AD SENSE

sábado, 22 de fevereiro de 2025

A "Umiação de Das Dô" Um causo de verdade















Imagem: AI

A "Umiação de Das Dô" Um causo de verdade


Ribeirão do Canavial, lá nos cafundós do Morro Grande, era o vilarejo de remanescentes açorianos, evadidos de perseguições religiosas passadas, e que desde havia já um tanto de anos que viviam na "santa paz do Senhor Jesus", era como diziam. Os costumes se mantinham, firmados na religiosidade, e na sobrevivência, que determinava a quietude da vida e da laboriosa faina dos dias que passavam silentes, entre as estações do ano.

Vila de pescadores, e pequenos campesinos, Ribeirão do Canavial tinha apenas uma rua, com cerca de menos de uma légua, bem menos, que principiava na capela do Divino, e findava no alto do morro, de adonde havia uma escadaria de chão batido, por onde, nas ocasiões de celebração da devoção, o povaréu subia, de joelhos, alguns, em solene procissão.

Pequeninos casebres de tijolos rústicos enrijecidos ao sol, mesclados com areia e palha, um tipo de adobe mais simples, unidos por uma argamassa da mesma mistura, acrescida de óleo de baleia, que adquiriam dos baleeiros da Costa Verde, onde havia o abate de beneficiamento dos insumos cetáceos, sendo que o óleo era o mais desejado, pois fornecia iluminação das cidades, e insumo para argamassa das casas.

O namoro e o casamento enram tratados por arranjos familiares, ou das velhas casamenteiras, que conheciam todas as famílias do lugar, e de outros da vizinhança, e sabiam na ponta da língua, quem, dentre os moços, daqui e dali, tinha os dotes necessários para um bom matrimônio, e  assim, com tais informações na cachola, passavam a vida visitando casas para garimpar nubentes disponíveis, sendo essa a sua ocupação profissional, pois recebiam pagas pelos arranjos nupciais que conseguiam, e mais que isso, quanto melhor o arranjo, maior o dote, e quanto maior o dote, maior a recompensa para as casamenteiras, pois fora disso, era impensável imaginar em algum matrimônio, assim, pela vontade, ou bem querer dos  nubentes. A única exceção, era o padre, que vez por outra, atrapalhava os empenhos das casamenteiras, tendo eles próprios, suas preferências, co base em critérios interesseiros também.

Maria Das Dores, era filha de Manoelzinho e Acácia, pescador, e costureira. Moravam a duas casas abaixo da capela, onde maria, chamada de "Das Dô" passou a infância e adentrou a juventude. Brincava com as crianças da vila, com todas as brincadeiras que brincassem todas as crianças. Cumpria suas devoções, ia na missa, puxava reza nos velórios, ajudava nos enfeites da missa e das procissões, e uma vez por semana, levava guloseimas para o padre  Claudino, na casa canônica, atrás da capela. Fazia isso por duas razões especiais: primeiro, porque cumpria ordem da mãe, mas principalmente, porque para chegar à casa do pároco, pegava um atalho por dentro da sacristia, onde o sacristão Pereirinha, cumpria suas tarefas eclesiásticas da congregação.

E o diabo não tira folga, nunca, pois, sendo Das dô, gentil, e formosa, despertou a cisma de Pereirinha, e vou ater-me ao fato de que, na hora em que o desatino da paixão efervecia, adentra a sacristia, uma devota desprovida de matrimônio, apesar da idade avançada, ao que chamam de "solteirona", e o mal venceu, o diabo sorriu, e Das Dô foi levada de arrasto pelos cabelos pela devota, e entregue ao padre, aos berros, despertando a curiosidade da vizinhança, mais propriamente, dos pais de Das Dô.

A menina foi colocada sentada, de vestido preto, em sinal de luto, num banquinho, bem à frente da capela, com a cabeça coberta de saco de aniagem, sobre o qual, jogaram cinzas. calada, de cabeça baixa, a menina chorava, silenciosamente. Então, foi rezada uma missa, cuja homilia se estendeu quase até à meia noite. Depois, os fiés foram instados a permanecerem na capela, rezando e clamando, até o amanhecer.

