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domingo, 2 de fevereiro de 2025

São só nuvens, e não anjos

 


Não são anjos  

os que tecem o céu de pranto,  

são véus de luz, disfarces do infinito,  

que escondem o sol, mas trazem encanto.  

São nuvens, não anjos,  

que pintam o horizonte de desvelo,  

são sonhos que se desmancham no ar,  

quem me dera fossem anjos,  

mas são só nuvens a pairar,  

só nuvens, a me lembrar  

que o céu também sabe chorar.  


Não são anjos  

os que cruzam o azul em silêncio,  

são sombras leves, passageiras,  

que embalam meus medos num lenço.  

São nuvens, não anjos,  

que flutuam sem rumo, sem pressa,  

são versos que o vento leva além.  

Quem me dera fossem anjos,  

mas são só nuvens, ninguém,  

só nuvens, a me ensinar  

que a dor também pode voar.  


Não são anjos  

os que guardam meus segredos,  

são véus de algodão, frágeis e breves,  

que escondem o céu, mas trazem enredos.  

São nuvens, não anjos,  

que dançam no palco da vida,  

são promessas que o tempo desfaz.  

Quem me dera fossem anjos,  

mas são só nuvens, talvez,  

só nuvens, a me mostrar  

que até a saudade pode se dissipar.

Demerval - O caso da sogra (publicado em 2005)




















 Ilustrações: IA

Demerval não era cego. Demerval não era louco. Demerval sabia exatamente o que acontecia na sua vida, a começar pela casa onde morava. Ou melhor, a casa da sogra.

Nos tempos bicudos em que vivia, com o salário de professor de geografia em uma escolinha pública, Demerval sabia que era um abençoado por ter onde morar sem pagar aluguel, condomínio ou IPTU. Por isso, nunca reclamava. Tinha uma rotina rígida: chegava sempre no mesmo horário, saía na mesma hora e comia as mesmas coisas. Sempre. Todo dia. Exceto aos domingos, quando a sogra preparava salada de maionese, carne de panela e spaghetti. Afinal, ele morava na casa dela.

Mas sua sogra não era ruim. Pelo contrário, era uma mulher excepcional. Diferente do conceito pré-definido que se costuma ter de todas as sogras. Ainda jovem, esbelta, bem cuidada, fina e delicada. Suas mãos continuavam macias, a pele firme e o sorriso encantador. Um sorriso que não era qualquer sorriso. Sorria com o olhar, sorria ao andar, sorria no silêncio. E Demerval percebia isso. O que o fazia sorrir também, com um orgulho discreto.

E assim os dias de Demerval se passavam. Embora vivesse na casa da sogra, a doçura dela o fazia feliz. Sim, Demerval era feliz. Mesmo depois de ter sido deixado pela esposa há mais de cinco anos. O que lhe restara era o verdadeiro amor de sua vida: a sogra.

Ela tinha sido sua professora no primário. Sempre linda e meiga. Um encanto. Aos oito anos, Demerval ousou pedi-la em casamento. Ela respondeu com um esperançoso "talvez, um dia". E ele acreditou.

O tempo passou. Ela se casou... com outro. Um homem mais velho, rico, dono de um carro. Demerval, na época, só tinha uma bicicletinha aro 24. Não havia como competir. Mas ele esperou. O tempo, afinal, era o senhor da razão. Choveria na sua horta.

Os anos seguiram seu curso. Demerval nunca se casou. Sua professora teve uma filha. Uma menina linda, loira, de olhos azuis, que cresceu e se tornou uma mulher deslumbrante. Atrevida, levada, cheia de vida. Tudo saía conforme o planejado por Demerval.

Ele era um homem maduro, cheiroso, educado e já conhecido desde a infância pela professora. Nada mais perfeito. Com o tempo, depois de muitas flores, presentinhos e gestos gentis, casou-se com a filha da sua professora.



















Um gentleman. Um impagável cavalheiro. Cavalheiro demais. Cercava a esposa de flores, mas ela queria mais. No âmago da sua juventude, ansiava por emoção. Ele dava presentes — para a esposa e para a sogra. Convidava a esposa para jantares românticos à luz de velas: ele, ela... e a sogra.

A sogra adorava. Aquele menino de ouro não a enganara. Doce e cavalheiresco, como sempre fora desde a primeira série. O genro perfeito.

