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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Gauderino - Conto

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Gauderino assentava-se à soleira da porta do ranchinho, e ficava só bombeando o movimento dos transeuntes. Negaceava as nuvens e agourava o tempo. Levantava mecanicamente a chaleira preta para encher a cuia, e trocava de mão, "pous" era falta de respeito servir um mate pela mão canhota. Gauderino era pobre, mas guardador dos bons costumes, como devia de ser, sim senhor. Trocava de mão para servir a si mesmo, porque havia muito que não tinha mais ninguém para estender uma cuia.


Vivia só, ainda que cercado de vizinhos. O choupo em que vivia, há muito não estava mais perdido à léguas do povoado, porque o povoado havia buscado avizinhar-se com a maloca de Gauderino. Não mais acordava ao canto do galo, mas pelo alarido do povoedo que atirava pedras na cancela de telhas velhas de zinco, que separava seu ranchinho da ruela lamacenta e malcheirosa. Entre a cancela de zinco e o rancho, um carreirinho ladeado por brejo, e escondido entre as folhas do brejo, um e outro pé de couve, um chazinho pra gripe, e uma morangueira que se adonava do espaço, espargindo suas largas folhas agarradas às mangueiras de seu caule. Gauderino olhava para as mangueiras, tragava um gole, e viajava no lombo da saudade até a querência da infância, onde brincava com os canudinhos das morangueiras durante as chuvaradas de verão. Olhava os pés de couve espalhados, e tomava outros dois ou três goles.

Gauderino fora um habilidoso fazedor de coisas. Mexia com ferramentas, com madeiras, pregos enferrujados, e com graxa patente, aquela preta, que se passa em roda de carreta. Hoje, o velho já tem mãos trêmulas, que não firmam mais o martelo e o facão, para talhar um boizinho de figueira para os miúdos. Gauderino apenas caminha de um lado a outro, com a chaleira preta em uma mão, e a cuia com cor de cuia na outra, enchendo e tomando, enchendo e tomando, enchendo e suspirando. Gauderino dá a volta no rancho, e larga a chaleira num velho banco de pé em "V", para apanhar um graveto e espantar um guaipeca que cagava na moita de chá de Pariparóva.

-Te raspa daqui, cusco maleva! Eia-te que te capo e apincho os bago pros gato, animáli xujo!
O cusco esguia-se em curva, enfia o rabo no traseiro e sai ganindo umas palavras de desacato ao velho resinguento. Depois, tudo volta ao que era. A chaleira volta para a mão, e a cuia permanece na outra mão.

O galo canta cedo, mas nunca encontra Gauderino dormindo. Não senhor! Quem tem a solidão por parceira, não tem tempo nem vontade para dormir. Dormir é coisa de quem não vive de lembranças e precisa sonhar. Não senhor! Gauderino, assim como todos os solitários, não brincam com a insônia, pois é a única companheira de quem vive só. Ao menos, na noite escura, insônia e solidão se aparceiram, e abraçadas, esperam o alvorecer. O galo que cante quando quiser, mas galo tem mais o que fazer do que controlar a horas de dormir das pessoas. Gauderino pensa assim, sim senhor.

Gauderino tem um causo de vida, mas não gosta de comentar. Envolve apreço e bem querer, e isso é cousa pros mais moços. Um taura enrugado pela vida não tem tempo a perder com reminiscências de  feitos antigos que façam doer o coração. Não se mexe com os sentimentos da pessoa, e por isso preferia falar de feitos e peleias em guerras e revoluções de onde nunca chegou perto. E quem disse que é preciso terciar ferro numa justa para sentir o tinir do aço nas lembranças edificadas pela solidão? O fogo de chão e a trempe balançando a cambona do refestelo de logo mais são motivo suficiente para engendrar um causo, e do causo, razão para soltar uns gritos de entusiasmo ao falar de uma carreira em cancha reta, ou uma bebedeira e briga de faca num bolicho de lá adiante, por conta de umas percantas desbocadas. Assim, de causo em causo, de cuia em cuia, de olhar em olhar, de gritos de vizinhança, Gauderino devorteia o rancho á espera da morte, com quem pretende ainda tomar umas cuias, antes da derradeira mateada na querência do infinito.


