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sábado, 23 de dezembro de 2017

Mas neeem te mete, bocaberta! - Um passeio pelos sotaques do Rio Grande




O Serrano
Pois falar do sotaque gaúcho, ou dos gaúchos, melhor dizendo, é muito mais que a miséria caricata da fonética carioquês-agauchada e imbecil que os personagens teatrais teimam em acreditam que sejam capazes de imitar. Não conseguem. O único humorista que conseguiu chegar próximo do caricato original (porque até pra fazer caricatura de si próprio, tem que ser gaúcho e bom de ouvido), foi Chico Anísio, onde imitava uma fazendeira de Bagé, a Salomé, que por sinal, nem foi criação dele e sim de um dos maiores humoristas brasileiros, amoitado no Rio Grande, o Renato Pereira. Todos os demais humoristas, por mais engraçados que sejam, ao seu modo, imitam os gaúchos, e acabam com isso, por seus estilos próprios, tornando-os engraçados também. Mas não seriam capazes de passear com uma cuia de mate por um rodeio, ou num fandango, sem que discretamente passassem um lencinho umedecido na bomba antes de tomar um mate servido, e aí tava morta a cobra. 

Pra começo de conversa, o rio Grande não tem um sotaque uniforme, e mudar a sílaba tônica quando diz "Barbaridade, tchê!", é o primeiro grande deslize fonético regionalista que cometem. Só um gaudério bem bagual (uma prenda lindaça é classificada aqui como gaudéria bem bagual também, pois discriminação não faz parte do jeito gaúcho de ser. Macho é macho, prenda é prenda e o pingo véio leva os dois no mesmo trote) é capaz de florear a entonação da palavra "Barbaridade!". Vejamos então estas particularidades.


O taura de cima da Serra, espicha o beiço pra salientar o bigodinho demodê, bem aparado, cheirando a loção de "Água Vérva", e diz: 
-"Mâns isso é uma baaar...baridade!". 
Percebem? A primeira sílaba, "bar", é separada por reticências, um leve hiato dançando no vazio, que termina rapidamente, para não perder o fio da meada, chegando no "baridade", porque prosa de serrano não tem hora pra terminar, quando tem mate e costela na prosa. E se você quer ter mesmo certeza de que o vivente é serrano, vai perceber que sempre no meio da conversa ele deixa escapar a expressão: 
-"Mãns isso é côza dos antxíiiigooo, de fal-cída minha vó, côza ainda do tempo da rivulução de vintxitrêis...".
 Dito isso, fica olhando no vazio, buscando um restinho de lembranças da saudosa Revolução de vinte e três, e chega até a escutar os gritos de "bâmo mula!"; "carca fogo nos veiáco!"; "te meto um soco nos beiço!", e outros impropérios de exaltação da valentia, e ainda o retinir das adagas na peleia. E se olhar com cuidado, irá perceber uma lágrima escorrendo no cantinho do zóio do maleva... Eis então que Barbaridade dita por um serrano, é de fato uma barrr...baridade mesmo.

Barbaridade é uma palavra que carrega uma carga muito grande de responsabilidade, pois quando começa a dizer "bar", meneia a cabeça e gira os olhos numa espiral cósmica, em busca de respostas para o infinito entre o bar e o baridade. Creio que até deveria haver um tratado para a pronúncia da barbaridade, o que em si seria já uma grande barbaridade também.

O Portoalegrense
Gracinhas à parte e discórdias por disputas de ego, o porto-alegrense é disparado o mais original de todos. É um cantor de ópera e um contorcionista por excelência, pois ao pronunciar a palavra "barbaridade", é um espetáculo imperdível, um show de mímicas, caretas, sons etéreos e volteios que se entrelaçam e voltam, entre sons que são modulados de acordo com o espaço disponível para a extensão fonética, e após se encurvarem em diagonal, com os braços estendidos em direção contrária, rodopiando a mão enquanto coça o redemoinho do cacuruto, exclama, começando com com o preâmbulo : 
-"Mãééééssss bêeeeeeeim capássssss!" Béãééérrrrr-báridáaaadjeeeee...! E aí começa a prosa, entremeada de adjetivos como: 
-"Me caíu os butxiãnnnsss, né guríêmm? Ou então:
- "Páu-lô Felí-pêee! Dêu pra txi, guríêeimm! Não quero mais que me chupes picolé antes do churrass, porque djepôis tu néaoo comee ná-damm , viuuu?"

