de mim. Até que fui oferecer meus produtos à uma fábrica de chocolates começando a ser famosa, a Prawer. Fui recebido pelo diretor, o Caio, que me deixou falar por mais de meia hora, e quando parei para respirar, ele disse: Não quero comprar nada, pois a construção está quase pronta e já temos tudo, mas quero que voce seja nosso gerente de vendas. Negócio fechado. Voltamos para Gramado, fomos morar num casebre que eu mesmo havia construído, no terreno de minha avó. 

Mal haviam passado duas semanas, e os credores me encontraram. Uma comissão de credores, foram até a fábrica onde eu trabalhava, pedindo para me chamarem. Caio, meu chefe, me chamou á sala dele e disse: "me conte tudo". E eu contei. Ele disse então: Vamos juntos receber estas senhoras. Quando entraram na sala, estava eu, encolhidinho, tremendo, num cantinho, e elas destilaram todo o ódio que sentiam. Caiu as interrompeu,e perguntou: "Quanto ele deve?"
 "Ele deve tanto! - Responderam".  Caio olhou pra mim e perguntou: "Quanto tu podes pagar por semana (era como eu recebia) até quitar a divida?" Acertamos uma quantia por semana, na verdade, eu devia, nessa altura para apenas uma pessoa, mas o comitê do: "mata, esfola", foi junto. Foram cerca de seis parcelas em seis semanas. era uma ninharia, e ficou acertado que semanalmente eu desceria à Igrejinha e pagaria pessoalmente, na casa dela, as parcelas. E assim foi. cada centavo foi pago!

Perguntaria você: Mas porque tinha que contar essa historia triste e até vergonhososa da minha vida, pra falar de conforto aos flagelados da enchente de agora?
Contei isso pra dizer que o pior vem agora, e isso não é conforto, mas um alerta, não aos que sofrem, mas aos que tem a capacidade de fazer por estes, o que o caio Tomazelli fez por mim quando eu não era ninguém, um boneco de Judas pra ser espancado, mas que consegui obter um olhar de quem viu em mim um potencial de retorno e competência, e não alguem que foi açoitado pelo infortúnio. Escrevo isso para dizer que os dias difíceis são apenas oportunidades de entender que D-us O criador, não nos castigou com a fúria da Natureza, como tentam nos impor alguns ignorantes, mas que embora estejamos em meio á tempestade, e se chegamos em terra firme e seca, pela mãe de alguém, houve Alguém ainda maior acima deste, e que a dor forma calos, e os calos nos protegem de caminhos ainda ásperos que teremos que andar até pisarmos no chão macio da Canaã Eterna.
Falta pouco, muito pouco.
Como posso confortar alguém que perdeu tudo numa catástrofe da Natureza?
Dizendo: Eu passei pelo que você também passou, mas fui amparado e estou aqui.
D-us seja louvado!




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