Quando menos nunca é demais - Uma nova revolução no comportamento
Pacard - Escritor
Sou um homem que, por essas sortes que se tem na vida, alcançou a avançada idade do ancionato, vírgula, quase cem anos de idade. Faltam apenas trinta e cinco, que é pouco, perto dos sessenta e cinco que já alcançou. Um feito. Se considerar esta idade na expectativa de vida de alguns séculos atrás, que chegava ao limite de 65 a 70 anos, em casos raros, a maioria porém, era levada ao descanso perpétuo aos 25 anos, e chegar aos 35, era um idoso com todos os direitos a passagem gratuita nas carroças, aposentadoria com um salário de meio saco de aveia por ano, ou seja, tudo igual a hoje. Assim, meia cinco, então, é um feito.
O comunista Pablo Neruda, escreveu uma autobiografia, intitulada: "Confieso que he vivido". E viveu mesmo. Entre farras e cachaçadas, enlaces com fêmeas libertinas, e confabulações políticas, além de atravessar uns perrengues climáticos no seu palácio em "Isla Negra", Neruda fez de sua biografia o seu sucesso, e no frigir dos ovos, mostra que são as coisas simples que lhe deram os melhores momentos da vida.
Fui leitor ávido de Herman Hesse, até bem poucos anos atrás. Encantava-me os floreiros com os quais começava todos os seus livros, quase monótonos, até o momento em que o leitor estivesse completamente enredado e ávido por conhecer o resto da trama de cada obra, e era nesse momento que eu deslizava pela mente do autor, respirando o ar das montanhas, sentindo o gélido entardecer da Suíça, onde suas narrativas tinham lugar, os sentimentos dos personagens tornavam-se meus, e a paixão, o medo, as angústias, os mistérios, tornavam-se meus, todos eles. Foi com profunda decepção que, após protelar por mais de trinta anos para ler o mais denso e misterioso livro: "O Jogo das contas de vidro", cujo título em alemão, "Das Glasperlenspiel", literalmente “O jogo das pérolas de vidro”, remete a uma atividade lúdica, mas puramente intelectual, cujas raízes podem ser localizadas originalmente no pensamento de Pitágoras, renascendo na gnose, no humanismo hermético do Renascimento, com ressonâncias em Descartes e Leibniz, diz outro crítico sobre a obra, consumiu incontáveis horas, dias, semanas, com suas quinhentas páginas, mas tão intenso, que li diversas vezes até a página trinta e desisti, até que respirei fundo, criei coragem, e no último inverno que passei em nossa casa, na Serra Gaúcha, li todo o livro. Ah, decepção total, quando de um momento a outro, o personagem estava tão envolvido em seu alto cargo duma espécie de mosteiro, cuja principal atividade era um tipo de doutorado no Jogo dos Avelórios, que minha cabeça fervia, e fervia, imaginando mil soluções para o caso, até que, de uma página a outra, o personagem simplesmente desiste de tudo, abandona o mosteiro, torna-se professor particular de um playboyzinho de merda nos alpes, é desafiado para atravessar um dos lagos gelados à nado...e morre!
Ah, filho da puta! Aí fui finalmente ler a biografia de Hesse e descobri que era um pedófilo, que havia cumprido pena de dois anos na cadeia por estupro de uma menina de doze anos! Desgraçado! Só por isso, dei spoiler completo do final. Isso que dá desconhecer a data de validade dos ovos ou do bife. Isso que dá, confiar no intrincado jogo de palavras de um autor, para descobrir que seu emaranhado serviu apenas para vender livros, enquanto sua paciência para finalizar um enredo era tão profuinda quanto sua moral.
Isso que quero dizer então: As palavras simples são como a vida simples (e olha quem falando isso, se meus textos são cheios de voltinhas e trocadilhos) que desliza com mais suavidade sobre terreno simples. Se nossos caminhos fossem uma pista de gelo sobre um lago, bastaria um leve impulso para deslizar e bailar sobre as águas congeladas, mas como andamos sobre pedras e depressões, precisamos de rodas e amortecedores para mantermos certo equilibrio e continuidade no andar.
Um conceito chamado "Bushcraft", que traduz "Artes do mato", está tomando conta de pessoas de diversas partes do mundo, emp´resários, profissionais liberais, até mesmo milionários, que tiram um tempo sabático de suas vidas urbanas e conturbadas pelo consumismo, e vão viver longe da civilização, no meio do mato, do nata, e produzem coisas de subsistência, como plantar e colher legumes, frutas, criar galinhas e outros animais domésticos, tramar cipóes, aproveitar sucatas, tratar-se com medicina natural, vender nas feiras seus trabalhos, em alguns casos, enfim, viver como se tivessem passado por uma catástrofe, e o mundo precisasse retornar à simplicidade dos tempos em que não se conhecia os benefícios e uso da eletricidade, da mecânica sofisticada, nem dos benefícios urbanos da vida moderna. Não são hippies, nem defendem causas. Apenas vivem, o melhor que podem, com o mínimo que a terra lhes proporciona. E isso nem sempre é definitivo. Apenas colhem a experiencia, e depois retornam à sua vida urbana, mas com novos conceitos sobre sustentabilidade, viver com menos para viver mais, e acima de tudo, saber compartilhar e aceitar receber a partilha de quem tem um pouco mais. O orgulho desaparece, e a vaidade se torna supérflua.
Confesso, que os meus sessenta e cinco anos me ensinaram a fazer coisas que seriam bastante úteis num ambiente assim. Quem sabe...
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