Convites para mateadas, churrascadas, charlas e palestras, pelo zap: 48 999 61 1546. É só botar uns pilas na guaiaca que eu me bandeio pra prosa.


terça-feira, 22 de janeiro de 2019

O peregrino - Conto

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Ninguém sabia seu nome, nem de onde viera. Apenas o chamavam de "Peregrino", e para os mais incultos, era "Seu Pelegrino". Falava pouco, e olhava de lado, desconfiado, solene, exceto para as crianças, a quem não economizava sorriso, especialmente com o olhar.

Catava umas ervas por onde passava, e com elas chamava atenção sobre si, quando pediam algum conselho para dores do tipo que não aparece, nos aparelhos dos médicos, mas enchem hospitais de doenças, e algumas vezes até, de doentes. Com suas ervas e rezas, ele era capaz de fazer leitura de almas, estas, as mais doentes. Peregrino fazia ar de mistério, balançava uma caneca velha amassada e rodopiava gemendo umas mandingas em linguagem incompreensível, para que os chás pudessem fazer efeito naqueles que deles bebessem com fé. A fé é assim mesmo, incompreensível, e no dia em que somos capazes de compreendê-la, perde o efeito, pois a força está no mistério, assim como o chá, cuja força está em quem bebe e não em quem serve.

Em todas as cidades existem uns doidos. Uns mais, outros menos, mas é só ter um velório, que lá estão eles: os malucos e os bêbados, chorando mais que os enlutados. Bêbado e doido choram com sentimento verdadeiro, ainda que nem tenham conhecido o morto. Bêbado e doido são como mariposas, que não resistem a passarem uma noitada de farra à volta de um poste iluminado, assim também, maluco e borrachos, não se contém diante de qualquer aglomeração de pessoas, ainda que seja velório ou comícios políticos.

Mas também, em todas as cidades, de tempos em tempos, aparecem os peregrinos. São tipos sinistros, silenciosos, avessos à higiene pessoal e à socialização, que deslizam pelas rodovias, ora empurrando um carrinho de mão ou de supermercado, cheio de traquitanas, cuja utilidade seja digna de análise sociológica, haja vista que  dificilmente teriam eles, utilidade específica para o tambor de uma máquina de lavar enferrujado, ou cinco pares de sapatos desencontrados e de numeração inferior aos seus próprios pés, amarrados,uns aos outros e pendurados no cabo do carrinho. Ou a pilha de jornais velhos embolados em sacolas de mercadinho, amontoadas com trapos velhos e outras inutilidades simbólicas que chamam de suas. E tente oferecer comida, quando não estão com fome, apenas tente, e ver´a expressão "sheakesperiana" de desprezo e orgulho contrastando com a aparência desgrenhada e indiscutivelmente de uma nobreza às avessas, capaz de fazer calar a hipocrisia do gesto de quem quase força uma esmola para aplacar a consciência.

Peregrino, nosso convidado para este ensaio, fugia bastante deste arquétipo,pois era asseado, agradável, cortês, e acima de tudo, generoso. Abstêmio, estendia a mão espalmada ao rejeitar um gole de cachaça que lhe ofereciam, ao passar por um boteco, onde os bêbados sociais tentavam divertir-se às custas do forasteiro, mas não funcionava com este andarilho.Não senhor. Apenas pedia, delicadamente um copo de água, e quando a fome apertava, com singular educação, olhava em direção aos quitutes do balcão, e tecia bondosos elogios ao perfume que exalavam, e às propriedades nutritivas das especiarias utilizadas na composição dos sabores oferecidos. Funcionava quase sempre, e era convidado a assentar-se com os demais, que respeitosamente ouviam suas histórias e dissertações sobre temas de relevância espiritual ou cultural. Naquele dia, eram vendidos mais refrigerantes e quitutes, do que cervejas ou pinga.Mas até o bodegueiro, com um pano sujo ao ombro, recostava-se no lado externo do balcão para ouvir-lhe dissertar sobre Divina Proporção ou história das civilizações.

