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quarta-feira, 26 de abril de 2023

A Ditadura, Os Estudantes, Gramado, e Eu

Foto: Silvano Haas (Entrega do Troféu Ilha de Laytano, e o dia do meu primeiro discurso à todos os alunos, no Cine Embaixador, Dezembro de 1976) Sou o primeiro, assentado, à esquerda. Ao meu lado, Nailor Balzaretti, Professor Francisco, ao seu lado, não sei quemm é, Dante de Laytano, Irma Peccin, Marilia Daros Franzen, Esdras Rubim, de pé, o Diretor José Staudt, e dormindo, lá no canto oposto, Romeu Dutra.

Pois confesso o que já é amplamente despercebido: esta é a primeira vez que eu escrevo sobre os tempos de Movimento Estudantil em Gramado, e meu estado de coisas neste ambiente sinistro e maravilhoso.

Meu intróito neste ambiente da política estudantil começou lá por 1976, quando cursava alguma coisa entre o Ginásio e o Científico, não lembro direito, e isso nem importa também, mas o que interessa é que minha turma na escola noturna era bem pequena, uns dezoito ou vinte alunos no máximo, gente boa demais, amigos até hoje (os que ainda perambulam pela vida), onde não éramos amigos apenas, mas quase irmãos mesmo, tamanha a amizade do grupo.

Foi nesse tempo, que o Grêmio Estudantil Machado de Assis estava em processo de organizar a eleição para o comando da entidade, e nesse tempo, os Grêmios Estudantis eram o último redutos da juventude para extravasarem sua ânsia pela política nacional, posto que era proibido aos estudantes a manifestação na política partidária, e nesse tempo, os Diretórios Acadêmicos Universitários estavam fechados pelo governo militar, e a UNE estava lacrada e cercada por soldados armados até os dentes, à espera de algum "fura-fila" que ousasse romper o lacre e entrar na sede da entidade, e enfiá-lo num camburão para levá-lo a um passeio pelos porões do DOPS (Delegacia da Ordem Política e Social, o departamento de repressão e em muitos casos, senão a maioria, tortura e pau-de-arara mesmo), para uma nada gentil conversa com algum delegado cercado com umbando de sádicos, que não tinham a menor ideia a respeito dos debates políticos que perseguiam, mas tinham a força e o prazer de divertir-se com os gritos dos torturados. Assim, os estudantes universitários trancavam suas matrículas nos cursos, e se matriculavam no Ensino Secundário, para arregimentarem prosélitos, e disfarçadamente manterem o movimento estudantil vivo.

Foi nesse ambiente que eu comecei. Eu não era e nunca fui ativista político. Não sabia nada da política nacional, além do que ouvia pelos amigos, geralmente em rodas de piadas, onde o estúpido era o general de plantão no poder, e a piada girava em torno de ideologia política, as mesmas de anos anteriores, onde só se trocavam os personagens. Este era meu conhecimento da política, nada mais. Não fazia a menor ideia do que fosse o movimento estudantil, e muito menos tinha pretensão de envolver-me com isso. Porém, como sempre fui comunicativo (alguns antagonistas davam o nome de "inxerido e petulante". Vá lá que seja, assim eu era, e por ser inxerido e ansioso por pertencer ao grupo, já que eu era péssimo no futebol, fator que favorecia o fortalecimento de amizades, e por ser um perna de pau, eu não era convidado para formar time com ninguém, e por isso e outras coisas mais, tornei-me um excluído social. Então, a única forma de entrar em uma porta quando não abrem pra você, é meter o pé e entrar assim mesmo. Isso te torna inxerido e petulante. Que seja.

Como dizia, o Grêmio Estudantil nesse tempo, estava sendo movimentado para a eleição, e era sempre a chapa da situação quem vencia, porque seus integrantes faziam parte, tanto dos movimentos esportivos da cidade, quanto da elite política, que os motivava a que se mantivessem no comando da juventude de cabresto. E fui então procurar o então presidente da entidade, um sujeito maluco de atar em poste, cujo prazer era vestir-se de Papai Noel, próximo ao Natal, e sair com uma vara de vime de dois metros de comprimento dando varadas nas pernas da piazada, por onde passava. Esta era a liderança da juventude política deste tempo e lugar.

Num desses ímpetos arroubos de humildade invasiva, fui procurar o maluco e disse a ele que eu gostaria de ser incluído na próxima chapa, num cargo, tipo qualquer mesmo, para pertencer ao grupo, participar, correr de um lado a outro nos eventos da entidade, enfim, queria estar junto deles, e ele me respondeu, com ar de superioridade:
- "Fica tranquilo, vamos te arrumar um carguinho na chapa (que tinha cerca de 30 pessoas)!!
Ah, como eu fiquei feliz, e fiquei à espera de ser chamado, o que nunca aconteceu.

