A "Umiação de Das Dô" Um causo de verdade
Ribeirão do Canavial, lá nos cafundós do Morro Grande, era o vilarejo de remanescentes açorianos, evadidos de perseguições religiosas passadas, e que desde havia já um tanto de anos que viviam na "santa paz do Senhor Jesus", era como diziam. Os costumes se mantinham, firmados na religiosidade, e na sobrevivência, que determinava a quietude da vida e da laboriosa faina dos dias que passavam silentes, entre as estações do ano.
Vila de pescadores, e pequenos campesinos, Ribeirão do Canavial tinha apenas uma rua, com cerca de menos de uma légua, bem menos, que principiava na capela do Divino, e findava no alto do morro, de adonde havia uma escadaria de chão batido, por onde, nas ocasiões de celebração da devoção, o povaréu subia, de joelhos, alguns, em solene procissão.
Pequeninos casebres de tijolos rústicos enrijecidos ao sol, mesclados com areia e palha, um tipo de adobe mais simples, unidos por uma argamassa da mesma mistura, acrescida de óleo de baleia, que adquiriam dos baleeiros da Costa Verde, onde havia o abate de beneficiamento dos insumos cetáceos, sendo que o óleo era o mais desejado, pois fornecia iluminação das cidades, e insumo para argamassa das casas.
O namoro e o casamento enram tratados por arranjos familiares, ou das velhas casamenteiras, que conheciam todas as famílias do lugar, e de outros da vizinhança, e sabiam na ponta da língua, quem, dentre os moços, daqui e dali, tinha os dotes necessários para um bom matrimônio, e assim, com tais informações na cachola, passavam a vida visitando casas para garimpar nubentes disponíveis, sendo essa a sua ocupação profissional, pois recebiam pagas pelos arranjos nupciais que conseguiam, e mais que isso, quanto melhor o arranjo, maior o dote, e quanto maior o dote, maior a recompensa para as casamenteiras, pois fora disso, era impensável imaginar em algum matrimônio, assim, pela vontade, ou bem querer dos nubentes. A única exceção, era o padre, que vez por outra, atrapalhava os empenhos das casamenteiras, tendo eles próprios, suas preferências, co base em critérios interesseiros também.
Maria Das Dores, era filha de Manoelzinho e Acácia, pescador, e costureira. Moravam a duas casas abaixo da capela, onde maria, chamada de "Das Dô" passou a infância e adentrou a juventude. Brincava com as crianças da vila, com todas as brincadeiras que brincassem todas as crianças. Cumpria suas devoções, ia na missa, puxava reza nos velórios, ajudava nos enfeites da missa e das procissões, e uma vez por semana, levava guloseimas para o padre Claudino, na casa canônica, atrás da capela. Fazia isso por duas razões especiais: primeiro, porque cumpria ordem da mãe, mas principalmente, porque para chegar à casa do pároco, pegava um atalho por dentro da sacristia, onde o sacristão Pereirinha, cumpria suas tarefas eclesiásticas da congregação.
E o diabo não tira folga, nunca, pois, sendo Das dô, gentil, e formosa, despertou a cisma de Pereirinha, e vou ater-me ao fato de que, na hora em que o desatino da paixão efervecia, adentra a sacristia, uma devota desprovida de matrimônio, apesar da idade avançada, ao que chamam de "solteirona", e o mal venceu, o diabo sorriu, e Das Dô foi levada de arrasto pelos cabelos pela devota, e entregue ao padre, aos berros, despertando a curiosidade da vizinhança, mais propriamente, dos pais de Das Dô.
A menina foi colocada sentada, de vestido preto, em sinal de luto, num banquinho, bem à frente da capela, com a cabeça coberta de saco de aniagem, sobre o qual, jogaram cinzas. calada, de cabeça baixa, a menina chorava, silenciosamente. Então, foi rezada uma missa, cuja homilia se estendeu quase até à meia noite. Depois, os fiés foram instados a permanecerem na capela, rezando e clamando, até o amanhecer.
Desfiados pelo rasgar da aurora, os primeiros raios da manhã, todos em jejum completo, à voz do padre, retornam ás suas casas, e fecham portas e janelas, ao longo da quase uma légua de rua. Ainda à brisa fresca da manhã, um vulto sai da igreja, de cabeça coberta de saco e cinzas, cabisbaixa, e chorando baixinho, bate tres vezes à primeira porta, que se abre, e uma devota, também choramingando, com a cabeça coberta, abre a porta, esbofeteia a penitente, entra e volta a fechar a porta. E assim, em uma a uma das casas, abria-se a porta, esbofeteava a moça, e voltava a fechar-se. Da capela até a escadaria do morro, onde a penitente subia, e passava o dia prostrada diante da cruz ao alto, e ali passou o dia, com sol a pino, até o entardecer, quando retornou à casa dos pais.
Daquele dia em diante,só respondia o que lhe era perguntado. Ia à missa, mas de cabeça coberta, assentando-se ao fundo, num canto escuro, saindo antes que terminasse. Não recebia mais a "eucaristia", e assim envelheceu, amargurada, triste, e sozinha. Em sua própria aldeia.
E o sacristão? Foi enviado ao seminário, e seguiu carreira eclesiástica. Tornou-se bispo e permitia, bondosamente, que as jovens noviças lhe beijassem o anel, e servissem guloseimas após a missa.
Pacard - Escritor*
Inspirados em fatos verídicos, cujos nomes e lugares são fictícios*
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