Todo andarilho tem uma historia triste, e nem todos querem contar sua história, porque é triste. Muitos caíram na estrada porque perderam alguém da família de forma dramática. Outros, porque caíram na bebida, nas drogas, e desmoronaram em suas carreiras e laços familiares.Cada história é única, mas alinha-se com as demais no resultado dos dramas: as ruas, a estrada, o mundo sem fronteiras a desbravar.

Peregrino não era um andarilho qualquer.Não falava asneiras, embora fosse divertido, bem humorado, contador de piadas, e menestrel. Cantava canções antigas e compunha versos de improviso para divertir a assistência. E como já mencionei, se houvessem crianças no ambiente, as canções eram direcionadas aos pequeninos. Peregrino era crianceiro, adorava os pequeninos, e era amado por eles também.  Não era apenas falante, mas sabia e gostava de ouvir também, e em dado momento, sua presença suscitava desabafos e choros, confissões, e pedidos e conselhos. E Peregrino, os dava, mas não ao modo tradicional de perguntas e respostas, mas suscitava os queixosos a formularem suas próprias perguntas, e refletirem sobre possíveis respostas, silenciosamente pensadas e pesadas como possibilidade de mudanças. Era assim que Peregrino deixava saudade por onde passava. Era assim que edificava relações em sua jornada. Jornada que teve um começo, mas não havia planos para o fim, pois acreditava que o mundo é redondo e há muitos lugares para caminhar, muitos ouvidos para levar esperança, muitos corações machucados para abrandar com seus chás, suas rezas, e sua prosa agradável.

Peregrino nunca se despedia. Odiava despedidas! Dormia à porta dos botecos por onde havia encontrados novas amizades na noite recente, e ainda noite, precedendo o alvorecer, com a mochila às costas, bebia uns goles de água, e seguia seu curso. Ninguém sabia de onde vinha, e tampouco havia condição de saber onde encontrá-lo novamente, mas aquele andarilho que chegava recusando bebida e saía ao amanhecer, deixava profundas lembranças em todos, ainda que com poucas horas de proximidade. O maior atributo de Peregrino era sua sabedoria quando se calava,e era o seu silêncio que intrigava e deixava saudade. Peregrino talvez fosse um anjo. É, talvez fosse sim. Isso eu não sei dizer, pois não tenho uma tabelinha que identifica anjos, exceto quando já se foram, sem deixarem pegadas. É! Peregrino caminhava com passos bastante leves, e nunca deixou pegadas. Só saudade.



Contatos para palestras: (48) 999 61 1546

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Das Dores e Fridulino - Fábula

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Das Dores, a quem as comadres abreviavam para "Dasdô", levantava com o pé esquerdo enfiado no urinol, e começava as tarefas do dia, chutando o pé do armário com o dedinho estropiado do pé direito. Toda vila tomava conhecimento de que ela acordara, nem tanto por isso, mas porque, ato contínuo, enfiava a cara na janela, esticava o pescoço, se retorcendo pra posicionar o berro em curva, descabelada, ainda sem a dentadura(que nesse tempo estava com três dentes em falta), vestindo o camisolão preto desbotado, e uma das tetas quase despencando pelo parapeito, e desatava a verborréia rumo ao marido (se é que aquilo podia ser chamado de marido):

- "Fridulino, desgraça! Eu não te mandei que levasse o penico pra lavar ainda treisontonte? Onde é que tu anda com essa cabeça de porongo, seu bosta imprestável?"


Fridulino apenas esticava o pescoço instintivamente, em direção aos berros, e serenamente retornava ao cócoras para terminar de obrar, enquanto pitava um toco de palheiro, resmungando qualquer blasfêmia que parecia demonstrar nenhuma importância aos berros da macróbia.

