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sábado, 13 de julho de 2019

O Bom Mau Humor de nossos antigos - Maria Elisa, minha avó divertida, que sonhava com merda



Pois nem só de política vive este blog. Aliás, nem sei se vive, mas pelo menos, volta e meia, eu inflo meu ego e escrevo umas poucas e mal traçadas linhas com imenso prazer, para que outros as leiam e tenham o desprazer de chegar até o fim da leitura, para descobrirem que eu não disse nada de novo. C'est la vie, diziam os mongóis!

Assim, resolvi puxar pela memória, que dizem alguns, ser de alguma serventia, e relatar aqui, para a historia, algumas pérolas do bom mau humor de personagens dos tempos de antanho, e o faço dentro do mais absoluto respeito à dignidade destes, haja vista que alguns são de minha própria massa genética, começando por minha avó, Maria Elisa, que era meio pessimista com as coisas, apesar de ser muito divertida, então às vezes eu chegava e dizia:
- Que dia tão lindo, não acha?
E ela lascava à queima-roupa:
- Lindo até que chova!  O céu tá muito baixo e muito azul! Grunf...
Ô boca aquela. pois não é que logo chovia mesmo, e chovia à cântaros? Pra que fui perguntar? isso me adicionava culpa pela chuva que chegava mais cedo só pra confirmar algum acordo feito com Maria "Ilizia", e dar-lhe credibilidade.

Maria Elisa (a quem a parentada e vizinhança, e também o resto da aldeia, insistia em tratá-la por "Tia Ilizia". Vá que seja então) tinha umas tiradas dignas de almanaque. Uma memorável era quando estava com a serotonina no vermelho, pedindo reabastecimento, e o humor ficava insuportável. Ela sabia desses dias, e tinha a civilidade de avisar com antecedência, para evitar algum desastre, e sua marca de mau humor anunciado era:
- Não fale comigo hoje! Sonhei com merda!
Era o sinal para procurar uma funda, passar a mão, se houvesse tempo, em um naco de pão, e sumir pelo mato e, de preferencia, passar lá o dia, se fosse possível, os próximos dias., porque o aguaceiro era cabuloso, sinistros mesmo. Ela cuspia fogo pelas ventas, e amaldiçoava o mundo. Depois passava, e o sinal eram as canções que ela cantava para acalmar a dor da vida. Cantava hinos, muitos hinos. Sabia quase todos do velho hinário. Cantava apenas hinos. Não aceitava que se cantasse musica profana em casa. Tá bem. Quem pode manda, quem tem juízo, obedece. E também nem me fazia muita falta cantar coisa alguma, porque minha voz é esganiçada, desafinada, fora de compasso, e absolutamente dispensável a qualquer coro que precise de cantores. Outros, sim, eu não. Pois a voz de Maria "Ilizia" era daí pra pior, mas que importância tinha isso, não é verdade?

Maria Elisa cantava sentimentos que nasciam na pleura e saíam com cheiro de fígado. Era sua catarse de dores, seu lenitivo pós crise, e sua esperança na breve vinda do Messias. Ah, sim, ela orava, rezava muito. Muito mesmo. Fielmente, de joelhos, por cerca de meia hora, duas vezes ao dia. Pela manhã, urdindo tranças, que ao final da reza balbuciada, enrolava como uma coroa à cabeça, e assim, começava o dia. Já à noite, orava novamente, desmanchando as tranças do cabelo que jamais fora cortado. Coisa de judia velha cristianizada e devota à fidelidade de suas memórias, que aliás, acho que é genético, pois isso, e apenas isso, além do olho caído, eu herdei dela. Ah, o sarcasmo também.  Ô véia sarcástica, misericórdia. Pra debochar de alguém, não pagava imposto. Ou Talvez pagasse, e por isso éramos tão pobres. ia tudo pro governo. Imposto de debochada.

Certa tarde sabadal, estava eu, feliz como ganso em taipa de açude, debaixo de oito cobertas, quando ela chamou-me para ver a neve que caía lá fora. Mandei-a catar coquinhos. Ah pra que fiz aquilo: Pra que? Alguém me responda! Pois ela deu ordens expressas ao meu tio Isaac, tão ou mais debochado que ela, o imprestável, e lá foram os dois, rindo de mim, arrancaram as cobertas e me juntaram de "cadeirinha" até à cozinha, para que visse a desgraçada da neve. Eu vi. Vi mesmo. Vi tudo. E eles ganharam o dia, rindo da minha cara. os dois imprestáveis.

