Casa Amélia Kraemer (à esquerda, marrom. à direita, licenciosidade poética do autor, Pacard)
Há quem diga que a modernidade não apagou Gramado, apenas a transformou em algo maior, mais próspero, mais encantador para os olhos de quem chega sem lembranças para comparar. Mas quem viveu a cidade de outrora sabe que crescer nem sempre significa evoluir, e que, muitas vezes, a pressa em acompanhar o tempo pode fazer com que se perca justamente aquilo que tornava um lugar único. As luzes que agora brilham mais do que as estrelas, os jardins meticulosamente planejados para o olhar turístico, os prédios que se erguem onde antes o verde dominava – tudo tem seu valor, mas a pergunta que fica é: o que restará quando o último traço de identidade se dissolver sob a maquiagem do progresso?
Há quem se emocione ao caminhar por ruas que um dia foram de terra, sentindo nos pés a lembrança de um chão mais autêntico, menos apressado. Antes, os sapatos se sujavam de poeira ou lama, mas os corações se preenchiam de encontros, de conversas ao entardecer, de um tempo que não precisava ser cronometrado. Agora, o asfalto liso acelera os passos e distancia os olhares, cada um imerso na sua tela, na sua pressa, na sua própria solidão. Quem ainda lembra do tempo em que se cumprimentava os vizinhos pelo nome, sem a urgência de uma notificação digital?
Há quem olhe para os antigos casarões de madeira, agora raros, como relíquias teimosas que resistem ao avanço do concreto. Mas o que muitos não percebem é que cada casa derrubada leva consigo não apenas tábuas e telhas, mas histórias, risadas, jantares de domingo, o cheiro do café passado na hora, a sombra fresca de uma varanda que abrigava confidências e sonhos. Substituir memórias por estruturas modernas pode fazer a cidade crescer para fora, mas será que ela não está encolhendo por dentro?
Há quem veja nos olhos dos velhos um brilho triste, não porque desprezam o novo, mas porque sabem que nem tudo o que reluz é ouro. E talvez seja esse o maior dilema do tempo: ele avança sem perguntar se estamos prontos para deixar para trás aquilo que um dia amamos. O velho que fala de Gramado como se fosse uma joia perdida não quer negar o presente, apenas deseja que o passado tenha ao menos um canto onde possa repousar sem ser esquecido.
E há quem, ainda que em meio ao turbilhão do presente, pare um instante para ouvir. Ouvir as histórias de quem viu a cidade nascer, crescer, mudar. Ouvir o eco das vozes que já se foram, mas que ainda vivem na lembrança de quem não quer que Gramado se torne apenas um cartão-postal bonito, sem alma, sem raízes. Porque, no fim, a cidade só será verdadeiramente grande se souber carregar consigo o peso e a beleza do que já foi, sem esquecer aqueles que a tornaram possível.
Há quem se sinta acima da vida quando velhos ousam repetidamente falar do "seu tempo", como se o "tempo dos outros não tivesse nenhum valor, enquanto o que os velhos desejam apenas é acender a primeira chispa que incandesce a trêmula vela do convívio vernacular entre pares humanos, haja vista que quatro patas ocupem cada dia mais as calçadas, somando-se em seis, onde a mais valia de um animal de estimação seja capaz de ocupar o espaço de um idoso de estimação. Mas parece mesmo ser, uma vez que para o animal adestrado a ração e um passeio diário para as evacuações seja infinitamente mais simples e prazeroso do que suportar um velho ranzinza a queixar-se das dores contínuas, e que acreditam terem direito à voz e voto, nas discussões familiares, isto é, pelos grupos digitais das redes antissociais.
Gramado, a Gramado de minha infância e juventude, tinha o celestial dom das cores que voavam em forma de borboletas, durante o dia, e dos luminares piscantes dos pirilampos, ao anoitecer, embalados ao sons de grilos e batráqios, ou das pererecas choramingosas pelos banhados, durante os dias mais quentes do verão. A Gramado que espargia perfumes pelos caminhos ainda tem a mesma geografia, e até muito mais flores, cuja diferença gritante é que antes, as flores e as crianças, que eram chamadas pelos nomes próprios e familiares, eram tão mais proeminentes em relação à madeira das casas, calculadas e bem espaçadas, do que a ínfima presença de canteiros apertados adornando reservados minúsculos diante do concreto que acumula gentes, que abastecem a cidade de fundos, enquanto nos fundos apenas concreto complementa o resto de chão que sobrou no terreno, agora sem as couves, as alfaces, as cebolinhas.Publicidade
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