Dasdô corria, pulando em uma perna só, até a varanda, onde havia um velho tanque de tábuas também acinzentadas e cobertas de limo, que transbordava água da velha bica de mangueira preta, para lavar o pé enlameado de bosta e mijo. Enquanto lavava o pé, praguejava heresias e barbaridades, desconjurando o marido por todas as desgraças do mundo, desde que o mundo era mundo, pois afinal, era era culpado pela estrada barrenta, porque não atormentara o Prefeito,para que mandasse uma patrola para emparelhar a buraqueira. Era culpado, o Fridulino, na opinião dela, porque a vizinha comprara um vestido novo, e ele, nem para comprar-lhe um vestido novo, prestava. 

Com os pés lavado, caminha até a ponta da varanda e estica o pescoço, ainda vestindo o camisolão desbotado, que deixava uma teta de fora, e berra pelo marido, que apenas resmunga, acocorado, dando uma última pitada no palheiro babado, e depressa passa a mão em um sabugo de milho para limpar o traseiro, do jeito que der. Examina o sabugo, e o atira sobre a "obra" que fizera, erguendo as calças e ajeitando os suspensórios, para atender à patroa que à esta altura dos fatos, já engrossava a veia do pescoço, e desatava o cordel de ofensas ao atarantado sujeito.

- "Busque lenha e pique cavaco pra móde acender o fogo, seu imprestável!" - Berrava ela, ainda sem dentadura, e com a teta ainda de fora. E traga uns temperos da lavoura, se quiser comer alguma coisa (ele queria comer alguma coisa, mas era ele mesmo quem preparava seu pirão).

E assim, dia a pós dia, o azedume de um e outro era fermentado.Não trocavam sequer um "Bom dia!",porque se ele desse tal "Bom dia!",viria um saco de ofensas e desgraças de arrasto, e caso, por estes descuidos da vida, o cumprimento partisse dela, quem escarrava janela a fora, fingindo que tossia, para não ter que responder, era ele. Deste jeito, andavam, ela se arrastando com um trapo amarrado na perna besuntada por linimento e chás, e com a teta de fora, ou ele,se peidando pela casa, com a calça rasgada nas virilhas, e o saco espiando o mundo, como se tivesse vontade de fugir daquele ambiente infecto. Um e outro, com a bunda fedendo, ou a teta de fora, eram unidos pelo ódio que sentiam entre si, e pela vida, após longos anos de esquecimento da razão que os unira, um dia, ao som de melodias, ao perfume das flores da primavera, quando juraram amar-se até que a morte os separasse. O problema é que a morte se esquecera deles, e até é compreensível aceitar que nem mesmo a morte queira um de bunda fedendo e outra com a teta de fora. Seria muito zoada, debochada, pelos colegas, quando aparecesse no mundo das sombras e do silêncio, com aquela dupla de infelizes.Não, a morte não os queria daquele jeito, e precisava,imagine, a morte preocupada com seus clientes, dar um jeito para que se tornassem mais apresentáveis, no dia solene da partida. Assim, a morte aliou-se à dor, ao sofrimento, à angústia,à maledicência, à todos os males do mundo, chamou a mentira, o ódio, as facilidades ao mal, e abriu a porteira para que saíssem à farra.

Assim, todos os males do mundo cercaram aquelas duas infelizes criaturas, e como milagres acontecem, um e outro estavam de costas entre si, para defenderem um ao outro, e defenderem aqueles a quem amavam,  para enfrentarem todas as dores do mundo, na ânsia de protegerem-se do mal que vinha de fora. Fridulino não via mais a teta de fora de Dasdô, e Dasdô não sentia mais o cheiro de bunda do companheiro, porque um e outro apenas se abraçavam em choro convulso e no desejo de confortarem-se entre si. E então, assim abraçados, um não via o outro, mas olhava distante no passado, vendo uma pessoa amada que caminhava em sua direção. Ela via um jovem elegante e valente, ousado, trabalhador, e ele via uma princesa perfumada e com um sorriso que iluminava a escuridão da vida. Um e outro sentiam apenas o perfume da historia que deixaram apagar-se m seu caminho, e outro, abraçando o "um", falava apenas pelo bater do coração. Um e outro corações se encontraram, e finalmente a morte poderia trancafiar seus assistentes desvairados,  pois já restaurara duas vidas de seu itinerário. No entanto, era tão sublime o quadro, que a senhora vestida de preto pensou que poderia voltar outro dia, pois os que lhe pertencem,não a desampararão de seus compromissos.