Gentilíssimo e barraqueiro, o porto-alegrense é capaz de andar dez quadras fora de seu roteiro para levá-lo ao seu destino, quando descobre que você está perdido no trânsito. E nem será difícil de localizá-lo na serpetina do trânsito, porque ele te localiza. E berra de janela aberta: 
- Óooonhmmm! Daqui agora tu segue reto que vai dar béeeem onde tu queres irrrr!
Nem espera pelo agradecimento, e já some no meio dos carros que voam rasgando a buzina por qualquer dá-cá-essa palha.

O Missioneiro
O taura das missões fala de um modo mais malemolente, meio que mastigando água, quase adengosado, e suavizando o "C" pelo "X".:
- "Nhãoum! Não me gripo com faxilidjádje. Xó quando me dão xerveja muinto gelhádja pra beber!"
Mas aqui tem umas particularidades que convém salientar.Por exemplo: "Quando ME dão..." O Me é acentuado com vigor: Mê! As sílabas são bem separadas e cada palavra é tratada com a devida vênia. Não se engolem palavras. Muito menos sílabas. Pode dizer-se que o misssioneiro, que soaria como "Mixionêirô!, seja um bibliotecário e arquivista do vernáculo, porque cada palavra tem que ser minuciosamente elaborada ao ser dita.

Podemos dizer que o sotaque do missioneiro norteia também o planaltino e o fronteiriço, este um pouco acastelhanado pela influência com os países que divisam  com sua pátria, o Rio Grande. O "leitê quentê" faz parte tanto do cardápio quanto da fonética das palavras desta parte do Rio Grande.
- Nhão se apoquentê donha Mariaãm,  porque o pôrco foi capado e carece dê muintô tratô!"

O gramadense
Gramado é uma mini cidade cosmopolita sem sotaque próprio, que ora, pende para o serrano, ora para o porto-alegrense, e ainda sofre forte influência do tedesco (alemão primitivo) e dos seus dialetos, e também do italiano, ambos dialetos de seus colonizadores. Mas os mais antigos tinham certos maneirismos e expressões interessantes, ainda cultivada por alguns habitantes do interior, com:
- "Bamo pro Gramado, na venda do sêu Abeli, mãns antes bamo jogá uma partida de bótia na vendo do sêu Istrapassóla"!
Os sotaques italianos são bastante característicos em Gramado, de onde colhemos expressãos como:
- "Má crrrrrameintooou! Pórrrca mijéria! Xe eu non me xegurrro, tinha me ixcuiambado todoo o fordeco!"

-  Má óia, é, que te dou um tapo na retcha xe tu me incomoda ôze! Má io te díxe quantas veix que nom me incomoda, porque io xó vou lavá ox pé, e deu!"
- "Má me ixcuita, é! perrchê tu num vai mizá do ôtrrro lado da cája, xêu pôrrrcooo! Má dèssa a nona tê vêe aí que ela te cápa!"

Os alemães também deram sua contribuição pro rico balaio fonético dos gramadenses:

- "Das ist fumets, uma feiss lá, xácuára! Fem lá uma fêis e come ein stick kuhen, nêne! Côome, nêne, que tepôiss tu cânha uma piscôitinho brá facê tunga, ssim, no gafé"
- "Máaaaaim! O brimo Hans me tuca ti nôvooo! (Tuca,, brimo, tuca, fêm lá e tuca..!)"
"Bóte xecá, frequêsss! O cuca é arecém saíto ta fôrrno!"
- Ficínhaa..fí-cinhaaa! eu tá ton prreocupata com minha filho, Heinz! Ele xá dá rapaisss, e taí arumô um chenemetz pêemm mais félha gue ele, e ficáron no tomíinco te dárrte, facendo popaxáda nos capuêrra, e ela, que é peeeem maiss vélha te gue ele, tevía te ter xuíço no cabeça, mas nom tem, e fez mál pra ele. Acórra fái der que cassar, ele tois, né, uma fez!"

Enfim, isso tudo e muito mais é só um pouquinho do que se fala no Rio Grande, que é muito maior que o nome diz.

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