Desfiados pelo rasgar da aurora, os primeiros raios da manhã, todos em jejum completo, à voz do padre, retornam ás suas casas, e fecham portas e janelas, ao longo da quase uma légua de rua. Ainda à brisa fresca da manhã, um vulto sai da igreja, de cabeça coberta de saco e cinzas, cabisbaixa, e chorando baixinho, bate tres vezes à primeira porta, que se abre, e uma devota, também choramingando, com a cabeça coberta, abre a porta, esbofeteia a penitente, entra e volta a fechar a porta. E assim, em uma a uma das casas, abria-se a porta, esbofeteava a moça, e voltava a fechar-se. Da capela até a escadaria do morro, onde a penitente subia, e passava o dia prostrada diante da cruz ao alto, e ali passou o dia, com sol a pino, até o entardecer, quando retornou à casa dos pais.


Daquele dia em diante,só respondia o que lhe era perguntado. Ia à missa, mas de cabeça coberta, assentando-se ao fundo, num canto escuro, saindo antes que terminasse. Não recebia mais a "eucaristia", e assim envelheceu, amargurada, triste, e sozinha. Em sua própria aldeia.
E o sacristão? Foi enviado ao seminário, e seguiu carreira eclesiástica. Tornou-se bispo e permitia, bondosamente, que as jovens noviças lhe beijassem o anel, e servissem guloseimas após a missa.


Pacard - Escritor*

Inspirados em fatos verídicos, cujos nomes e lugares são fictícios*

domingo, 9 de fevereiro de 2025

O Buião de Canjica de Dona Izartina

 
















Imagem: Bing

O Buião de Canjica

Soprando com fúria traiçoeira, o vento "carcava" as nuvens cinzentas vindas pelas bandas do "súli", amoitando-as de revesgueio contra as berbelas do morro do Gravatá, bem "adonde" Dona Izartina "campiava" gravetos pro fogo do ranchinho de barro taipado.

Negaceava de lado a lado, arreparando a força do vento e deduzindo, conforme ensinamentos dos antigos, que de vereda ia chover. Ali, ainda de pé na porta, meneou a cabeça pra dentro e pra fora, esticou o "percoço" bombeando as galinhas que se amontoavam pelos cantos debaixo da estrebaria, chamou o gato, que pulava lépido pra dentro do rancho, e fechou a porta.

Já dentro do ranchinho, Dona Izartina atiça o fogo com um naco de Coronilho, enfiando uns gravetos, uma "páia de mio", asoprando com jeito, e quando o fogo alumia a cozinha, se ergue, e garra uma lata "adonde" guardava Canjica. Deita um tantico no buião, enche com água e arreda pro meio da chapa do fogão, que já avermelhava com o tição do Coronilho. Enquanto a canjica ferve, Dona Izartina vai até à janela sem vidro, abre cuidadosamente a tampa de madeira e "bombeia" lá fora. A chuva chegou forte, atravessada, enregelando a alma. Dona Izartina fecha rapidamente a janela e volta a "bombear" a panela que ferve.

Acende um candeeiro de "corozena", põe no centro da pequena mesa carcomida pelos anos, coberta por uma toalha rota, bordada por ela mesma antes de se casar, como parte do enxoval pobrinho que trouxera de casa ao juntar os trapos com o "fio do Serzinando", moço "bão e trabaiadô". Ali na mesa, Dona Izartina "garra" um buião de leite gordo fervido, as especiarias: Canela, Cravo, raspa de limão, "açúcri", e após verificar que a canjica já está cozida e macia, deita o leite e os temperos no buião e mexe com uma velha colher de pau, pra não grudar no fundo. Feito isso, abre a portinha do fogão e reduz o fogo, pra canjica cozer "mais digavazinho" e não queimar no fundo.

Dona Izartina se assenta no banco junto à mesa, e o gato manhoso pula no seu colo, aquietando-se dengosamente. Ela diz uns gracejos, sorri, faz afagos no bichano, e presta atenção à chama que bruxeleia embalada pelo vento das frestas. A luz tremulante envolve Dona Izartina numa bruma de lembranças, fazendo-a pousar suavemente nos dias alegres da infância.