Entre muitos amigos, eu era (e ainda sou) grande amigo de um sujeito de baixa estatura, de fala mansa, observador, meio debochado, mas um excelente estrategista político, que durante os intervalos das aulas, quando todos ficavam tagarelando e andando de um lado a outro, ele sentava-se, de pernas cruzadas, e lia o jornal atentamente: o Eduardo Barros! Então, cheguei pro Edu e disse que deveríamos montar uma chapa para concorrer, e que ele, Eduardo, deveria ser o Presidente, e que eu o apoiaria, buscando votos dos alunos. Minha esperança era pelo menos ter um lugar no grupo para colaborar, nada mais. Eduardo olhou pra mim com a cara seria e disse:
- "Sim, vamos formar uma chapa, mas o presidente vai ser tu!"
- "Eu?" Fiquei estupefato, aquilo era irreal, eu não tinha a menor condição de vencer uma eleição com mais de mil alunos, um desconhecido, insignificante, pobre, filho de mãe solteira. Nem pensar!
Eduardo insistiu e disse: 

-"Monte a chapa! Escolha alguns membros, poucos, e vaou te inscrever como candidato!"

E assim foi. Mas um dos segredos de vencer uma eleição, é ter aliados, e como a chapa da situação já estava formada, contando com mais de 40 pessoas, naturalmente já haviam escolhido todos os formadores de opinião, líderes, e alunos mais populares, para composição desta chapa, e desse modo, ninguém queria entrar na competição contra eles, e eu ia de pessoa em pessoa, até que finalmente consegui formar um grupo mínimo, com os componentes exigidos pelos estatutos, elegíveis, isto é: Presidente, Tesoureiro, Vice Presidente, e Secretário. E lá fomos nós: Presidente, eu, Paulo Cardoso; Vice, Marlene de Oliveira; Secretária, Edelgarth Ramm, e Tesoureiro, Sergio Teixeira, que era o mais maduro do grupo, e trabalhava em um banco, então ninguém melhor para cuidar das finanças do grupo.

Começamos o périplo pelas salas, pelos corredores, pela calçada da frente, apresentando nossas propostas, mas sem nenhuma esperança de vencermos, apenas pela adrenalina da campanha já estaria bom. Minha avó, muito religiosa, dizia: 

- "Não posso orar para que venças. Mas oro para que tenhas sabedoria!"

Chegou a eleição, e minha pequena turma foi proibida de abandonar a sala para votação, pois estavam em prova. O professor era a favor dos oponentes. Acontece. Perdi 17 votos então. Em outra sala, ao lado, também não recebi nenhum voto, porque a líder de turma era uma freira que me odiava, porque descobriu que eu não era católico, depois que eu havia feito diversas vezes a leitura dos Evangelhos na missa, a convite dela, porque gostava da minha dicção, e aí disse que iria me incluir na liturgia, que eu achei interessante, pois a grande maioria dos meus amigos era católica, eu era amigo dos padres, e não via nenhum problema de estar entre amigos, contanto que não tivesse que fazer coisas contra os meus princípios, as ler um trechinho da Bíblia, por que não? Mas quando contei isso, a freira botou os óculos de ver a verdade e me viu como o anticristo, o que alimento nela ódio infernal e perpétuo. Assim, nesta sala também, não recebi nenhum voto. Tristeza, pois voto é voto. E a terceira sala onde não recebi nenhum voto, foi a sala do meu oponente. Lá também eram unidos, e me deixaram no esquecimento. Então, já perdi cerca de 60 votos nestas três salas. E foi só, pois venci por larga margem em todas as demais salas, fazendo 832 votos contra cerca de 300 do meu adversário. Foi uma lavada! Porém, ainda faltava uma coisa: Compor a equipe de gestão, eu precisava de uns vinte integrantes mais ou menos, e naturalmente, o primeiro convidado foi o Eduardo Barros, que não aceitou, apenas se dispôs a companhar-me como conselheiro. E foi. E como fiz para juntar esse grupo todo? Simples: Matar dois co...(ops, não pode né)brócolis com uma tesourada só! Convidei todos os integrantes da chapa derrotada para trabalheram comigo, e apenas dois não aceitaram, incluindo o candidato a presidente e outro amigo meu, que não sentiu-se confortável em aceitar. Assim, acabei com a eventual oposição, e ao mesmo tempo formei uma equipe experiente para a tarefa.