E o que aconteceu depois disso? Bem, Dasdô continuava com a teta de fora, e Fridulino ainda não limpava direito a bunda, então evitava assentar-se sobre os travesseiros, e Dasdô vestia uma roupinha mais adequada, ao menos quando recebia visitas na varanda, para falar mal de Fridulino, e darem gargalhadas dos causos contados. Fridulino, de seu cantinho debaixo da macieira, ajeitando seu palheirinho, silenciosamente também gargalhava, deixando à mostra os dentes tortos e amarelos, todos os três.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

O general durão e a editora de fundo de quintal

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Foto: internet

Tava aqui puxando o carretel das memórias, e localizei um rosto conhecido, o do General Carlos Alberto dos Santos Cruz, que toma posse hoje como Ministro do Presidente Bolsonaro, e encontrei a resposta em 1996, quando o então Presidente, Fernando Henrique Cardoso visitou Gramado. Bem, se não era ele, era alguém com o mesmo biotipo, mas tenho em conta ser bom fisionomista, e creio não estar assim, redondamente enganado. Creio que era ele sim.

Eu tinha uma humilde revista, chamada Hortênsias (nada a ver com uma que existe hoje, que foi plágio descarado), e recebi credenciamento para acompanhar a comitiva presidencial durante dois dias, o que fiz, em companhia de uma pequena multidão de jornalistas mais tarimbados na função. Eu era o bobo alegre que olhava pra um e outro e anotava tudo o que diziam, pois eles sabiam fazer melhores perguntas que eu.


Como eu morava próximo a uma casa de idosos, visitada pelo cortejo, cheguei antes, para conseguir um lugar mais privilegiado para as fotos. Lá já estava o aparato de segurança presidencial, comandado pelo então Tenente Coronel Carlos Alberto, extremamente simpático e atencioso, explicando-me como funcionava o esquema de segurança, etc e tal.
Falei a ele que eu fazia uma pequena revista de interesse local, ao que me respondeu que já conhecia a revista, e deu-me detalhes de minha editora com precisão matemática, e ainda pediu-me que enviasse a ele um exemplar,com a reportagem. Nunca enviei,pois esqueci de pedir o endereço. E nem era preciso. Com certeza ele recebeu minha revista já impressa, antes mesmo de mim.


*Coloquei uma foto dele em traje civil, porque foi assim que o conheci.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Lembranças de priscas eras de minha infância - "Véia Fróca"

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Foto ilustrativa colhida na internet e modificada artisticamente

Uma tragédia familiar levou-nos de volta à Gramado. Fomos morar em um pequenino ranchinho de tábuas sem pintura, no terreno emprestado dos primos Francisco e Cândida Corrêa, na localidade de Vila Moura,um cafundó (à época) do Município. Houve certa resistência de parte da família, em que minha avó instalasse ali sua provisória morada, atitude gerada  pelo preconceito da tragédia que abalara nossa casa. Coisas da Natureza humana: o medo, o preconceito, e uma pitada de egoísmo, que como todos os paradoxos da vida, faz brotar também a solidariedade e a compaixão. Toda tragédia tem estes dois lados.

Éramos cinco, no começo da nova caminhada: Maria Elisa, minha avó, a matriarca; Minha mãe Ester, menina, com  dezessete anos;Esaú, o menino rebelde da casa, com treze anos; Samuel Isaac, com cerca de sete anos de idade, e finalmente, o velho escriba que vos relata, com um glorioso e turbulento Um ano de existência e resistência, para dar fôlego à trupe daquele drama, semente de resiliência e muitas histórias para contar, mais à frente.