Genésio Brabuleta

Izartina ainda não era "Dona", posto que uma serelepe rapariguinha. A vida corria do jeito que Deus mandava, lá na roça do Morro Gravatá, "adonde" sua mãe, viúva ainda jovem, com "treis fiu" nas costas e outro no bucho, penava de sol a sol para sustentar os barrigudinhos. Izartina era a mais novinha e a mais "levada da casqueira". Pulava feito cabrita pelos barrancos, trepava em "gualhabêra", colhia "Gavirova" e "apinchava pedra" nas pencas de Butiás. Passava os dias pelos brejos, pescando lambaris no córguinho que serpenteava o pé do morro, quando não estavam batendo enxada "alimpando" os "miaráli", as morangueiras e as hortaliças. Pobrinhos eram, não hei de negar, mas afeto nunca lhes "fartô".

Os anos passaram, e já mocinha, Izartina ia à igreja com os irmãos e a mãe, levando uma panela amarrada a uma trouxa para o "ajunta-panelas" após o culto. Ali, entre pães, feijão, goiabada e café adoçado, Izartina era feliz sem nem se dar conta. Entre os moços, um mancebo lhe arreparava os passos: Genésio Brabuleta. Magrinho, de braçadas largas ao nadar no arroio, faltava-lhe coragem para convidá-la a tomar refresco na "Venda" do Marcolino. O pastor, percebendo a intenção do moço, facilitou a prosa, convidando-os para um encontro na sua casa. O namoro começou respeitoso, sonhando com o casório, mas o destino tinha outros planos.

Genésio, aos "dezassete" anos, foi chamado a servir a pátria. Partiu para a longínqua Itália, onde os pracinhas brasileiros enfrentavam frio, inimigos e saudade. Em uma aldeia libertada, uma "ragazzina" afetuosa enlaçou seu destino ao dele, e Genésio nunca mais voltou ao Morro do Gravatá. O Brabuleta "avuô". Izartina seguiu a vida, casou-se com um matuto de boa índole e, desde então, amanhece "bombeando" o horizonte pra ver se Jesus está voltando. Não está. Então, segue suas rotinas, e hoje, a faina é cozer a Canjica para o culto vindouro.

No buião de Dona Izartina, a Canjica leva uma dose de oração, posto que cozinha orando (ou "rezando", tanto faz). Assim que está no ponto, o leite gordo, a Canela em pau, os dentinhos de Cravo, o "açúcri" e um tantico de água borbulham até que todos os sabores se unam, prontos para serem apreciados.

O Buiãozinho da "sodade"

O vento lá fora traz um chuvisqueiro atravessado, deixando o dia cada hora mais "enfarruscado". O ar gelado se infiltra pelas frestas, e Dona Izartina deita seu velho xale de crochê sobre os ombros magros. Se assenta à mesa diante de um pequeno buião "cuáje" transbordando de Canjica quentinha. Saboreia colherada a colherada, como se lesse um poema de saudade, quem sabe "alembrando" ora do seu véio que se foi, ora do moço Genésio Brabuleta, que nunca mais voltou. Quem é que vai saber, não é fato?


Pacard é Escritor, Designer, Contador de Causos, e Palestrante





sábado, 8 de fevereiro de 2025

Debate Cultural: "Erodito e a Erosão da Inteligência"
















Debate Cultural: "Erodito e a Erosão da Inteligência"

(Este esquete é fictício, e duvido que haja semlhança alguma com fatos e personagens reais. Se disserem que tem, eu nego tudo, sempre vou negar, e só falo na presença de um professor de gramática, um que saiba ler.
Nenhum narcisista foi maltratado ao escrever este ensaio.)

Personagens:

Professor Hermenegildo Pafúncio – Acadêmico tradicional e defensor ferrenho da cultura clássica.

Deputado Ambrósio Chavão – Político populista, especialista em frases feitas e promessas vazias.

