Não, meus queridos leitores e minhas perfumadas leitoras. Não se trata de nenhum manifesto de mágoas, nem tampouco de críticas ao notável progresso alcançado pelo lugar, onde, geograficamente, tornou-se notável à minha própria existência e referência pessoal.
Não se trata também, de crítica social, política, econômica, ou existencial. Nada disso também.
Trata-se- tão somente de uma análise comportamental de uma sociedade que eclodiu de si própria, como uma borboleta se desvencilha de um casulo, onde sofreu sua transformação natural.
Gramado pode ser desenhada em três estágios, neste raciocínio.
O primeiro estágio, é a formação do núcleo habitacional, social, e humano, a partir do conjunto de oportunidades de seus primeiros empreendedores, de seus hábeis negociadores, que perceberam o momento de oportunidades ao longo de sua história, desde os pioneiros, que começaram com o extrativismo da erva mate, da madeira, seguido pelo senso de oportunidade que lapidou as bases do turismo, com a habilidade de convencimento e visão empreendedora dos pioneiros líderes locais, que levaram os veranistas da capital, com suas famílias, de trem, para o quinto distrito de Taquara, oferecendo boa comida, lazer (por causa dos filhos dos veranistas, que praticavam equitação, foi construída a Carriére hípica), enfim, pela genialidade de homens e mulheres, como Leopoldo Rosenfeldt, Oskar Knorr, e outros, dos quais ainda falaremos em outros capítulos.
Nesse tempo, por perceber a oportunidade, gerada pela proibição de uso das praias gaúchas, que estavam sendo cenário de guerra, pelos ataques dos submarinos alemães aos navios mercantes brasileiros, Leopoldo Rosenfeldt, juntou-se aos poucos hotéis, que tinham restaurantes, no vilarejo, e aliou-se ao uso do trem, que já passava por Gramado, e motivou os porto alegrenses abastados a investirem suas férias de verão, com suas famílias. Também, por recomendação médica, muitos veranistas passavam vários meses em seus chalés, ao que, em sequência, formou hábito de veraneio, cada vez mais frequente da "Cidade Jardim das Hortênsias". Este foi o primeiro estágio.
O segundo estágio, veio com Elisabeth Rosenfeld (não era parente de Leopoldo, que era Rosenfeldt), judia, fugitiva da guerra, e instalou um pequeno atelier de cerâmica, pintura, e madeira, que evoluiu para tapeçaria, e deste hobby de uma artista plástica, nasceu o mote que deu à Gramado a fama de cidade artesã, criativa, empreendedora.
O terceiro estágio de Gramado, veio com a proliferação de eventos, seguido de gastronomia, hotelaria, chocolates, e por fim, dos parques temáticos. Tudo isso promoveu continuamente a cidade, a tal ponto em que nada menos que o "perfeito" é permitido e aceitável aos novos padrões. Gramado tornou-se a cidade dos sonhos de todos os empreendedores, antes pequenos, hoje de corporações, e qualquer investimento neste complexo, começa a rodada falando em dezenas de milhões de Reais ou Dólares. Gramado estabeleceu o cacife para as apostas, em valores de cinco zeros, ou mais. Em Gramado, tudo é superlativo, tudo é qualificado como excelente, tudo é exigido como o melhor.
Foi neste ambiente, que fiz um passei minucioso por algumas semanas, recentemente, e ainda que levasse à tiracolo meu portfolio com muitas páginas, e meu Currículo, também volumoso, senti-me completamente despreparado, inepto, para servir aos novos padrões que Gramado exige, considerando que eu qualificava minhas aptidões como um expert em uma Gramado que encerrou seus dias no tempo em que vim morar em outro lugar. Isso comprova que de certo modo, meu saudosismo emperrava Gramado (estou brincando, não tenho tal poder). O fato é que o mundo gira, e o planeta não é formado de uma rocha sólida e única, mas é uma bolsa efervescente, contida por placas tectônicas, que tem movimentação e determinação próprias em seus deslocamentos, e cada uma destas placas, dá personalidade aos que nela se apoiam. É evidente que eu disse uma metáfora, mas de certo modo é mesmo assim: Cada lugar recebe novas pessoas, que modificam o modo de ser, agir, e pensar, e constroem, ao seu modo, o lugar onde investem seu trabalho, dinheiro, e sonhos, e edificam suas próprias histórias de vida.
Chego à esta conclusão ao compreender que a Gramado da qual eu lembro, escrevo, e desenho minhas histórias, torna-se agora uma Gramado de fábulas e lendas, talvez crendices, e um passado desnecessário, uma vez que o passado de um povo, de uma família, de uma terra, só importam àqueles que brotaram de tais raízes, que cultivaram tais costumes, e que cultuaram certas tradições e crenças.
