AD SENSE

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Turismo e Violência de Gotham - Em qual momento se deve frear o crescimento de uma cidade turística?


Imagem gerada por Inteligência Artificial Dall-e*

Ainda em sequência às reflexões sobre os efeitos do turismo sobre pequenas cidades, estas que não estão estruturadas sobre alicerces com raízes culturais, sejam gastronômicas, produtivas, ou de transformação e identidade, e de uma hora para outra (esta hora pode durar duas, três ou mais décadas), se encontram dominando o espetáculo e se tornam polos regionais, quero considerar não apenas os benefícios óbvios do crescimento econômico e social, mas também os aspectos da relação entre o indivíduo que delas fazem parte, e seu desenvolvimento humano, familiar, religioso, político, e social.

Parece complicado o assunto, como complicado também é acompanhar as transformações de uma sociedade durante o curso de uma vida, com relativa memória do  "antes" e "depois" destas transformações.

Tirando o saudosismo inerente à todo Ser Humano, aquele que transforma os tempos de antanho em paraíso, e os tempos atuais nos portais do inferno, nem tanto ao Céu, nem tanto à Terra, mas um passeio analítico pelos intrincados caminhos que transformam uma sociedade, inicialmente comunitária, em acirrada arena concorrente, ainda que tais disputas se deem de forma construtiva, isto é: "minha loja é mais linda que a sua; meus preços são melhores que dos preços do concorrente", mesmo sendo "o concorrente" o melhor amigo, parente, ou irmão, ainda assim, negócios são negócios e parente e amigo é pros dias de folga, e claro, em lugares turísticos, as folgas nunca acontecem como nos velhos tempos, sábados, domingos, e feriados, porque estes dias são os melhores momentos para faturamento, afinal, turistas não viajam durante os dias produtivos da semana, e produtivo para quem vive do turismo, são exatamente os dias, antes dedicados ao lazer, à família, aos amigos, e ao ócio prazeroso. 

O prazer agora é outro. É o tilintar do caixa (olha eu de novo aí com citações antigas), ou o cantarolar do envio de "PIX" pelo smartfone. Este sim, um prazer virtual que ocupa a virtualidade da vida, paripasso com as redes sociais, também já quase caindo em desuso, os filmes enviados por streamming, os quais servem de sonífero, junto com o Rivotril sublingual, ou na outra opção da taça de vinho, caipirinha, drink com petiscos, no happy hour, tipo onze da noite, hora em que se consegue um instante de sossego, e amortecido pelo cansaço, é acolhido pela cama corfortável que o sucesso econômico da loja e seu polpudo faturamento nos proporciona (esse "nos" é metáfora, viu).

Vamos ao lado Gotham da situação. Tirem as crianças da sala, porque preciso dizer certas coisas a partir daqui, por caridade. As consequências do turismo, não apenas pelo turismo em si, mas pela castração do lazer em dias determinados, e aqui não vou pender para a religião, e sim pela necessidade de um descanso semanal, de cunho biológico,e não apenas descanso no sentido de se jogar na cama, mas de conviver com amigos, familia, com o jardim, jogar conversa fora, contemplar a Natureza, rezar, amar, discutir, esquecer por certo número de horas, os compromissos com as contas, com os boletos, e com a necessidade de aumentar o faturamento. 

O lado Gothan, sombrio, obscuro disso é que quando você substitui o dia comum de repouso (Sábado pra mim, pros judeus e  adventistas,e outro tanto de crentes que também guardam este dia, Domingo para as demais denominações  cristãs, e nem vou acrescentar a Sexta Feira para os islâmicos, porque aqui onde moramos não é forte a presença árabe), então deixemos para outras estatísticas vindouras. Assim, quando trocamos o dia comum de lazer por outro qualquer, naturalmente este outro dia não irá concidir com o dia escolhido por meus contatos íntimos, e portanto, dificilmente as famílias e amigos irão reunir-se numa quinta-feira para um churrasquinho, ou na quarta feira para aquele futebol à tarde, etecetera e tal. 

Certo, chegamos até aqui e já encontramos um ponto conflitante entre a relação do sucesso comercial e crescimento humano e familiar. Porém, Gotham ainda não terminou. Tem mais. Preparem-se para o próximo parágrafo, quando trataremos das crianças.