Maria Elisa era mais "Maria Ilizia" do que Maria Elisa. Apenas quando convinha, ela saía do armário  e deitava o vassorão com uma empáfia assustadora. Era capaz de conversar e sintonizar seu modo de falar com o interlocutor. Por exemplo: Quando ela falava com alguma pessoa mais rude, campeira, ela tornava-se praticamente um "Zé Buscapé":
- Sialembra, Ilizia?
- Sialembrooo, Hortência!
Mas, caso ela não gostasse da pessoa, na maioria gente mais da cola fina, metida a grã-fina, ela olhava em diagonal, postura ereta, cerrava em 50% o olhar (era cega de um olho, o que facilitava na mira), e lascava, como se tivesse lambido o veráculo, e perguntava em tom ameaçador:
- Como vaissssss? - Acentuando os "S" e os "R".  Estás bem, menina?

Ai, meus sais! Se ela chamasse alguém de "menina", ou "rapaz", era encrenca da braba. A pessoa estava claramente em maus lençóis, e às vezes, discretamente eu fazia gesto com a mão para que a pessoa visse, insinuando que ela devia "passar fora", "vazar", escafeder-se dali o quanto antes, porque senão o castigo chegaria de caminhão, e o castigo era..bem, antes que conte qual era o castigo, devo esclarecer que tanto o castigo quanto as boas vindas, eram idênticas: Assentar-se à mesa e comer bolinho frito com chá de mate! O segredo era que, enquanto ela preparava a massa, fritava os bolinho, fazia o chá de mate, tinha tempo para fazer uma CPI da vida da pessoa, escarafunchar tudo, o passado dos antepassados, o presente, a situação financeira, conjugal, cor da ceroula usada pela bisavó da pessoa, tudo, tudo. Então, e só então, tratando amigo ou inimigo, com a mesma cortesia e hospitalidade, ela dava-se por satisfeita, pois tinha mais uma história para contar aos netos (à época era apenas eu. Só muitos anos depois veio o meu único primo, por parte dela, que usufruiu da fase mais idosa da anciã, mas que pode dar boas risadas também. Dela, e com ela.

Igrejeira, ela não faltava um único sábado ao culto, e chegava quando já havia começado o serviço religioso. isso não fazia diferença, porque ela passava pelo corredor, dando um saudável tabefe na orelha dos rapazes, e um sorriso para as moças.  Era um passo e um tapa: Tablaft! Outro passo e mais um tapa: Tabléft! E não adiantava encolher-se, porque ela estacava diante da vítima e dizia: Venha cá, guri!
À hora do estudo bíblico, ai de quem tentasse discutir bíblia com ela. A desgramada da anciã já leu mais de CEM vezes as sagradas Escrituras. E isso não foi uma hipérbole. Leu mesmo. Sabia tudo de cor e salteado. Já vi pastor enfiar a viola na sacolinha e cantar fininho com ela.

Este temperamento e comportamento eram sua marca registrada, e tornou-a querida até mesmo anos após a morte, aos noventa e cinco anos, sorridente, e segurando a mão do filho mais novo, seu bebê (o tal bosta que me tirou da cama e me fez a neve), levando consigo para o descanso a paz que empregou sob a perene hospitalidade, fator que carimbou sua identidade judaica guardada no fundo do armário.

Certa noite, acordei com o barulho dela tentando abrir a porta de meu quarto com uma faca (a casa não tinha fechaduras internas, e sim tramelas), para buscar uma coberta, porque havia acolhido um mendigo, e ele iria dormir lá em casa. Fazia isso com frequência. Nossa casa era cheia de mendigos, seja para que ela investigasse suas vidas e os alimentasse, ou para que mesmo dormissem lá por uma ou duas noites. Teve um caso de uma família que foi hospedada lá em casa, por algumas semanas. Era assim que Maria Elisa tratava as pessoas. Em hebraico isso se chama "Tsedacá" - Justiça Social. Ela não considerava isso uma caridade, porque dizia que eram filhos de D-s, portanto nossos irmãos, e tinham que ser acolhidos daquela maneira. Tenho que confessar que sinto inveja disso, mesmo. Sinto vergonha de mim por não ter aprendido tantas lições de cortesia, bondade, hospitalidade. Claro que o que aprendi a foi a ser debochado, e sinceramente, eu também ás vezes sonho com merda. Isso me possibilita largar as patas em quem me incomodar. A propósito, você está rindo do que? Diz na minha cara! Hoje eu sonhei com merda!

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