Eu moro num lugar privilegiado,aliás sempre morei, e até mesmo nasci num lugar assim, pois só o fato de ter nascido na Serra do Pinhão, na costa do Rio das Antas, e sair de lá vivo, já foi um privilégio imensurável. Pois é assim que é. Não suficiente em morar em um lugar com tantas belezas, O Altíssimo estendeu sobre mim a generosa possibilidade de instalar minha pequenina e quase insignificante empresa, o meu empório, no alto de um edifício, no sétimo andar, que tem uma vista privilegiada e reflexiva. Privilegiada, porque tenho um raio de visão de cento e oitenta graus de uma parte central de Florianópolis,tendo em minha tevê de mil polegadas uma vista impressionante deste panorama. Daqui vejo, ao mesmo tempo, além do cemitério, o maior mangue urbano do mundo, o moro das tevês, o bairro da Agronômica e por fim, o mar.
Embora a foto de capa desta reflexão mostre a imagem, quero descrever um pouco daquilo que a imagem mostra dentro do que não mostra, mas faz-me pensar: a vida, a morte e as recompensas. A partir de minha janela,em primeiro plano, avisto o maior cemitério de Santa Catarina, o cemitério do Itacorubi, que parece uma cidade planejada vista do alto, e nas entrelinhas, não deixa de ser, pois nos cemitérios, especialmente aqueles históricos, mais antigos e imponentes, é possível reconstruir-se todas as etapas da história da arquitetura e dos costumes religiosos de um povo. Cada lápide conta uma vida, e em cada rosto na porcelana pequenina fixada sobre a tumba, há um olhar que busca o infinito, a eternidade, uma resposta silenciosa.
O cenário a seguir é a recompensa pelo preço de examinar a morte antes de aportar à vida,as montanhas, a cidade, e o mar. Isso faz-me lembrar Jerusalém, onde, olhando em direção ao Monte das Oliveiras, há dois cemitérios: Um cemitério árabe, junto dos muros da cidade, escorrendo pelo vale do Cédron, assim descrito pela Wikipedia:
"O Vale do Cédron (em hebraico: נחל קדרון, em árabe: وادي الجز, "escuro") é um vale próximo de Jerusalém, descrito pela Bíblia como tendo grande significado. Também é chamado de Vale da Torrente do Cédron, devido a um fluxo continuo de correntes de águas por ocasião de enchente repentina nos meses de inverno chuvosos. Atualmente o nome dado à sua parte inferior, Uádi en-Nar ou Wadi al-Joz ("uádide fogo"), indica que é quente e seco na maior parte do tempo.
Por que escolhi estas duas imagens para esse ensaio? Porque há um modelo de pensamento a ser construído dentro desta geografia, aparentemente sinistra, lembrando que se do lado da cidade, escorre, como disse, o cemitério árabe, descendo até o vale, já espelhado, subindo pelo Monte das Oliveiras, há outro grande cemitério, este do povo judeu. Então, se estivermos do lado do Monte das Oliveiras, olhando em direção à Cidade Santa, assim como aqui, estando de minha janela, a olhar para as montanhas, a cidade e o mar, antes tenho que ver as pedras lapidadas e polidas daqueles que se encontram no meio do caminho. Esta visão faz-me lembrar que para chegar ao êxito, antes devo lembrar que no meio do caminho sempre existe a possibilidade do fracasso, uma vez que a morte foi o grande fracasso do Homem desde a sua criação. Percebo que para chegar a Jerusalém, que é o símbolo da promessa de vida, o caminho da morte está à minha espera, e devo atravessá-lo,mas como fazê-lo, sem perder-me no emaranhado sinistro que me separa do meu objetivo?
A resposta é unica para todos os casos: Andando pelo caminho que corta a morte ao meio e encurta a distância à vida. Compreendendo as palavras do Messias, que, olhando para Jerusalém disse que era O caminho, a Verdade e A Vida. Da morte para a vida há um único caminho chamado verdade, ao passo que da vida para o vazio há um largo campo chamado morte. Ainda assim, não há problema algum em contemplar este campo, na certeza que ele é apenas um obstáculo, mas que há um mar, uma montanha, uma cidade e uma Jerusalém para nos receber depois da jornada.
Shalom