Sandubinha da Creuza – Filósofo popular e dono da famosa "Bifinho a rolê"

Kévinho Descolado – Influenciador digital e guru das redes sociais.

Mediador – Jornalista tentando manter a compostura e a sanidade,  no meio do caos.


Mediador: Boa noite a todos! Hoje, neste debate especial, discutimos um tema fundamental: a erosão cultural e o impacto da educação na sociedade moderna. Mas, para começar, professor Pafúncio, poderia explicar o conceito de "erodir"?

Prof. Pafúncio: Claro! O verbo "erodir" vem de "erosão", que significa desgaste contínuo. No contexto cultural, representa a perda progressiva do conhecimento, levando-nos a um estado de ignorância absoluta, onde discursos articulados são substituídos por grunhidos. Alguns chegam a babar, ao mirarem-se no espelho; É raro, mas acontece muito. Como temos visto ultimamente, vivemos tempos eroditos!
















Dep. Chavão: (batendo na mesa) Prefeito! Concordo plenamente! Tanto que eu já ia propor o Dia Nacional do Erodito! A cultura é o nosso maior patrimônio! Como dizia meu grande ídolo, o filósofo grego Confúcio… ou era Pafúncio? Enfim, "A cultura é o pão amanhecido da alma!"

Prof. Pafúncio: (ajustando os óculos) Deputado, Confúcio nunca disse isso…

Dep. Chavão: Claro que disse! Tá no meu grupo de WhatsApp “Pensadores do Século XIXI”!

Sandubinha da Creuza: (enquanto devora um "Bifinho a rolê") Deputado, o senhor tá certo, mas tá errado! O importante mesmo é a sabedoria popular! Eu, por exemplo, sigo o ensinamento do grande Sócrates, que já tudo sabia que não sabia, bem antes de jogar no Flamengo… ou melhor, do Sandubinha da Creuza: "Só sei que nada sei, mas sei que este "Bifinho a rolê" tá no ponto! Tem aí uma mostardinha?"

Kévinho Descolado: (gravando um story) Mano, isso é genial! Vou lançar a trend #EroditoÉTop! Professor, o senhor devia aproveitar e criar uma dancinha sobre Platão no TikTok!

Prof. Pafúncio: (chocado) Isso é um ultraje! A juventude está trocando Aristóteles por memes! Isso só comprova a erosão da inteligência! O declínio do saber! O apocalipse do pensamento crítico!

Dep. Chavão: (interrompendo) Por isso mesmo, professor! Para evitar essa erosão cultural, eu proponho um novo projeto de lei: "Eroditos do Amanhã"! Nele, cada criança receberá um tablet! Sem livros, só com figurinhas e games, claro, porque hoje em dia ninguém lê mais!
















Prof. Pafúncio: (segurando a cabeça) Pelo amor de Aristóteles e de Pafúncio! O senhor quer acelerar a ignorância?!

Sandubinha da Creuza: (dando de ombros) Professor, não se estresse! O que importa é que todo mundo coma bem e pense positivo! Como diria Descartes… ou era minha tia Fátima, antes de ser descartada pelo gigolô dela? Enfim, "Penso, logo existe "Bifinho a rolê""!

 Kévinho Descolado: (animado) Essa frase é fire! Vou colocar numa t-shirt!

Mediador: (suspiros profundos) E com essa erodita reflexão, encerramos o nosso debate. Boa noite e, por favor, leiam um livro!

Imagens: IA



domingo, 2 de fevereiro de 2025

São só nuvens, e não anjos

 


Não são anjos  

os que tecem o céu de pranto,  

são véus de luz, disfarces do infinito,  

que escondem o sol, mas trazem encanto.  

São nuvens, não anjos,  

que pintam o horizonte de desvelo,  

são sonhos que se desmancham no ar,  

quem me dera fossem anjos,  

mas são só nuvens a pairar,  

só nuvens, a me lembrar  

que o céu também sabe chorar.  


Não são anjos  

os que cruzam o azul em silêncio,  

são sombras leves, passageiras,  

que embalam meus medos num lenço.  

