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terça-feira, 9 de março de 2021

Causos de Gramado de priscas eras - O muquifo do véio Marculino (Ficção)

 Marculino das Dores saía cedo de casa e ia ao velho galpãozinho minúsculo, situado lá no fundinho do terreno, a cerca de uns doze passos da casa. Era seu muquifo preferido, seu lugar de sossego e quietude, cortada apenas pelo som do velho rebolo de Pedra de Areia, onde amolava as facas tortas pelo uso, e a enxada com cabo lustroso de tanto uso, além de uma ponta ou outra de prego velho que encontrou por aí, nas andanças da rua.

Marculino era amancebado com Esmeralda, a filha mais nova do velho Custódio Ferreira, que fora moleiro, antes da grande cheia de quarenta e três, que foi bem maior que a de trinta e nove. Nunca se casaram, no papel, nem no religioso, porque Esmeralda não era mais moça donzela quando se casaram, e fora, por essa razão, enjeitada por dois pretendentes, antes de conhecer Marculino, o guarda-livros do armazém de secos e molhados da família Parreira.
Mas isso já é um outro causo. O que quero relatar nessas poucas e mal traçadas linhas, ao pegar a pena, é sobre o muquifo do véio Marculino.

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Marculino guardava molas velhas, fósforos utilizados apenas uma vez, a caixinha dos fósforos, principalmente, as latinhas de sardinha e de atum, e velhos cabos de martelo, enxada, e pratos com uma beirinha lascada, gaiolas de passarinhos, e até penicos, que ainda poderiam servir para alguma coisa. Plantar um chazinho neles, por exemplo, era uma opção.

Marculino ralhava com a piazada, se os visse entrando no muquifo. Ali era um lugar praticamente sacrossanto. Era ali que uma velha bomba de chimarrão, puída e esburacada, servia para um bocal de mangueira, na rega das couves, do lado de fora.

Imagem: internet modificada
Um velho cepo acinzentado de madeira, servia de bancada para apoiar um pedaço de mola de caminhão, que servia de bigorna, para bater a folha de uma lata de azeite desmontada, e esta folha poderia tranquilamente ser pregada na parede de fora do rancho, onde um antigo nó houvesse caído. Para essa finalidade serviam os pregos enferrujados, juntados pelo caminho, e endireitados na mola, a marteladas incertas, acertando umas, no prego, e outras nos dedos trêmulos, sob o olhar turvo atrás das lentes velhas e riscadas, que adornavam o sorriso franzido, de quem tomava martelada, mas fazia o que gostava.

O véio Marculino não era habilidoso nas artes da funilaria, nem da carpintaria, porque não fora este o seu ofício de trabalho, mas este era o seu prazeroso entardecer da vida. O cheiro de Naftalina, Creolina, e "Catinga de Mulata", eram a certeza de que aquele era um lugar de verdades científicas desconhecidas da própria ciência, pois o véio Marculino também gostava de brincar com fórmulas e linimentos, para "besuntar as cadeiras (lombar)", e curar fístulas e cobreiros. Quase sempre funcionavam. Quase sempre.

Sempre que guardo um parafuso, uma latinha, um paninho velho, ou os fósforos já usados, de volta na caixa, olho no espelho, para saber se meu nome não é Marculino. O espelho diz que sim, mas o documento amarelado da minha certidão, diz que não.


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