AD SENSE

sexta-feira, 19 de julho de 2019

O diabo se vestia de preto - Causos e coisas de minhas memórias

A imagem pode conter: 2 pessoas, pessoas em pé, sapatos, criança e atividades ao ar livre
Foto: Cilo Beux (Eu e meu primo Decio, lá pelos idos de 1961 ou 62)

Pra quem não acredita no diabo, pois saibam que ele existe, é mau, e faz "bem feito" seu trabalho, quando quer, e como sempre quer, então, sobram os respingos da infância roubada de muitas crianças pelo mundo afora. No tempo em que se fala de violência doméstica, dizendo que é um "sinal dos tempos", o que eu também acho que seja, mas estes tempos já começaram há bem mais tempo que parece. O que mudou, é que hoje a imprensa, as ideologias, que se beneficiam da desgraça para buscarem prosélitos pelo ódio e não pela esperança, fazem proliferar pelas redes sociais as histórias escabrosas, pérfidas, satânicas, das coisas que acontecem.

Pois o caso deu-se quando, após uma tragédia em família, lá nos cafundós onde eu nasci, minha avó voltou para sua terra natal, Gramado, levando junto os filhos: Minha mãe, e seus dois irmãos, e o traste que vos tecla, então, com cerca de um ano de idade. Pois nesse ínterim, entre a tragédia (que irei poupá-los de conhecer, por ora), e a construção de um ranchinho de tábuas velhas em terreno emprestado de parentes, minha mãe precisou deixar-me aos cuidados do demônio, disfarçado de tia de minha mãe. Vou tentar descrever um pouco do mau caráter do toco seco com duas pernas finas e um nariz afilado e longo, amparado por um olhar ruim, e uma voz angustiante, cuja expressão favorita era, em tom de espanto: "Mistério!". repetia isso a cada coisa que se dizia. Tudo era mistério, pavor, espanto. A Tia Margarida, a quem as ciganas chamavam de "Tia Margurita", para provocá-la. A mesma que anos mais tarde, ofereceu-me melancia, e dizendo que eu havia tomado leite, tirou da minha boca o pedaço guardou no armário para que eu não comesse. Mas o causo começa bem antes. Vou contar-lhes o que sei.

Quando ainda jovem, recém casada, com o Arcílio, conhecido por Alcides, ela encheu a barriga, por baixo do vestido preto que sempre usava, com trapos, dando a impressão de uma gravidez, que nunca aconteceu, para que o marido não fosse convocado a servir o Exército, em tempos de revolução (lá por 1923). Pois o traste tanto infernizou a vida de meus avós, que eram proprietários de terras, onde hoje se localiza a Expo Gramado, e todo aquele morro, num total de 50 hectares, que, acompanhados de minha bisavó, venderam sua parte na herança, e foram embora. Como nêmades, passaram por várias terras (Canastra, onde tinham armazém e moinho, destruido por uma inundação), Barragem do Salto, onte também tinham armazém que vendia fiado aos contrutores da barragem, cuja empresa faliu, e com isso, arrastou meus avós a buscarem outras terras lá por São Fancisco de Paula, e finalizaram onde nasci, na costa do Rio das Antas, um lugarejo chamado "Serra do Pinhão", nas proximidades de Cazuza Ferreira.

Pois lá, após a tragédia de que falei, uma carreta de mulas transportou as tábuas do rancho e suas matolotagens (pertences sem valor0, junto com a família destroçada, e o escriba do presente causo. E assim, minha mãe precisou deixar-me aos cuidados de alguém, para auxiliar a família nas arrumações da nova vida. E a escolhida foi a tal Tia Margarida, que de imediato pegou afeição pelo pacotinho que mijava nas fraldas, e enquanto minha mãe estava ausente, a velha se desmanchava em alegria. Até meu nome foi trocado, pois pela minha certidão de batismo católico (sim senhor, já me fizeram católico por conta de meu pai que seguia essa tradição), era chamado de "Paulo Calso Cardoso Borges dos Reis". A velha, porém não gostou do nome, e deu-me o nome de "Hugo Luís da Silva". Levou-me ao médico, o saudoso Dr. Erico Albrecht, e deu este nome na ficha de pacientes. (Anos mais tarde, quando trabalhei por duas vezes no hospital, contei a história, e perguntei ao Dr Erico, se ainda existia tal ficha. Ele riu, e disse que sabia quem era minha família, eram amigos, e conhecia a história, pois meu avô Assis Brasil, falecera sob seus cuidados, naquele mesmo hospital dias antes, e não deu bola pra velha maluca).