São nuvens, não anjos,  

que flutuam sem rumo, sem pressa,  

são versos que o vento leva além.  

Quem me dera fossem anjos,  

mas são só nuvens, ninguém,  

só nuvens, a me ensinar  

que a dor também pode voar.  


Não são anjos  

os que guardam meus segredos,  

são véus de algodão, frágeis e breves,  

que escondem o céu, mas trazem enredos.  

São nuvens, não anjos,  

que dançam no palco da vida,  

são promessas que o tempo desfaz.  

Quem me dera fossem anjos,  

mas são só nuvens, talvez,  

só nuvens, a me mostrar  

que até a saudade pode se dissipar.

Demerval - O caso da sogra (publicado em 2005)




















 Ilustrações: IA

Demerval não era cego. Demerval não era louco. Demerval sabia exatamente o que acontecia na sua vida, a começar pela casa onde morava. Ou melhor, a casa da sogra.

Nos tempos bicudos em que vivia, com o salário de professor de geografia em uma escolinha pública, Demerval sabia que era um abençoado por ter onde morar sem pagar aluguel, condomínio ou IPTU. Por isso, nunca reclamava. Tinha uma rotina rígida: chegava sempre no mesmo horário, saía na mesma hora e comia as mesmas coisas. Sempre. Todo dia. Exceto aos domingos, quando a sogra preparava salada de maionese, carne de panela e spaghetti. Afinal, ele morava na casa dela.

Mas sua sogra não era ruim. Pelo contrário, era uma mulher excepcional. Diferente do conceito pré-definido que se costuma ter de todas as sogras. Ainda jovem, esbelta, bem cuidada, fina e delicada. Suas mãos continuavam macias, a pele firme e o sorriso encantador. Um sorriso que não era qualquer sorriso. Sorria com o olhar, sorria ao andar, sorria no silêncio. E Demerval percebia isso. O que o fazia sorrir também, com um orgulho discreto.

E assim os dias de Demerval se passavam. Embora vivesse na casa da sogra, a doçura dela o fazia feliz. Sim, Demerval era feliz. Mesmo depois de ter sido deixado pela esposa há mais de cinco anos. O que lhe restara era o verdadeiro amor de sua vida: a sogra.

Ela tinha sido sua professora no primário. Sempre linda e meiga. Um encanto. Aos oito anos, Demerval ousou pedi-la em casamento. Ela respondeu com um esperançoso "talvez, um dia". E ele acreditou.

O tempo passou. Ela se casou... com outro. Um homem mais velho, rico, dono de um carro. Demerval, na época, só tinha uma bicicletinha aro 24. Não havia como competir. Mas ele esperou. O tempo, afinal, era o senhor da razão. Choveria na sua horta.

Os anos seguiram seu curso. Demerval nunca se casou. Sua professora teve uma filha. Uma menina linda, loira, de olhos azuis, que cresceu e se tornou uma mulher deslumbrante. Atrevida, levada, cheia de vida. Tudo saía conforme o planejado por Demerval.

Ele era um homem maduro, cheiroso, educado e já conhecido desde a infância pela professora. Nada mais perfeito. Com o tempo, depois de muitas flores, presentinhos e gestos gentis, casou-se com a filha da sua professora.



















Um gentleman. Um impagável cavalheiro. Cavalheiro demais. Cercava a esposa de flores, mas ela queria mais. No âmago da sua juventude, ansiava por emoção. Ele dava presentes — para a esposa e para a sogra. Convidava a esposa para jantares românticos à luz de velas: ele, ela... e a sogra.

A sogra adorava. Aquele menino de ouro não a enganara. Doce e cavalheiresco, como sempre fora desde a primeira série. O genro perfeito.

Mas não era o marido que sua filha sonhara. Não que ele falhasse em suas obrigações. Pelo contrário, era pontual, servil, gentil e delicado. Até que um dia, a esposa não aguentou mais e foi-se embora. Queria mais. Queria aventura. Queria um homem normal.

