AD SENSE

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Ênio, Topo, e Eu





Ênio, Topo e eu.

Éramos três. Ênio, Topo e eu. Ênio era cerca de uns oito a dez anos mais velho que eu, que era uns dois ou três mais velho que Topo. Este apelido era a forma econômica de “Topo Gigio”, um personagem que era um ratinho muito esperto, criado por uma professora italiana, e que fazia muito sucesso com a criançada por suas maneiras dengosas de falar, além de ser muito engraçado também. Então, como meu amigo não era de muito elevada estatura, ou sei lá por que razão, deram-lhe, entre outros apelidos, o de “Topo”. Pegou.

Ênio, o mais velho, era um sujeito soturno, sinistro, misterioso, mas não era má pessoa. Ao contrário, tinha um coração generoso. Certa ocasião fomos caçar passarinhos (naquele tempo caçar passarinho era uma ocupação de afirmação de virilidade aos meninos, e também próprio da cultura italiana que colonizou a região. Então, sem nenhum constrangimento, caçávamos passarinhos. E sem nenhum constrangimento, eu tinha uma espingardinha de pressão, que atirava chumbinhos. Ênio foi comigo caçar os passarinhos. Teria caçados muitos passarinhos, se meu parceiro não tivesse sido justamente o Ênio. Ele prestava atenção em mim e via quando eu mirava num passarinho. Ele fazia o mesmo, mas atirava antes, e a uns dois metros do bichinho, espantando-o. Espantou todos, e voltamos pra casa “sapateiros”, expressão usada para definir alguém que não logrou resultado em alguma coisa, zerou. Assim era então Ênio.

O que tinha de exótico eram seus estudos. Mexia com assuntos que não permitia que perguntássemos nada. Coisa de guri bobo. Estudava assuntos esotéricos, deixava meio que transparecer que fazia isso, para garantir o respeito por si, mas não permitia que ninguém mais soubesse do que se tratava. Não era proselitista. Fora isso, Ênio era um “bon vivant”. Gostava duma cerveja, uísque e duma farra. Era parceiro em tudo. Menos em matar passarinho. Jogava futebol, era, parece, goleiro. Tocava guitarra (e como tocava mal), e bateria (um pouco menos pior). Fez parte de uma banda na cidade, que durou pouco.

Ênio era um notável desenhista projetista. Numa época em que não havia arquitetos na cidade, apenas engenheiros (e engenheiro treme ao ver um lápis, segundo os arquitetos, e estes, segundo definição dos engenheiros, é um sujeito que não foi bicha o suficiente para ser decorador, nem macho o bastante para se tornar engenheiro), Ênio, que não era bicha, engenheiro, arquiteto e nem decorador, tornou-se o melhor desenhista do gênero da cidade.

Tinha ainda uma virtude, que ninguém jamais decifrou o método: era capaz de entrar se pagar em qualquer lugar, principalmente bailes de interior, bailes da colônia. o homem era dotado de uma habilidade de convicção tão grande, que chegávamos ao baile, um grupinho, duros, só tínhamos uns trocadinhos para um refrigerante ou uma cerveja, mas se pagássemos o ingresso, passaríamos a noite à base de água da torneira do banheiro fedorento. De olho arregalado, em silêncio, 

Observávamos com atenção os movimentos dignos de um malandro junto aos porteiros. Ele gesticulava, ria, fazia movimentos, e logo já ganhava um cigarro de um, fogo de outro, dava umas três ou quatro tragadas, virava-se para onde estávamos e fazia um geste de chamamento com a mão. Íamos em fila, cabeça baixa e olho arregalado, reverente e respeitoso com os porteiros que nos apressavam para disfarçar a desobediência aos patrões da festa. Uma vez lá dentro, em pouco tempo, Ênio aparecia com cerveja e refrigerante para todos. Sem dinheiro.

Topo era o amigo sério do grupo. Moderado, ponderado e exageradamente honesto. Ético até o fígado e um pedaço da pleura. Não admitia um passo em falso de ninguém. A pobre alma vivia como coração na mão em nossa companhia, pois tudo o que não se pode encontrar num grupo de guris metendo os pés pelas mãos é ética. Honestidade até sim, mas ética, assim ética mesmo, deixava-se a desejar. Seria pior, se não fosse o “grilo falante” ao nosso lado. Ríamos muito. De tudo e também de nada. Ríamos de tão bobos que éramos. Aí quando não havia do que rir, ríamos disso. Só pra ter do que rir.

Topo trabalhava em um Banco. Era o queridinho dos colegas por esta seriedade. na idade, tinha lá os seus dezesseis anos. No juízo, uns cinquenta. Na sabedoria, oitenta e cinco ou oitenta e seis. Isso o tornava o chato do grupo. Adorável xarope. Mas era o nosso xarope. onde íamos, ia junto. Se fosse para subtrair frutas em algum quintal, ia junto, mas não sem antes nos prevenir de possíveis consequências, do pecado do roubo e especialmente do que fazer se fossemos mordidos pelos cachorros da casa. E depois o fruto da façanha era dividido igualmente, tudo com ética, sob a observação dele, que já era versado em contabilidade na época.

Um dia, Ênio tomou um tiro bem no meio da cara. Lógico que foi pra sacanear os amigos. Morreu poucas horas depois, por gozação. E a cena que lembro é de nós dois, Topo e eu, sentados num banco da praça, os dois, onde antes sentávamos três, olhando o vazio da noite, os carros que cruzavam indiferentes, e a noite que desfez o trio.