Alguns dias mais tarde, minha mãe foi visitar-me, e nesta ocasião, a velha recebia outras pessoas também. Serviu à todos, um lauto café com mistura, acompanhado de um queijo serrano, comum à época. Todos comiam e conversavam, felizes, e o futuro escriba engatinhava pelo chão, próximo à mãe. A velha, então, descasca o queijo para as visitas, e atira ao chão as casquinhas para que eu comesse. Minha mãe, ao ver aquilo, recolheu as cascas, e trocou pelo queijo servido à ela, comendo em meu lugar as casquinhas. A velha Margarida, contrariada, disse que não deveria fazer aquilo, porque o guri precisava aprender, ao que minha mãe a contradisse, dizendo que ela não permitiria que seu menino comesse cascas de queijo, enquanto ela comesse o miolo da iguaria. Suas palavras foram:
- "Meu filho não precisa comer isso. Deixe que eu como, Belzebu, digo, Tia Margarida" (Aditivo maligno acrescentado por minha conta).
- "Meu filho?" - Esbravejou a velha. Tu disse "meu filho? Pois se é "teu filho", leva essa sarna daqui!". E ela levou mesmo.


Poucos anos se passaram, e a velha, que não deixou de remoer o podio por aquela desfeita, tratou de resolver a situação, e adotou um lindo menino (o garboso da foto, com chapeuzinho), para mostrar à minha família, "como é que se criava uma criança".

Anos mais se passaram, e minha mãe, professora de nós dois na Escola Olidio Moura, certo dia, recebeu o menino, atrasado, cabisbaixo, e meio choroso, que entrou e foi assentar-se no fundo da sala, sozinho. Minha mãe, percebeu que havia algo errado, e o chamou para fora, pois percebeu manchas na sua camisa branca, tipo "Volta ao Mundo" (quem tem mais de 60 anos saberá o que eram), e pediu que ele tirasse a camisa e mostrasse as costas. Estavam lanhadas de marcas de cinta, de tanto apanhar.

Para bater nele, a velha fazia assim: segurava o menino, enquanto o velho Arcílio, já entrevado,assentado em uma cadeira de palha, batia com uma cinta, um pedaço de pau, uma vara, ou o que estivesse ao seu alcance.

Minha mãe tomou alguma providência, junto à família e um primo, Elias Francisco, assumiu a tutoria da criança, pois era o inventariante e auxiliava os velhos, o que o fez até que tivesse ido se preparar para o juízo final. Depois deu ao moço, anos mais tarde, sua parte na herança, e nunca mais ouvi falar dele. Uma pena, Um grande amigo e primo, que penou as penas cuja única culpa eram da velha diaba que vestia de preto.

No dia que morreu, o traste, os pertences foram inventariados, segundo seu desejo, e lá para minha casa, foi enviado um belíssimo relógio de parede, ao qual minha avó mandou ser devolvido imediatamente, pois só o ouvir das batidas das horas lembrava cada ato de maldade da velha. Fiquei meio triste, porque eu tinha planos de desmontar o relógio, para ver como funcionava. Paciência. É dura, mas esta é a história que vale a pena ser lembrada, pois aquela descgraça serviu para que minha família  fosse unida. Pelo menos por algum tempo. Mas foram bons tempos. Livres do feixe de urtigas vestido de preto, com um lenço também preto, amarrado á cabeça. Cabeça que só serviu para imaginar maldades, e depois dizer: "Mistério!"




Nenhum comentário:

Minha "quase esposa" do Tadjiquistão

Pois parece um pesadelo doido, mas o fato deu-se como verdadeiro. Eis o causo: No cotidiano da faina, lá pelos idos de 2012, recebo pelo mes...