Minha avó, Maria Elisa, saiu em busca de subsistência, e começou a lavar pratos no restaurante do "Motel Balneário", à época ainda servindo de sede para o Gramado Tênis Clube, arrendado para o alfaiate Armando Rost e sua esposa, Lourdes. Lavava pratos, e coletava restos de comida, para abastecer o meu pratinho em casa.

Minha mãe, Ester, foi trabalhar como cuidadora dos filhos do querido e saudoso casal Marcílio (Tio Março), e Irani Cardoso,em cuja casa passei parte de minhas boas lembranças, recebido como filho e irmão dos queridos Manuel Inácio, Alexandre, e Caetano Cardoso, e não sei coordenar bem as datas, mas também (antes disso) dos filhos do saudoso Orlando Koetz e sua queridíssima esposa, Teresa, Flávio, Paulo, Fátima e Zenaide. Não por muito tempo, porque "Tio Março" leva Ester para uma visita ao então Prefeito, Arno Michaelsen, e a apresenta como "Filha do Assis", velho amigo dos dois, e diz que ela precisa de trabalho e estudo. Segundo relata ela própria, Arno diz assim: "Filha do Assis? Temos que prover uma colocação para ela imediatamente então!" E a nomeia como Professora na pequenina e distante escolinha da "Curva da Farinha", onde hoje está o Loteamento Casagrande.

Há uma história que precisa ser resgatada deste lugar, e o que aqui vou contar,não tem intenção de diminuir ou pisar na moral de ninguém,mas de resgatar as gratas lembranças de gente que representa o espírito generoso que edificou Gramado.

Morava pertinho da escolinha, na Curva da Farinha, uma senhorinha que não gozava de boa reputação, sendo motivo de piadas e rejeição pela dita "sociedade" gramadense na ocasião, e esta senhorinha era conhecida pela alcunha de "Véia Fróca".

A Curva da Farinha dista cerca de cinco quilômetros de onde morávamos,e era inverno. Todos sabem como são os invernos em Gramado: Rigorosos! Minha mãe não tinha um bom guarda-chuva, não tinha um bom calçado, não tinha roupas térmicas e impermeáveis, e deveria chegar às sete horas na escola. A chuva era inclemente. Congelava até a alma. E a jovem professorinha, com dezessete anos de idade, e um filho sem pai, deixado em casa, passara da cor pálida para roxa, queixo batendo, tremendo como vara verde ao vento, e assim entrou na escola, para dar aula. Poucos instantes depois, entra na salinha, para surpresa dos alunos, a "Véia Fróca". Diz carinhosamente e com firmeza às crianças, que continuem comportadas, pois ela precisava levar a professora à sua casa por alguns instantes. E fez!

Chegando à casa de "Véia Fróca",a professorinha tirou as roupas encharcadas e foi envolta em uma velha coberta de trapos, junto ao fogão à lenha, que crepitava aquecendo todo o ambiente, como uma ante-sala do Paraíso. Uma caneca de café bem quente, e uma batata doce assada, esperava à mesa para alimentá-la, enquanto se aquecia e recompunha as forças. E depois voltou para seus alunos, temperada pelo carinho de "Véia Fróca".

Mas pensam que termina aqui a história? Não termina não! Ester, a professorinha, foi chamada à Secretaria de Educação, e levou uma reprimenda do Secretário, por ter sido "vista frequentando a casa de uma mulher indecente e mal falada", que que esse tipo de atitude não era esperada por uma jovem professora, de boa família, e investida no cargo de educadora de crianças inocentes.

Felizmente, a professorinha era filha de Maria Elisa, e contou detalhadamente o que havia acontecido, e depois perguntou ao Secretário, onde é que estavam as "boas senhoras decentes e cristãs" que espiavam pela janela, rindo de sua situação, no instante em que a única pessoa que não tinha motivo algum para rir de outra pessoa, percebeu a necessidade da professorinha gelada e encharcada que cumpria suas obrigações na escola.