Vou pular a parte da gestão, e voltar à política nacional. Pois logo no inicio do ano seguinte, veio o convite da UGES (União Gaúcha dos Estudantes Secundaristas) para que eu fosse com eles, participar de um congresso nacional de estudantes, em Curitiba, e não é preciso dizer que me senti o verme do cocô do cavalo do bandido lá entre aquela militância profissional universitária fantasiada de secundarista, mas mesmo assim, fiz meu discurso, no último dia. Confesso que não lembro de uma palavra que disse, de tanto que eu tremia, porque havia um sujeito rechonchudo, crespo, com óculos tipo fundo de garrava, empunhando um gravador, com microfone apontado pra mim. Não era um estudante nerd que queria repassar as conversar para tirar lições, nem um jornalista, cobrindo o evento. Era um agente da DOPS, com o pé que era um leque para pegar no pulo um incauto que deixasse escorregar uma palavra solta de interesse dos generais.

Conheci, neste encontro, os ex-presidentes da UGES, entre eles um que me tornei amigo e era grande admirador, Alfeu Bisaque Pereira, que tornou-se Juiz de Direito e hoje advoga, lá no interior do Rio Grande do Sul. Outro, de quem me tornei rival, Gilberto Barbosa de Oliveira, o Gica, baixinho e bem falante, um orador aguerrido. E outros de vários estados do país. E para cada grupo de cada estado, um agente da DOPS de tocaia.

Voltando à Gramado, a principal atribuição do Grêmio Estudantil não estava ligada á política nacional ou partidária, embora, endo eu militante da oposição aos militares, sem estar filiado ao MDB, tornei-me o queridinho dos palanques e poucos dias depois houve eleição, onde o candidato deste partido venceu, coincidentemente com o mesmo número (ou muito próximo disso) de votos de diferença do candidato da ARENA, e claro, o guincho das raposas velhas me emboscou, pegou pela vaidade de um menino de 18 anos, ainda deslumbrado pelo fulgor da vitória esmagadora. Tornei-me um ícone da juventude opositora, sendo que, mesmo estando no que chamavam de "esquerda nacional", até hoje eu nem sei o que quer dizer "esquerda ou direita", e nem faço questão de aprender. mas fui rotulado de "esquerdinha, comunista, socialista, gremista (sim, isso eu sempre fui, gremista, etc). E neste rufar de tambores, fui levado para a Secretaria de Turismo, na condição de aspone do secretário (isso eu já contei antes).

Porém, o título de líder dos estudantes não foi benéfico pro meu mandato. Por exemplo: como fazíamos muitos eventos esportivos e sociais entre os estudantes, escolha de rainha, princesas, campeonatos, teatro, etc, cada vez que havia um evento, eu era obrigado a apresentar-me ao delegado de polícia local, mostrar à ele os cartazes, os quais ele olhava contra a luz, dobrava ao meio, examinava com lupa, pra ver se não havia nenhum manifesto comunista criptografado no desenho. Penso que nunca encontrou nada, pois me mantive fora do camburão, cuja sorte de conhecidos meus, fora de Gramado, não era a mesma. Nesse tempo, eu não tinha carteira de identidade. Não era comum tê-la, e meu único documento era a carteira de Presidente dos Grêmio Estudantil, e é com ela que eu ía à Porto Alegre, e uma vez, atravessei um piquete de estudantes que confrontava a polícia de choque em frente  à Assembléia Legislativa, e no bolso, a carteirinha azul... adrenalina pouca é pra fraco, minha gente.

Mas querem saber se eu senti os efeitos da ditadura na minha vida? Ah, como senti! Por não pertencer à elite do comando econômico local, ao ser eleito, fui cooptado por empresários ligados aos militares, que me ofereceram empregos dos sonhos, com salarios dos sonhos, mas havia uma condição: eu deveria "mudar a camiseta", aderir ao partido deles! Ora, diga isso a um jovem aclamado pelos seus, no auge da glória de vento, para que el se torne um traidor de suas ideologias e de seus amigos, e espera a resposta que terá. Não aceitei! Certo, então. Nunca fui preso, mas nunca mais tive oportunidade de um bom emprego,de bom estudo, de uma carreira. Claro que tive bons empregos, fiz carreira em outra direção, mas sem dever favor nenhum aos que me perseguiam. Tomei conhecimento, muitos anos depois da exist~encia de um "Caderno Preto", onde constava a lista de pessoas com quem não se podia fazer negócios, e a pessoa abriu o caderno, mostrou o meu nome, riscou ele, porque naquele momento eu havia entrado nos interesses do grupo, aind que fosse por capacidade profissional e não ideologica e não tive que me ajoelhar, mesmo proque as pessoas eram outras nesse tempo e o passado foi guardado no passado, mas ninguém me contou sobre o livro. Eu vi!

Um dia, alguém me perguntou: 

- "Paulo, por que tu nunca "deslanchou" em Gramado? (Deslanchar, era circular nas rodas altas , enriquecer, coisas assim). Respondi: Porque tenho caráter e não negocio com meus princípios!

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