(Ficção)
Pacard
Pous o Atabarildo atravessava uma crise existencial das brabas, côusa de reza braba para aliviar o lombo, completamente desenxabido, abichornado uma barbaridade. Andava de um lado a outro com a cuia vazia na mão, sem perceber que nem tinha cevado o mate, como fazia desde tenra idade, lá em priscas eras, quando ainda era um piá largado no mundo, trepador de pinheiro, e pescador em sanga. Desde os tempos em que tinha gosto pôlas côusa, e como dizem os "carça larga", "de bem com a vida". Como dizem as moças, "um piá faceiro!".
Entrava ando, saía ano, e as côusa rastejavam feito lesma, na sua vida. Não era má pessoa. Era até bão cos alimár, zeloso com a lavourinha que sameava e carpia todos os dias, e com os parcos caraminguás que ganhava, fazendo um biscatinho aqui e outro ali, fazia sobrar um tantico pra comprar uns caramélo pros baguris da vizinhança, ou tomar uma cervejinha preta nos domingos à tarde, lá no bolicho do Jaguaré.
Como não era afeito ao truco ou o carteado, de modo geral, nem gostava de falar bobajada desrespeitosa, acabava por ficar solito num canto, perto da porta, de adonde bombeava a paisagem, e matutava sobre a vida. Esse era seu mote: "Matutar"! Atabarildo matutava em tudo, e assuntava, quando encontrava quem lhe fizesse par, em quaje tudo também. Das efemérides, à pecicolojia. Não era letrado, mas lia os almanaques que lhe caíam à mão. Lia devagar, sílabando as palavras, pois fora até o primeiro ano da escola, mas isso não lhe impedia de buscar sabedoria nas letras, parcas e custosas, mas se esforçava para compreender os mistérios da vida e das palavras. Assim, era procurado para dar respostas por quem sabia menos que ele, o que não era sobremodo incomum no lugar.
Atabarildo, por não se associar aos beberrões, pouco era chamado para outros feitos, e costumava isolar-se voluntariamente, para observar o povaréu, onde quer que fosse, e assim, se divertia, ao seu modo também.
Atabarildo era um sujeito prestimoso. Nunca negava um obséquio, um benefício a quem quer que fosse, e muito raramente, pedia devolução dos favores que prestava. Não que não tivesse necessidade, mas nas vezes em que buscava uma gentileza, à quem havia outrora, estendido a mão, e dado até um braço, não obtinha recíproca, e assim, passava se conformar, enquanto do outro lado, achavam que ele estava ali mesmo era para servir o mundo, e que fosse lamber suas próprias chagas, quando a dor lhe assoberbasse a alma. E assim era.
Atabarildo era solito no mundo, mas apesar de ter uma família até numerosa, não participava das prosas familiares. Não que não quisesse, até que gostava dos circunlóquios loquazes da piazada saltitante, mas aos poucos, fora se tornando descartável, e à medida em que o tempo corria, tornara-se invisível, nulo, um estorvo. Ao menos era o que lhe parecia ser. Não era mais convocado a dar conselhos, não o cumprimentavam mais, e só se comunicavam com ele por gestos e olhares, duros, gelados, mofados, e rancorosos. Não que Atabarildo fosse um santo ou mártir. Não era. Era apenas o Atabarildo, mas quem nasce pra Atabarildo, jamais chegará à coisa alguma, que não seja apenas ser um "Atabarildo". E a quem ao feio despreza, odioso lhe parece cada dia mais. E é assim que se constroem os muros encobertos de espinheiros, para quem nem mesmo os gatos subam às suas costas, nos passeios da madrugada, vadiando e ronronando à espreita de gatas vadias. Muros espinhentos não gostam de gatos, e pessoas de alma de pedra não gostam de Atabarildo transparentes, de alma vazia.
Certa manhã, Atabarildo acordou disposto, cevou seu mate, e apanhou, numa gaveta, papel e lápis, e com os garranchos primitivos que conhecia, escreveu um bilhete, com os seguintes dizeres:
"cOnviTe pÁra o vElôreo do atAbaRildO fOrtuna"
cOnviDamoz vÓsa cenHoriA páRa o velóreo do estinTo AtAbarilDo fOrtuNa
que Vai acontSSer no dOmingo de Tarde (escolheu essa data, pra que ninguém tivesse desculpa para faltar), no BolixO do jAguarè.
bEbida de gRátiz pÁra toDoz.
Feito isso, deu de mão à um martelo e um prego torto, e garrou rumo ao bolicho do Jaguaré. Lá, pediu licença, e afixou junto à entrada, de modo bem visível, o bilhete, para que todos lessem. E tomou o rumo de casa, sem dizer uma palavra.
Em poucas horas, o bafafá espalhou-se pelo povoado, e imediatamente as pessoas se desocupavam de suas lides, pois a notícia era mais importante, até porque carregava um quê de mistério, pois quem anuncia o próprio velório, ainda em vida, a não ser que tenha propósitos nefastos em mente.
Compadre Adenor, o intendente substituto do povoado, foi convocado para ter com Atabarildo, e saber do intento do pobre, não que isso importasse, mas não era de bom tom saber de antemão de um velório.
Atabarildo o recebeu com uma cuida de mate, e ao contrário do que pensara o intendente substituto esticava a mão para receber uma cuia de mate, e a prosa rolou solta até o entardecer. Não se falou mais no assunto, e Adenor não tocou numa palavra com ninguém, pois estava de acordo com o que ouvira de Atabarildo.
Chegado o domingo, missa pela manhã, um churrasco ao meio dia no salão da paróquia, e lá estava o Atabarildo, saboreando sua costela com farinha, e contando causos à rodo, distribuindo caramelos pra pixotada, e piscando pras moças, fazendo-as rir em um isto de nervoso e expectativa, pelo velório de logo mais.
A tarde chegou, e lá estava o bolicho apinhado de curiosos, com flores, as carpideiras alinhadas, com seus lencinhos bordados, o Jaguaré, passando com uma bandeja de pastéis, vendendo à rodo, e numa mesa comprida, um arranjo de flores, tendo ao centro, um vazio, que tinha a forma de um corpo, e em lugar deste, apenas um bilhete:
" AtAbariLdO FortUna, sAudAdez Eterna!"
Barbaridade! mas que disparate. Isso haveria de ter uma explicação plausível, e sim, tinha.
Atabarildo abriu o povaréu em duas colunas, e bem vestido, com uma flor na lapela, achegando-se ao local do corpo ausente, pede que lhe sirvam uma cerveja preta, e de pé, segurando uma flor, começou a falar:
......
Continua........