Eu até sei o nome do dito Secretário, que entendeu imediatamente que dera ouvidos à gente de má índole, e cumprimentou a professorinha pelo excelente trabalho que estava fazendo na escolinha da Curva da Farinha. 




terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Pai não é quem cria. Pai é quem educa e protege



"Pai é quem cria!" - Esta frase é repetida continuamente quando há uma referência a um relacionamento afetivo entre pais não biológicos e filhos adotivos ou enteados. O sentido da frase é nobre, mas passa longe da verdade, na etimologia da expressão e do verbo "criar". Sendo assim, paí não é quem cria, mas quem educa, quem encaminha para a vida, quem acolhe, quem protege, quem disciplina, e até mesmo quem maltrata. É um mau pai, mas ainda assim é pai. Mas não está criando ninguém e nada. Está apenas conduzindo pela vida e para a vida. Assim, portanto, pai é quem gera, e também quem adota. 

Criar não é tarefa de pai, mas de criador, ainda que tenhamos Um Criador A Quem chamamos por Pai, as  funções são distintas. Criar e conduzir. Criar, primeiro, e proporcionar condições para a manutenção da vida e da existência, o que vem depois. Nesse aspecto humano, pai não é aquele que cria, mas aquele que gera. gerar não é criar, mas reproduzir o que foi criado, estabelecendo pela genética e modelo de educação, o seu molde pessoal. Mas ainda assim não é criar. 

"Botar" filho no mundo não é criar, mas procriar. Multiplicar. Reproduzir o que foi criado. Assim, pai não é o que cria, mas o que proporciona dignidade de vida e procriação às gerações que brotarão de sua capacidade reprodutiva, e da civilização que poderá frutificar de sua capacidade educadora.

Assim, pai não é quem cria. Pai é quem ama e permite-se ser chamado por pai, porquanto reconhece no filho sua identidade transformada, aprimorada, renovada. Pai não é qualquer um. Qualquer um poder ser progenitor, mas para transformar este progenitor em pai, há que primeiro, aceitar que não é D-s, Perfeito e Justo, e por isso, Único. Então, pai é aquele intermediário entre o criador e a criaturinha que brotou da criatura. Aí, sim, pai não é quem cria, mas quem é pai.

Obesidade Espiritual



Obesidade Espiritual

Obesidade é uma palavra gorda e assusta. Quando dizem que você está "gordinho", isso soa com certo carinho, pois estão te chamando de gordo, mas seguram o freio das palavras para que a ofensa seja suave. Já se te chamam de gordo, é pra machucar mesmo, pois quem rotula a pessoa pela sua circunferência, atribui a isso uma carga pejorativa e associa seu peso e medidas ao seu caráter. Mas quando a palavra utilizada é "obeso", bem, aí de fato é hora de procurar um endocrinologista e submeter-se a um tratamento hormonal e dietético.
Mas não é sobre lipídios que eu quero falar. É sobre gordura espiritual, aquela que você adquire e não percebe, e se farta de comer ainda mais daquilo que deveria ser apenas nutritivo, mas exagera no tamanho do prato, e torna-se um "Obeso Espiritual". Eu explico:

Moro em uma cidade relativamente grande. Grande demais pra mim, até. E é comum encontrar, em parques públicos, plaquinhas que orientam as pessoas a não alimentarem os animais silvestres, a saber, macaquinhos, pombos, e outros que se proliferam pelas cidades, em busca de vida mansa, pois nas cidades são menores as probabilidades de se tornarem a refeição do carnívoro de plantão, e com exceções de alguns gatos mais ousados, o que é raro numa cidade, não há predadores naturais destes animaizinhos. Então, os animais, antes selvagens, que habitam as cidades, são gordinhos. Obesos até, porque a comida está à mão. O Ser Humano, solitário, passou a trocar gente por bicho. Passou a chamar bicho de "pet", de "filho", passou a designar-se "tutor", "papai", "mamãe", e até a denominar de "irmãozinho", o bebê humano que permitem ser lambido integralmente pelos "filhinhos" patudos. E obesos. E quando não são obesos, nestas condições, é porque recebem academias, fisioterapia, massagens, dietas especiais caríssimas, que substituíram a largo tempo as papas de restos de comida que recebiam como alimento, enquanto viviam no quintal, a guarnecer a casa. Mas nesta fase, já obesos.