Mas não era o marido que sua filha sonhara. Não que ele falhasse em suas obrigações. Pelo contrário, era pontual, servil, gentil e delicado. Até que um dia, a esposa não aguentou mais e foi-se embora. Queria mais. Queria aventura. Queria um homem normal.

Puxa vida. Por que ele não podia ser só um pouquinho como os outros? Deixar a cueca jogada no corredor, as meias na mesa de jantar, arrotar, roncar, dizer palavrões. Por que ele não errava pelo menos uma vez para que ela tivesse o prazer de jogar tudo na cara dele?

Mas não. Demerval era metódico. Matemático. Amoroso. E nem queixar-se à mãe podia, porque diria o quê? E para quem? Então, foi embora. Ferida na sua dignidade, deixou apenas uma carta de despedida... em branco.

E Demerval ficou só. Com a sogra.

Não, ele nunca mais ousou pedi-la em casamento. Ela já havia dito seu "talvez". E esse "talvez" era a certeza de que Demerval precisava para ser feliz. Mesmo que ao lado da sogra.


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sábado, 1 de fevereiro de 2025

Endomerges













Image: AI

 

Endomerges acordava todos os dias pontualmente às quatro da manhã. Nada incomum, muitos fazem isso. A vida corrida de quem trabalha muito e ganha pouco exige que se levante às quatro e vá dormir à meia-noite e tanto. Conheço muitos que vivem assim. Endomerges também vivia. Mas havia algo peculiar nele: acordava nesse horário apenas para tomar um chá de maracujá… para dormir.

Não, ele não sofria de insônia. Pelo contrário, tinha sono profundo e precisava de um despertador para acordar. Assim que despertava, preparava o chá e voltava a dormir.

Mas Endomerges não parava por aí. Religioso, fazia jejum semanalmente. E, ao fim de um dia inteiro sem comer nem beber, tomava um estimulante de apetite. Então, comia. Se empanturrava. E, logo depois, tomava outro remédio — para perder a fome. Tomava junto das refeições, para não “bater” no estômago vazio.

Já mencionei que Endomerges era religioso? Pois era. Acreditava que deveria acreditar. E nisso, cria piamente. Era devoto até. O problema era que não sabia exatamente em quê acreditava. Então, convencia-se de que deveria crer para, quem sabe um dia, acreditar melhor. Não era apenas um crente, era quase um fanático. Defendia com unhas e dentes (postiços) a devoção ao crente desconhecido.

Tornou-se dizimista e começou a arrecadar fundos para construir uma catedral da crença absoluta. Mas era uma seita secreta. Ninguém poderia saber. Por isso, apenas ele contribuía com ofertas generosas… e as guardava embaixo do colchão.

Discursava em silêncio, movendo apenas os lábios, em um lugar discreto e escuro, para não ser traído por leitores de lábios. Sempre tapava a boca com a mão ao falar. Mas havia algo que o frustrava: como não falava em voz alta, nunca conseguia escutar o próprio discurso. Saía das reuniões consigo mesmo sem entender nada. Ainda assim, mantinha a esperança de que, na próxima vez, seria ouvido. E também ouviria.

Endomerges não era infeliz. Pelo contrário, era alegre, extrovertido e simpático. Mas silencioso. Evitava manifestar emoções para não expor sua intimidade. Nem mesmo olhava no espelho, com medo de se reconhecer e, assim, trair a si mesmo. Afinal, nunca se sabe com quem estamos compartilhando nossos segredos.

Endomerges, no entanto, não guardava segredos. Doara todos aos pobres. Ou melhor, a um único pobre: ele mesmo. Mas isso ninguém sabia.

Afinal, Endomerges era único.

Ou não?


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As cores do passado e as cores químicas do presente - Gramado é sempre cor e saudade














Casa Amélia Kraemer (à esquerda, marrom. à direita, licenciosidade poética do autor, Pacard)

Há quem diga que a modernidade não apagou Gramado, apenas a transformou em algo maior, mais próspero, mais encantador para os olhos de quem chega sem lembranças para comparar. Mas quem viveu a cidade de outrora sabe que crescer nem sempre significa evoluir, e que, muitas vezes, a pressa em acompanhar o tempo pode fazer com que se perca justamente aquilo que tornava um lugar único. As luzes que agora brilham mais do que as estrelas, os jardins meticulosamente planejados para o olhar turístico, os prédios que se erguem onde antes o verde dominava – tudo tem seu valor, mas a pergunta que fica é: o que restará quando o último traço de identidade se dissolver sob a maquiagem do progresso?