As crianças

Conforme anunciado no parágrafo anterior, há crianças, que, ainda que já devidamente retiradas da sala, se tornam os maiores reféns dessa desmedida ânsia pelo sucesso: São elas que não correm mais atrás de borboletas (aquele bichinho que nos encanta com seu tatalar de coloridas asas em primaveris manhãs), atrás da bola, atrás umas das outras, não no parquinho murado das escolas, mas pelas ruas e praças, onde outrora brincavam à volta dos olhares atentos dos pais, ou nos dias dedicados às atividades religiosas, nos cultos, nas festas das igrejas, nas atividades sociais das congregações, nas gincanas das escolas e da comunidade, nas festas típicas e  quermesses, onde os churrascos sucediam os cultos e missas, e precediam os jogos e brincadeiras das tardes, os namoros, o olhar atento das mães obre os casais de jovens que sorrateiramente se refugiavam em cantinhos guardados para o amor e os beijinhos estalados, que só os jovens sabiam dar uns nos outros. Isso era o modo comum de uma comunidade tradicional. Assim é o modo de uma comunidade tradicional de uma cidade que não vive do turismo como fonte principal de sua ecnonomia. Falemos agora do que viemos para falar: das consequências (ou inconsequências) que essa ruptura no modo convencional de estrutura comportamental de uma sociedade sofre pela quebra de paradigmas da convivência humana.

Se de um lado, o dinheiro, que entra a mais no orçamento, ajuda a trocar a velha geladeira de 230 litros, amarelinha, por uma bela triplex de aço inox de 800 litros, e claro, a velha casa da cerquinha branca, agora necessita de uma mansão em seu lugar, pois os recursos assim o permitem, e é evidente que quem mora numa casa assim, precisa de um carro grande, luxuoso, que tenha maior potência, ainda que o trajeto entre a casa e a loja ainda seja o mesmo. É evidente que a escolinha pública com a professora que faz rifa para comprar lápis de cera, já não serve mais, e em lugar de contribuir para melhorar a escolinha, e adquirir lápis de cera para as aulas de artes da professorinha, é mais conveniente matricular as crianças naquela escola de classe social mais elevada, pois agora pertencemos à elite empresarial do município, e a escolinha pública envergonha ser mencionada nos encontros sociais refinados da nova roda de amigos que se alinhou às nossas aquisições, proporcionadas pelo sucesso da loja que vende muito mais, apesar dos fins de semana roubados de nossas vidas.

Porém, Gotham ainda não terminou. Sei que incomoda, mas eu preciso falar sobre o que acontece com as crianças, cujos pais não tem mais tempo para os encontros diários à mesa, e semanais na igreja, nas praças, nos parques, nas casas dos parentes, nas rodas de amigos... Sei que chateia ter que falar disso, mas as crianças agora tem seus equipamentos importados, sofisticados, seus games, sua tevê de cinquenta polegadas, chave na porta do quarto, e bem, se os pais e avós não tem mais tempo para eles, alguém terá. Talvez os amigos, ou os amigos dos amigos, ainda que sejam, digamos, traficantes, afinal, o que é uma cheiradinha, uma tragada, uma injetadinha, entre amigos, afinal, pois os pais nem perceberão mesmo a ausência à mesa, uma vez que eles próprios estejam ausentes? Quem perceberá as notas ruins na escola cara, se as mensalidades são pagas rigorosamente em dia, pelo débito automático? Quem irá perceber os olhos profundos atrás dos óculos importados que escondem a tristeza por detrás do acrílico prateado das lentes? Quem irá perceber o linguajar amorfo e vazio, pobre em vocabulário dos filhos, quando as palavras não fazem mais sentido para aqueles que tem outras ocupações sociais e empresariais, do que ficar ouvindo os "papos enfadonhos" de meninos e meninas que já falam em uma linguagem ininteligível, ou inteligente demais para os padrões desleixados do nosso linguajar convencional até os dias que antecederam nosso sucesso financeiro? Mas afinal, precisamos dos fins de semana e dos feriados prolongados para manter a folha de pagamento em dia.