Gramado prescinde de tais recordações, e a Gramado que encontrei, não é mais a minha Gramado das lembranças que carrego, e quando descrevo tais recordações, soam como fábulas aos que olham para aquele ponto da rua que menciono, e em lugar da casa de madeira, pintada cor de alumínio, com janelas marrons, deu lugar à suntuosa loja de artigos de luxo, ou um elegante restaurante, ou hotel, ou outro atrativo comercial qualquer. Certo. É o tempo desta geração e destes empreendedores. Apenas uma coisa será diferente, para os que vierem, anos mais tarde: Não haverá mais poesia a recitar, nem perfumes por lembrar, nem o sotaque local das pessoas, a imitar, porque não vejo mais rostos, e sim chips, espalhados pelas ruas. Não se para para cumprimentar o transeunte, e falar sobre o clima, ou a dor nas costas da noite anterior, pois as redes sociais já comunicaram isso, junto com o estudo científico que apontou soluções, bulas de medicamentos, e o escore de visualizações daquela comunicação de dor nas costas da noite anterior.
Gramado é um perfeito exemplo do que o sucesso pode oferecer: Vazio de alma! Vazio de lembranças! Vazio de vidas. Milhares de pessoas se esbarram, e não se tocam. Se olham, mas não se veem. Falam, mas não se comunicam. Gramado deixou de ser um conjunto de lugares lindos para desfrutar, mas um composto mecânico de produtos para "selfies" (até uma loja com esse apelo eu encontrei). Gramado é a cidade mais linda do Brasil. Mas sufocantemente triste, vazia de almas, e plena de vazios existenciais.
Caminhando pelas ruas e avenidas por onde passava diariamente no trecho de minha casa até o centro, não encontro mais nenhuma casa de habitação. Vejo apenas lojas imponentes, calçamentos luxuosos, e até as flores competem com a suntuosidade da arquitetura. Gramado é uma pobre cidade rica, ricamente semeada de pobreza espiritual.
Procurei as pessoas em Gramado, e encontrei pessoas se procurando, diminutas entre as portas de vidro e as paredes brilhantes. Procurei almas, e não encontrei nem corpos. Eu sou Gramado, e nos espelhos vi a Gramado que fui, em busca da Gramado que não serei jamais. E muito amor gera muito sofrimento, assim, o amor que sinto pela Gramado da qual eu lembro, transformou-se em vazio, ao encontrar a Gramado que somente será lembrada pelos arqueólogos, jamais pelos historiadores.
Procurei uma Gramado de gente e encontrei uma Gramado de pedra, empilhada por gente, cujos nomes nunca saberei dizer. A Igreja de Pedra, foi construída por Aquilino Libardi. Então, quem sabe dizer o nome dos construtores de todas as demais edificações? Durante muitos anos, eu fui o designer que serviu às marcenarias e fábricas de Gramado, mas pergunte à algum dos remanescentes, se sabe quem criou este ou aquele móvel, que já foi fabricado por eles?
Pergunte à qualquer pessoa, de idade inferior à 40 anos, se sabe quem foi a última rainha da Festa das Hortênsias. Pergunte se sabe como eram os carros alegóricos enfeitados de hortênsias. Pergunte se sabem onde ficava o Grupo Escolar Santos Dumont na década de 1960. Pergunte se sabem que aquela ululante velhinha de 99 anos de idade, que recebeu a primeira vacina contra a COVID-19, foi diretora desta escola. Pergunte o nome dos cinemas anteriores de Gramado. Pergunte quem foram os primeiros médicos, os primeiros prefeitos, os primeiros professores, e obterão risos de estupefação e incredulidade pela "inutilidade da pergunta". Mas, pergunte de quantos milhões será o próximo empreendimento, quanto foi investido nos recentes parques e atrativos da região, ou quantos carros excessivamente caros são disponibilizados para aluguel de ostentação nas lojas especializadas da cidade, isso saberão dizer. E por fim, pergunte: Qual a sua denominação religiosa, e se a pessoa sabe explicar as razões teológicas pelas quais é praticante desta religião, que as palavras se contorcerão novamente no palato, e tropeçarão ao pronunciarem o próprio nome de família.
Para arrematar a tortura, pergunte o nome de seus bisavós, paternos e maternos. Apenas isso. Se souberem os nomes dos avós, estarão no lucro. Logo, logo, os nomes dos pais serão substituídos por emojis, até que um dia, o próprio nome, será um meme, ou avatar. Apenas isso.
Quem não sabe de onde vem, tanto faz para onde vai.
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