Puxa vida. Por que ele não podia ser só um pouquinho como os outros? Deixar a cueca jogada no corredor, as meias na mesa de jantar, arrotar, roncar, dizer palavrões. Por que ele não errava pelo menos uma vez para que ela tivesse o prazer de jogar tudo na cara dele?

Mas não. Demerval era metódico. Matemático. Amoroso. E nem queixar-se à mãe podia, porque diria o quê? E para quem? Então, foi embora. Ferida na sua dignidade, deixou apenas uma carta de despedida... em branco.

E Demerval ficou só. Com a sogra.

Não, ele nunca mais ousou pedi-la em casamento. Ela já havia dito seu "talvez". E esse "talvez" era a certeza de que Demerval precisava para ser feliz. Mesmo que ao lado da sogra.


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sábado, 1 de fevereiro de 2025

Endomerges













Image: AI

 

Endomerges acordava todos os dias pontualmente às quatro da manhã. Nada incomum, muitos fazem isso. A vida corrida de quem trabalha muito e ganha pouco exige que se levante às quatro e vá dormir à meia-noite e tanto. Conheço muitos que vivem assim. Endomerges também vivia. Mas havia algo peculiar nele: acordava nesse horário apenas para tomar um chá de maracujá… para dormir.

Não, ele não sofria de insônia. Pelo contrário, tinha sono profundo e precisava de um despertador para acordar. Assim que despertava, preparava o chá e voltava a dormir.

Mas Endomerges não parava por aí. Religioso, fazia jejum semanalmente. E, ao fim de um dia inteiro sem comer nem beber, tomava um estimulante de apetite. Então, comia. Se empanturrava. E, logo depois, tomava outro remédio — para perder a fome. Tomava junto das refeições, para não “bater” no estômago vazio.

Já mencionei que Endomerges era religioso? Pois era. Acreditava que deveria acreditar. E nisso, cria piamente. Era devoto até. O problema era que não sabia exatamente em quê acreditava. Então, convencia-se de que deveria crer para, quem sabe um dia, acreditar melhor. Não era apenas um crente, era quase um fanático. Defendia com unhas e dentes (postiços) a devoção ao crente desconhecido.

Tornou-se dizimista e começou a arrecadar fundos para construir uma catedral da crença absoluta. Mas era uma seita secreta. Ninguém poderia saber. Por isso, apenas ele contribuía com ofertas generosas… e as guardava embaixo do colchão.

Discursava em silêncio, movendo apenas os lábios, em um lugar discreto e escuro, para não ser traído por leitores de lábios. Sempre tapava a boca com a mão ao falar. Mas havia algo que o frustrava: como não falava em voz alta, nunca conseguia escutar o próprio discurso. Saía das reuniões consigo mesmo sem entender nada. Ainda assim, mantinha a esperança de que, na próxima vez, seria ouvido. E também ouviria.

Endomerges não era infeliz. Pelo contrário, era alegre, extrovertido e simpático. Mas silencioso. Evitava manifestar emoções para não expor sua intimidade. Nem mesmo olhava no espelho, com medo de se reconhecer e, assim, trair a si mesmo. Afinal, nunca se sabe com quem estamos compartilhando nossos segredos.

Endomerges, no entanto, não guardava segredos. Doara todos aos pobres. Ou melhor, a um único pobre: ele mesmo. Mas isso ninguém sabia.

Afinal, Endomerges era único.

Ou não?


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As cores do passado e as cores químicas do presente - Gramado é sempre cor e saudade














Casa Amélia Kraemer (à esquerda, marrom. à direita, licenciosidade poética do autor, Pacard)

Há quem diga que a modernidade não apagou Gramado, apenas a transformou em algo maior, mais próspero, mais encantador para os olhos de quem chega sem lembranças para comparar. Mas quem viveu a cidade de outrora sabe que crescer nem sempre significa evoluir, e que, muitas vezes, a pressa em acompanhar o tempo pode fazer com que se perca justamente aquilo que tornava um lugar único. As luzes que agora brilham mais do que as estrelas, os jardins meticulosamente planejados para o olhar turístico, os prédios que se erguem onde antes o verde dominava – tudo tem seu valor, mas a pergunta que fica é: o que restará quando o último traço de identidade se dissolver sob a maquiagem do progresso?