No entanto, Gotham ainda tem mais bairros a mostrar, como por exemplo, as ruas, por onde outrora transitávamos com a pachorra de um entardecer e hoje tornou-se um shopping à céu aberto de prostituição? Por que dar importância se os crimes dos tempos de antanho eram furto de galinhas e uns tabefes de bêbados em botecos, e hoje fala-se em execuções por máfias à luz do dia em devedores de drogas, ou filhos, cujos pais complementam números nas prisões, porque o modo de vida suntuoso do vizinho os levou a desejarem também ostentar as mesmas marcas, e como dinheiro não cai do céu, mas pode ser conseguido de modo subjetivo, resulta em flagrantes e condenações, legando à condenação de filhos que, mesmo tendo a liberdade de irem e virem, não tem mais a dignidade de abraçá-los à noite, nos fins de semana, que foram trocados pelo sucesso, pelo crescimento competitivo, pela vida de ostentação?

Gotham nasce quando morrem os valores, os princípios, o apego à família, à fé, às tradições. Nasce Gotham quando o prédio que substitui a velha casa dá mais notoriedade à loja da frente do que o lar dos fundos. Gotham emerge das profundezas da desenfreada ambição de competir, em lugar de estender o caminhar para alcançar e reduzir o andar para ser alcançado. Gotham brota da troca dos dias de companhia dos amados, pelos dias avulsos de adoção pelos fornecedores. Brota da falta de equilíbrio entre a gestão econômica e a interação humana.

Seria irresponsabilidade minha denunciar as causas do nascimento de Gotham, sem oferecer alternativa para que outro cenário se desenhe, com equilibrio entre o progresso econômico e a responsabilidade humanitária, e este caminho passa pela Inteligência de Gestão (IG), que nesta leitura "góthica" vislumbra apenas o aspecto negativo do turismo, mas que exige um novo olhar, onde um ombudsman (aquela pessoa que olha o lado do cliente) seja ativado em cada projeto e que nenhum esforço seja poupado para que a gestão econômica esteja acima da gestão humana.

E claro, que eu nem mencionei outro aspecto do turismo sem raízes, aquele que mencionei no artigo anterior (leia aqui), onde se o turismo precisa oferecer solidez na fonte, um mote que promova interesse por visitar determinado lugar, também, e aqui olhando o aspecto humano e as consequências da falta de equilibrio entre a gestão financeira e social, e a humana e familar,  aqui quero fazer referência ao verdadeiro objeto do turismo, que o velho mundo já descobriu e toma conta disso, quando estabelece uma linha limítrofe entre sua vida particular e a invasão de privacidade comumente enfrentada pela falta de ética do turista de modo geral, que acredita ser o umbigo do mundo e que ele está ali para ser servido em todas as suas vontades, transformando aquele que o recebe em um "conciérge", um servo de suas vontades, ainda que tais vontades acabem por torná-lo escravo daquilo que oferece para conquistar o mimado visitante. É aqui o ponto que certamente será clipado e cobrado de mim algum dia, mas digo e repito: O turista é um mimadinho, que exige receber na casa dos outros aquilo que nem mesmo na sua casa pode ter. E eu tenho moral pra dizer isso, porque em todas as viagens que já fiz, em nenhuma delas me comportei como um idiota, como um mimado, como alguém com poder de tornar meu anfitrião um marionete de meus desejos, apenas porque eu estava pagando por alguns de seus serviços rotineiros. É como que tratar o gerção como um capacho, porque este está ali a serví-lo, mas não percebe que está sendo ridículo, e quem vai beber a bebida que levou uma cuspida é ele próprio, por ser idiota.

O turismo deve ser uma recíproca de interesses e prazeres. O visitante deve ser grato pela oportunidade de conhecer algo novo. O anfitrião, deve ser grato pela oportunidade de servir aquilo que tem de melhor e receber a justa paga por seus bons serviços. Mas este deve ser o limite. Nem o anfitrião deve (não deveria) assimilar os maus modos do visitante, nem este deveria imaginar que aquele que o serve ainda esteja nos tempos feudais, em que um estava no pedestal, e o outro seria o pedestal a sustentar suas esquisitices.

O turismo que souber traduzir às suas autoridades estes dois princípios poderá revolucionar o comportamento da sociedade que deveria proteger e promover, e a autoridade deste turismo que souber frear a ânsia por resultados eleitorais, será reconhecida pela história, ainda que do coração daqueles que souberem o valor dos dias passados juntos de quem nos irão amparar na velhice, em lugar de nos empilhar em asilos à espera de que Gotham desligue suas luzes sombrias.






Nenhum comentário:

O que faz a tua mão direita....

Evitem fazer alarde quando ajudarem alguém, não fiquem contando vantagem diante das pessoas, para  que sejam admirados e elogiados; aliás, s...