O animal doméstico é obeso por natureza, pois sua função biológica não é mais perambular em busca de alimento, e permanecer por certo tempo em lugares onde o alimento seja mais farto por estação, mas depois disso, voltam ao nomadismo, o mesmo nomadismo humano de priscas eras, antes da agricultura, embora a atividade agrícola primitiva não dá oportunidade a ninguém tornar-se obeso. No máximo, gordinho, pançudinho, mas aí tem relação com a cerveja, que é assunto pra outro ensaio.

A obesidade animal é reflexo por consequência da obesidade humana. E a obesidade animal, assim como humana, são reflexo de outra obesidade ainda mais preocupante: a "Obesidade Espiritual"!

O obeso espiritual é aquele indivíduo que levanta com o nascer do sol, e dorme logo após o crepúsculo, faz as mesmas coisas, no tocante à religiosidade e seu relacionamento com o divino, e fica satisfeito com aquilo que entende por fé, com o mesmo prazer que um obeso devora duas bacias de sorvete, com a diferença, que o obeso físico, não se contenta com as duas bacias, enquanto o obeso espiritual tem preguiça existencial de buscar mais naquilo que lhe foi inculcado como doutrina de fé. Acomoda-se no que acha ser suficiente conhecimento, e delicia-se no sebo de seus livros sagrados, sem que saiba o cheiro de um livro novo, e nem a insônia por uma nova descoberta nas camadas da liturgia eclesiástica. Não permanece no debate saudável, e como desculpa para sua irritação ignorante, torna-se irritante em repetições de clichês obtusos, em lugar de caminhar pelas vias da retórica em busca de enriquecimento cultural e espiritual.

O obeso espiritual não cresce na fé, e portanto fica estagnado nas relações interpessoais, pois abdica de atributos como a ânsia pelo saber, e a possibilidade da quebra de paradigmas inócuos. O obeso espiritual é um parasita de sua própria ignomínia e um escravo de sua ignorância. Por isso, obeso, e por isso mórbido. O obeso espiritual é um parasita da insignificância que o impede de reagir, e buscar novas letras, novas versões, ainda que para compreender velhas verdades. 

O parasita espiritual não muda de religião, porque o banco de sua congregação já tem a marca de sua bunda e o acomoda com mais prazer. Os obesos espirituais somos todos nós, quando nos acomodamos às regras mal descritas, que nos obrigam a rezar do mesmo modo, a ouvir sermões com a mesma reverência, não à mensagem, mas ao orador, e que retiram de nós a vontade de olharmos para o espelho de nossa alma, pois espelhos não são verdades, mas podem nos dizer muito a respeito delas, contanto que não sejam eles próprios distorcidos, que nos desfiguram. Assim, a obesidade da alma pode nem ser verdadeira, porque podemos ver nossa espiritualidade por espelhos tortos que os outros nos mostram, para confundir-nos, e para que nos vejamos iguais a eles,os verdadeiros obesos espirituais. A obesidade espiritual não é causada por disfunção hormonal, nem por comida espiritual em excesso, mas pelo ostracismo, pela preguiça existencial da acomodação, da resignação, da falta de caminhar.

A palavra hebraica HALICHÁ, caminhada, que dá origem à palavra HALACHÁ, que é caminhar a caminhada, cumprir a jornada, é o antídoto para a obesidade espiritual. Fazer a caminhada, e para o destino certo, que é a Eternidade, o Olan Habá, o Mundo Vindouro. Só que antes de chegarmos ao Mundo Vindouro, nossas pés caminham sobre o mundo presente, e para irmos mais longe, quanto menos peso levarmos, menos árduo será o caminho. E o maior peso do obeso espiritual, é o próprio peso da indiferença.

Guerra por conquista do Aquífero Guarani e outros recursos hídricos potáveis - Quais as chances?

  A possibilidade de uma guerra pela conquista do Aquífero Guarani ou outras reservas de água potável na América do Sul é extremamente remot...