Há quem se emocione ao caminhar por ruas que um dia foram de terra, sentindo nos pés a lembrança de um chão mais autêntico, menos apressado. Antes, os sapatos se sujavam de poeira ou lama, mas os corações se preenchiam de encontros, de conversas ao entardecer, de um tempo que não precisava ser cronometrado. Agora, o asfalto liso acelera os passos e distancia os olhares, cada um imerso na sua tela, na sua pressa, na sua própria solidão. Quem ainda lembra do tempo em que se cumprimentava os vizinhos pelo nome, sem a urgência de uma notificação digital?

Há quem olhe para os antigos casarões de madeira, agora raros, como relíquias teimosas que resistem ao avanço do concreto. Mas o que muitos não percebem é que cada casa derrubada leva consigo não apenas tábuas e telhas, mas histórias, risadas, jantares de domingo, o cheiro do café passado na hora, a sombra fresca de uma varanda que abrigava confidências e sonhos. Substituir memórias por estruturas modernas pode fazer a cidade crescer para fora, mas será que ela não está encolhendo por dentro?

Há quem veja nos olhos dos velhos um brilho triste, não porque desprezam o novo, mas porque sabem que nem tudo o que reluz é ouro. E talvez seja esse o maior dilema do tempo: ele avança sem perguntar se estamos prontos para deixar para trás aquilo que um dia amamos. O velho que fala de Gramado como se fosse uma joia perdida não quer negar o presente, apenas deseja que o passado tenha ao menos um canto onde possa repousar sem ser esquecido.

E há quem, ainda que em meio ao turbilhão do presente, pare um instante para ouvir. Ouvir as histórias de quem viu a cidade nascer, crescer, mudar. Ouvir o eco das vozes que já se foram, mas que ainda vivem na lembrança de quem não quer que Gramado se torne apenas um cartão-postal bonito, sem alma, sem raízes. Porque, no fim, a cidade só será verdadeiramente grande se souber carregar consigo o peso e a beleza do que já foi, sem esquecer aqueles que a tornaram possível.

Há quem se sinta acima da vida quando velhos ousam repetidamente falar do "seu tempo", como se o "tempo dos outros não tivesse nenhum valor, enquanto o que os velhos desejam apenas é acender a primeira chispa que incandesce  a trêmula vela do convívio vernacular entre pares humanos, haja vista que quatro patas ocupem cada dia mais as calçadas, somando-se em seis, onde a mais valia de um animal de estimação seja capaz de ocupar o espaço de um idoso de estimação. Mas parece mesmo ser, uma vez que para o animal adestrado a ração e um passeio diário para as evacuações seja infinitamente mais simples e prazeroso do que suportar um velho ranzinza a queixar-se das dores contínuas, e que acreditam terem direito à voz e voto, nas discussões familiares, isto é, pelos grupos digitais das redes antissociais.

Gramado, a Gramado de minha infância e juventude, tinha o celestial dom das cores que voavam em forma de borboletas, durante o dia, e dos luminares piscantes dos pirilampos, ao anoitecer, embalados ao sons de grilos e batráqios, ou das pererecas choramingosas pelos banhados, durante os dias mais quentes do verão. A Gramado que espargia perfumes pelos caminhos ainda tem a mesma geografia, e até muito mais flores, cuja diferença gritante é que antes, as flores e as crianças, que eram chamadas pelos nomes próprios e familiares, eram tão mais proeminentes em relação à madeira das casas, calculadas e bem espaçadas, do que a ínfima presença de canteiros apertados adornando reservados minúsculos diante do concreto que acumula gentes, que abastecem a cidade de fundos, enquanto nos fundos apenas concreto complementa o resto de chão que sobrou no terreno, agora sem as couves, as alfaces, as cebolinhas.

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São só nuvens, e não anjos

  Não são anjos   os que tecem o céu de pranto,   são véus de luz, disfarces do infinito,   que escondem o sol, mas trazem encanto.   São nu...