Imagem IA
Não é lorota não. Eu queria mesmo ter sido um sapateiro. Óbvio, que a primeira opção, astronauta, poderia ser um bico, um extra, mas sapateiro seria minha primeira opção profissional. Minha avó, Maria Elisa, tinha muita vontade que eu fosse lenheiro, desses que andavam num carrinho que era ao mesmo tempo uma serra circular grande, barulhentas, que os lenheiros usavam como veículo para levá-los (e também a serra) às casas, onde eram justados (ah, tá, quem me lê nem sempre vai saber que "justar" era o mesmo que "contratar") para cortarem as lenhas, que eram compradas em metro, cujas toras tinham um metro linear cada. Bem estes eram os lenheiros, que em seus pequenos galpões, tinham seus próprios estoques de lenha, e vendiam em "Talhas, isto é, em pequenas quantidades de oitenta unidades, já rachadas e prontas para uso. Ela dizia: "Tu precisa ter um raminho de negócio, e uma lenheira vale a pena. Eu te ajudo a adquirir a serra com carrinho, se tu quiser!" Eu nunca quis. Achava meio chulo aquilo. Eu pensava em estudar, me formar médico, e rachar lenha não combinava com medicina. Eu achava que aquilo nunca ia dar dinheiro. Eu achava. Já os lenheiros que conheci ao longo da vida (por exemplo, o cara da Kombi que levava meus filhos na escola, se tornou lenheiro, e a última notícia que tive dele, era dono de um hotel, um edifício, e sei lá o que mais...), se tornaram bem sucedidos economicamente. E eu? Não cursei medicina, como sonhava.Não virei astronauta. Não me tornei presidente dos Estados Unidos, nem nunca pude salvar o mundo com minha capa de herói feita de toalha de saco de açúcar. Apenas segui outros rumos. Muitos outros.
Mas contei essa embromação toda pra dizer que na verdade, eu queria mesmo era ter sido um sapateiro. Não um fabricante de caçados, por onde até passei uma temporada como gerente de vendas de uma indústria de calçados femininos de luxo, mas não. Meu sonho de consumo era ter sido sapateiro mesmo, daqueles que passam os dias sentadinho num banquinho, com um avental de couro surrado sujo de cola, ao lado de um velho cepo de madeira, batendo e costurando sola, e esticando gáspea para moldar na forma velhos sapatos rotos, cuja grande façanha era colocar meia sola e retocar as costuras e pintura, para que fosse usado outro tanto de tempo, até que nem mais meia sola desse conta do tempo que o fez ruir.
Meu sonho era trabalhar num cantinho semi-iluminado por uma lâmpada com aquela chave que vira e liga na própria lâmpada, pendurada bem próximo ao cepo, e ao lado, um velho fogãozinho de ferro onde crepitassem brasas para aquecer a cola, o bule de café coado, e as tardes chuvosas de onde cresci. Mais que isso, ao lado do fogãozinho, em uma caixinha de madeira forrada com trapos, dormisse um gato e um cusco viralatas, preguiçosos, que vez por outra levantavam para mordiscar uns petiscos, esfregarem-se nas pernas das pessoas, e voltarem a ressonar até dizerem chega.
Meu sonho era atender velhas senhoras e alquebrados anciãos, que ao chegarem ao balcão, comentassem sobre o chuvisqueiro atravessado, queixarem-se de dores nas "cadeiras", e trocarem receitas de chás para a tísica de crianças ranhentas por brincarem de pés descalços sem darem tratos à bola do vento frio que enregelava a alma, apenas pelo compromisso de viverem da vida todo o tempo que pudessem, porque tempo não volta atrás. E não volta mesmo.
Talvez meu sonho não fosse exatamente por causa do prazer do martelo espetando e retorcendo tachas nas solas duras, mas pela rotina de saber que dia após dia, em uma vila pobre, sempre haveria outros velhinhos e anciãs trazendo notícias da rua, e em algumas das vezes, um naco de bolo embrulhado em um paninho branco, para acompanhar o café que fumegava no bule da sapataria.
Talvez o meu sonho fosse apenas envelhecer e ter café no bule para acompanhar as lorotas e os causos antigos que tanto imaginava ouvir na velha sapataria das minhas lembranças imaginária.
Pacard
(O que nunca foi sapateiro, mas foi designer e escritor, o que dá quase na mesma, financeiramente)