Há quem se emocione ao caminhar por ruas que um dia foram de terra, sentindo nos pés a lembrança de um chão mais autêntico, menos apressado. Antes, os sapatos se sujavam de poeira ou lama, mas os corações se preenchiam de encontros, de conversas ao entardecer, de um tempo que não precisava ser cronometrado. Agora, o asfalto liso acelera os passos e distancia os olhares, cada um imerso na sua tela, na sua pressa, na sua própria solidão. Quem ainda lembra do tempo em que se cumprimentava os vizinhos pelo nome, sem a urgência de uma notificação digital?

Há quem olhe para os antigos casarões de madeira, agora raros, como relíquias teimosas que resistem ao avanço do concreto. Mas o que muitos não percebem é que cada casa derrubada leva consigo não apenas tábuas e telhas, mas histórias, risadas, jantares de domingo, o cheiro do café passado na hora, a sombra fresca de uma varanda que abrigava confidências e sonhos. Substituir memórias por estruturas modernas pode fazer a cidade crescer para fora, mas será que ela não está encolhendo por dentro?

Há quem veja nos olhos dos velhos um brilho triste, não porque desprezam o novo, mas porque sabem que nem tudo o que reluz é ouro. E talvez seja esse o maior dilema do tempo: ele avança sem perguntar se estamos prontos para deixar para trás aquilo que um dia amamos. O velho que fala de Gramado como se fosse uma joia perdida não quer negar o presente, apenas deseja que o passado tenha ao menos um canto onde possa repousar sem ser esquecido.

E há quem, ainda que em meio ao turbilhão do presente, pare um instante para ouvir. Ouvir as histórias de quem viu a cidade nascer, crescer, mudar. Ouvir o eco das vozes que já se foram, mas que ainda vivem na lembrança de quem não quer que Gramado se torne apenas um cartão-postal bonito, sem alma, sem raízes. Porque, no fim, a cidade só será verdadeiramente grande se souber carregar consigo o peso e a beleza do que já foi, sem esquecer aqueles que a tornaram possível.

Há quem se sinta acima da vida quando velhos ousam repetidamente falar do "seu tempo", como se o "tempo dos outros não tivesse nenhum valor, enquanto o que os velhos desejam apenas é acender a primeira chispa que incandesce  a trêmula vela do convívio vernacular entre pares humanos, haja vista que quatro patas ocupem cada dia mais as calçadas, somando-se em seis, onde a mais valia de um animal de estimação seja capaz de ocupar o espaço de um idoso de estimação. Mas parece mesmo ser, uma vez que para o animal adestrado a ração e um passeio diário para as evacuações seja infinitamente mais simples e prazeroso do que suportar um velho ranzinza a queixar-se das dores contínuas, e que acreditam terem direito à voz e voto, nas discussões familiares, isto é, pelos grupos digitais das redes antissociais.

Gramado, a Gramado de minha infância e juventude, tinha o celestial dom das cores que voavam em forma de borboletas, durante o dia, e dos luminares piscantes dos pirilampos, ao anoitecer, embalados ao sons de grilos e batráqios, ou das pererecas choramingosas pelos banhados, durante os dias mais quentes do verão. A Gramado que espargia perfumes pelos caminhos ainda tem a mesma geografia, e até muito mais flores, cuja diferença gritante é que antes, as flores e as crianças, que eram chamadas pelos nomes próprios e familiares, eram tão mais proeminentes em relação à madeira das casas, calculadas e bem espaçadas, do que a ínfima presença de canteiros apertados adornando reservados minúsculos diante do concreto que acumula gentes, que abastecem a cidade de fundos, enquanto nos fundos apenas concreto complementa o resto de chão que sobrou no terreno, agora sem as couves, as alfaces, as cebolinhas.

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Dona Izartina, suas couves, e o "Grande Reset Mundial"

Imagem: IA Era uma quinta-feira, disso Dona Izartina se alembrava com clareza, pois antecedia a colheita de Marcela, marcada para o amanhece...