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quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Os amigos, o mar e eu



Férias sempre foram terríveis para mim,  desde os tempos em que ainda mijava na cama e andava de tamancos e meia, em dia de geada grossa. Quando chegava janeiro, todos viajavam, saíam para visitar parentes, passarem o verão na praia e coisas do gênero, e eu ficava sozinho. Não tínhamos casa na praia, e não éramos convidados para passar o verão com os parentes que as possuíam. E eu ficava lá sozinho, jogando bola comigo mesmo, escavando barrancos e imaginando estar construindo um refugio para defender o mundo de invasões alienígenas ou dos russos, pois eu fazia parte de um importante comando interestelar de super heróis, que tinha como missão defender o planeta. Ou a vila onde morava. Isso eu fazia muito bem, era confiável aos meus superiores, fossem eles quem fossem. Anoitecia, e eu estava lá vestido a caráter: toalha de saco de açúcar nas costas, máscara do zorro, espada de madeira, funda municiada com grande estoque que pedrinhas selecionadas a dedo, e um lanche para suportar a longa noite de ronda, que começava ao anoitecer e encerrava tarde da noite, algo como vinte e uma horas.  Eu não usava relógio, mas tinha um sistema de alarme instalado na voz poderosa da Maria Elisa, que berrava aos fortes pulmões, invocando pelo meu nome. Eu ficava incomodado, pois todo o quarteirão ficava sabendo que eu estava de plantão atrás das pedras, guarnecendo as galáxias. Tudo isso com uma funda, uma espada de madeira, pão com chimia de cana, o doce dos pobres, e a máscara do zorro, porque era fácil e barata de fazer. Sozinho, porque meus amigos tinham que acompanhar a família rumo às praias.

Hoje eu não uso mais máscara do Zorro. Depois que George Hamilton fez aquele Zorro que usava chapéu lilás cheio de franjas, e costurava vestidos para matronas da sociedade mexicana, reavaliei melhor meus personagens.  Meus heróis atuais tem olhinhos que fazem com que meus velhos olhos cansados voltem a brilhar e aceleram meu coração quando ouço seus gritinhos marotos e seus pezinhos lépidos correndo pelo apartamento fazendo traquinagens. Hoje eu não fico mais sozinho pelo fato dos meus amigos passarem o verão na praia. Dei a volta e vinguei-me deste abandono. Então, se era a praia quem me afastava de meus amigos, passei uma rasteira na vida (ou tomei uma rasteira dela, ainda não decidi isso), e revesti-me de mar e areia: vim morar em uma ilha, com quarenta e duas praias. A ironia disso é que, pelo trauma de não ter amigos por perto por culpa do mar na minha infância, hoje eu não gosto de praia. Não vivo na praia, apesar de ver o mar todos os dias, pois moro pertinho de uma avenida à beira do mar. Mas estranho. Muito estranho, pois quanto mais eu vejo o mar, mais saudade eu sinto dos meus amigos que ficaram nas minhas lembranças. Eu vim morar perto do mar, busco então ser feliz por isso, enquanto eles se tornam mais felizes quando conseguem dez dias por ano para salgarem o couro no primeiro braço de mar que encontram. E depois, voltam para o cotidiano e o repetitivo do qual fogem para o lugar onde verdadeiramente são felizes (muitos nem sabem disso), porque tem um cotidiano por seguir, uma história por construir, um livro de lembranças por escrever. 

O mesmo acontece com as sextas feiras, as segundas feiras, as férias e o retorno ao trabalho ou às aulas. Sextas feiras são péssimas, quando a semana foi improdutiva, mas pior que o domingo à noite, não tem. Ainda bem que depois do domingo à noite, amanhece uma promissora segunda feira, para reparar os fracassos da semana anterior e nem lembrar que cada semana tem os seus próprios fracassos a nos esperarem na próxima curva. O lazer entedia mais que o trabalho, pois o trabalho proporciona o prazer do sucesso, ou a frustração pelas falhas. Já o lazer não tem nada a oferecer senão o prazer do lazer. Não há conquistas. Não há sucesso, senão as contas que restaram. Então, sentir saudades dos amigos abduzidos pelas férias nas praias, foi o meu jeito de intuitivamente, instintivamente sem planos estabelecidos, um dia morar perto do mar, e como vingança, passar em frente e não pisar na água nem na areia. 

Talvez o faça também pelo prazer em escandalizar àqueles que imaginam que quem vive numa ilha, passe o tempo todo num barquinho balançando ao sabor das ondas em busca de um peixinho para assar à beira da praia numa fogueira, cercada por gente romântica cantando odes ao luar, ou então entregando-se ao ócio tresloucado da gula incontinenti nos pequenos botequins do casario centenário da ilha, e ainda mais, imaginam que quem, quando menino, ficava sozinho no verão, certamente vingar-se-ia dos verões consumindo todo o mar que pudesse conter em tais lembranças, para resgatar a infância perdida. Mas não. Não é isso  que acontece. Não foi o que aconteceu. De fato, os anos nos afloram sabores, mas em mim afloraram os bons sabores que tive e não os que me frustraram, o que me leva a concluir que meu livre arbítrio me fez pisar no lugar que nunca pude ir quando menino, e ainda assim, escolher não desfrutá-lo, tornando-se este o meu desfrute. De outro lado, aquilo que me leva pela mão às mais remotas lembranças, tais como o cuscuz com leite, o feijão mexido, o chá de mate com leite, a batata cozida fria que sobrou do almoço para comer com café, o café com mistura, o feijão com arroz e couve, a uva pretinha e o refresco gelado de boteco, são aquelas lembranças que não exigem esforço para  que nos chamem no entardecer. Assim, ficam as lembranças e os amigos. E fica também o mar. Ali pertinho. Mas o mar deve continuar sem mim.




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