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domingo, 9 de fevereiro de 2025

O Buião de Canjica de Dona Izartina

 
















Imagem: Bing

O Buião de Canjica

Soprando com fúria traiçoeira, o vento "carcava" as nuvens cinzentas vindas pelas bandas do "súli", amoitando-as de revesgueio contra as berbelas do morro do Gravatá, bem "adonde" Dona Izartina "campiava" gravetos pro fogo do ranchinho de barro taipado.

Negaceava de lado a lado, arreparando a força do vento e deduzindo, conforme ensinamentos dos antigos, que de vereda ia chover. Ali, ainda de pé na porta, meneou a cabeça pra dentro e pra fora, esticou o "percoço" bombeando as galinhas que se amontoavam pelos cantos debaixo da estrebaria, chamou o gato, que pulava lépido pra dentro do rancho, e fechou a porta.

Já dentro do ranchinho, Dona Izartina atiça o fogo com um naco de Coronilho, enfiando uns gravetos, uma "páia de mio", asoprando com jeito, e quando o fogo alumia a cozinha, se ergue, e garra uma lata "adonde" guardava Canjica. Deita um tantico no buião, enche com água e arreda pro meio da chapa do fogão, que já avermelhava com o tição do Coronilho. Enquanto a canjica ferve, Dona Izartina vai até à janela sem vidro, abre cuidadosamente a tampa de madeira e "bombeia" lá fora. A chuva chegou forte, atravessada, enregelando a alma. Dona Izartina fecha rapidamente a janela e volta a "bombear" a panela que ferve.

Acende um candeeiro de "corozena", põe no centro da pequena mesa carcomida pelos anos, coberta por uma toalha rota, bordada por ela mesma antes de se casar, como parte do enxoval pobrinho que trouxera de casa ao juntar os trapos com o "fio do Serzinando", moço "bão e trabaiadô". Ali na mesa, Dona Izartina "garra" um buião de leite gordo fervido, as especiarias: Canela, Cravo, raspa de limão, "açúcri", e após verificar que a canjica já está cozida e macia, deita o leite e os temperos no buião e mexe com uma velha colher de pau, pra não grudar no fundo. Feito isso, abre a portinha do fogão e reduz o fogo, pra canjica cozer "mais digavazinho" e não queimar no fundo.

Dona Izartina se assenta no banco junto à mesa, e o gato manhoso pula no seu colo, aquietando-se dengosamente. Ela diz uns gracejos, sorri, faz afagos no bichano, e presta atenção à chama que bruxeleia embalada pelo vento das frestas. A luz tremulante envolve Dona Izartina numa bruma de lembranças, fazendo-a pousar suavemente nos dias alegres da infância.

Genésio Brabuleta

Izartina ainda não era "Dona", posto que uma serelepe rapariguinha. A vida corria do jeito que Deus mandava, lá na roça do Morro Gravatá, "adonde" sua mãe, viúva ainda jovem, com "treis fiu" nas costas e outro no bucho, penava de sol a sol para sustentar os barrigudinhos. Izartina era a mais novinha e a mais "levada da casqueira". Pulava feito cabrita pelos barrancos, trepava em "gualhabêra", colhia "Gavirova" e "apinchava pedra" nas pencas de Butiás. Passava os dias pelos brejos, pescando lambaris no córguinho que serpenteava o pé do morro, quando não estavam batendo enxada "alimpando" os "miaráli", as morangueiras e as hortaliças. Pobrinhos eram, não hei de negar, mas afeto nunca lhes "fartô".

Os anos passaram, e já mocinha, Izartina ia à igreja com os irmãos e a mãe, levando uma panela amarrada a uma trouxa para o "ajunta-panelas" após o culto. Ali, entre pães, feijão, goiabada e café adoçado, Izartina era feliz sem nem se dar conta. Entre os moços, um mancebo lhe arreparava os passos: Genésio Brabuleta. Magrinho, de braçadas largas ao nadar no arroio, faltava-lhe coragem para convidá-la a tomar refresco na "Venda" do Marcolino. O pastor, percebendo a intenção do moço, facilitou a prosa, convidando-os para um encontro na sua casa. O namoro começou respeitoso, sonhando com o casório, mas o destino tinha outros planos.

Genésio, aos "dezassete" anos, foi chamado a servir a pátria. Partiu para a longínqua Itália, onde os pracinhas brasileiros enfrentavam frio, inimigos e saudade. Em uma aldeia libertada, uma "ragazzina" afetuosa enlaçou seu destino ao dele, e Genésio nunca mais voltou ao Morro do Gravatá. O Brabuleta "avuô". Izartina seguiu a vida, casou-se com um matuto de boa índole e, desde então, amanhece "bombeando" o horizonte pra ver se Jesus está voltando. Não está. Então, segue suas rotinas, e hoje, a faina é cozer a Canjica para o culto vindouro.

No buião de Dona Izartina, a Canjica leva uma dose de oração, posto que cozinha orando (ou "rezando", tanto faz). Assim que está no ponto, o leite gordo, a Canela em pau, os dentinhos de Cravo, o "açúcri" e um tantico de água borbulham até que todos os sabores se unam, prontos para serem apreciados.

O Buiãozinho da "sodade"

O vento lá fora traz um chuvisqueiro atravessado, deixando o dia cada hora mais "enfarruscado". O ar gelado se infiltra pelas frestas, e Dona Izartina deita seu velho xale de crochê sobre os ombros magros. Se assenta à mesa diante de um pequeno buião "cuáje" transbordando de Canjica quentinha. Saboreia colherada a colherada, como se lesse um poema de saudade, quem sabe "alembrando" ora do seu véio que se foi, ora do moço Genésio Brabuleta, que nunca mais voltou. Quem é que vai saber, não é fato?


Pacard é Escritor, Designer, Contador de Causos, e Palestrante





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