Memórias dos eventos de Gramado - I





Memórias dos eventos de Gramado - I

Festival de Cinema - Fearte - Festival de Teatro Estudantil - Grêmio Machado de Assis


Não tenho o menor interesse em me tornar historiador minucioso dos Festivais de Cinema de Gramado. Nem lembro com exatidão das datas que ocorreram alguns episódios, mas lembro dos episódios em si. Lembro também de outros eventos com os quais tive alguma relação, seja na condição de coordenador ou colaborador, ou como participante convidado ou pela porta de trás (penetra). São histórias pitorescas, que não tem nenhuma intenção de macular os personagens, antes um divertido compêndio de recordações de minha juventude em Gramado.

Os primeiros eventos de que lembro ocorreram nos verões perfumados de Gramado, onde passei a maior parte da vida. O principal era a Festa das Hortênsias, que ocorria creio que nos meses de Dezembro ou Janeiro, em datas alternadas. Não me saem da memória o perfume das hortênsias azuis que alcatifavam as colinas, as ruas, as frentes das casas em toda a cidade. Associo o clima temperado, as manhãs frescas e as tardes quentes ao gosto de melancia, cujo perfume quando cortada também era lembrado ao cortar a grama dos jardins.

Um dos espetáculos de que mais gostava era da Esquadrilha da Fumaça desenhando hortênsias no céu, enquanto misses desfilavam sobre carros alegóricos para delírio da multidão em torno da avenida principal. Penso que os anos eram por volta de 1967, 68. 

Outro evento pertencente à programação eram as corridas de carros antigos, as "baratas" ou "carreteras". Lembro de um nome de piloto famoso: Catarino Andreatta. Um "às", ídolo da mulherada e da rapaziada que sonhava pisar fundo numa "carretera", pois o máximo que conseguiam era acelerar as DKW's, os Simca Chambord, os Aero Willis, as Vemaguetes e claro, os "Fucas". Rural Willis era o carro de passeio das familias medianas e como eu gostava de andar nelas. Lembro do Marcilio Cardoso (Tio Março), pai do Alexandre, Caetano e Manoel Inácio, que enchia sua Rural com a garotada e saía a passear pela cidade. 

E as inesquecíveis provas hípicas na Carriére Municipal, eram belíssimas. O local era todo adornado com nilhares de hortensias que floresciam á volta do prado onde eram realizadas as provas, além dos ornamentos burlescos próprios do evento em si.

Era montado um pórtico à entrada da cidade, que recebia um séquito de cavaleiros, frenteados pelos Dragões da Guarda da Brigada Militar, seguido pelos cavaleiros dos CTG's.

Os sorvetes eram vendidos em dois lugares: Café Brasil e Café Cacique. À noite de um dos sábados, artistas famosos se apresentavam no Lago do Parque Hotel (Joaquina Rita Bier), junto com um balé da capital. Agnaldo Rayol é um de quem lembro bem. As mocinhas quase despedaçaram as roupas do pobre cantor.

Lá por 1969, começou o Festival de Cinema, como um evento complementar da Festa das Hortênsias. Primeiro foi uma mostras, mas quando se tornou oficial, passou a ser um centro de interesse cultural dos artistas e intelectuais brasileiros, por causa da Ditadura Militar. Nesse tempo, a Censura Federal era temida e odiada, pois eram grupos de civis e militares sem nenhuma formação cultural, que detinham o poder de permitir ou estraçalhar com as manifestações artisticas e culturais da sociedade. O Festival de Cinema era uma espécie de refúgio temporário, pois nesse evento, os filmes ainda não haviam sofrido cortes, e também os próprios artistas aproveitavam o encontro para manifestarem suas bizarrices, como desfilarem nus pelos corredores do hotel, pelas ruas, pelas piscinas da cidade. Ou ainda cometerem mais sandices, como a de um diretor gaúcho que foi apanhado urinando na lareira do Hotel Serra Azul (este mesmo diretor depois foi processado pelo poeta Mário Quintana por ter invadido sua privacidade, que o poeta declarava ser seu apartamento no Hotel Majestic, hoje Casa de Cultura Mário Quintana em Porto Alegre, o "Último refúgio de minha virgindade").

No mesmo período, começaram os coquetéis, desfiles e eventos paralelos, muito concorridos dos festivais (creio que até hoje o são. Não sei mais.  Estes eventos eram patrocinados por grandes empresas, que apresentavam desfiles belíssimos e mostravam suas coleções.

Num destes desfiles, acho que da antiga "Casa Masson", de porto alegre. Acho que isso foi já em 1977. Eu era "aspone" da Secretaria de Turismo, e nessa função tinha que trabalhar muito. Era o leva-e-traz oficial do evento e minha tarefa era resolver os incômodos e minuciosos pormenores técnicos do evento (leia-se: de tudo). Isso me dava certo prestígio também, e era respeitado pela equipe, pois mesmo bastante jovem, nunca me prevaleci da função para pisar em quem quer que fosse. Daí tinha certas regalias também. Pois voltando: nesse desfile, eu estava passando pela porta principal do Hotel e vi dois personagens de nariz colado no vidro da frente, mãos nas costas, olhando com curiosidade, a mesma de um menino pobre diante de uma confeitaria. Fui em direção a eles, saí la fora e perguntei por que não estavam lá dentro assistindo ao desfile. "Porque não fomos convidados", foi a resposta! Não tive a menor dúvida. Me investi de autoridade, fiz uma certa reverência e já abrindo uma porta, com voz e olhar firme para o porteiro respondi: "Pois agora são MEUS convidados!" E entraram sem cerimônia, assistindo á programação. Ninguém me chamou atenção por aquilo, embora tivesse circulado pelos bastidores a tal façanha. Quem eram eles? Horst Volk e Romeu Dutra. Criadores do Festival de Cinema e desafetos políticos dos meus chefes.





segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Maria Elisa - A velhinha hospitaleira






Nome: Maria Elisa Dias Cardoso
Data de Nascimento: 28 de Julho de 1911
Descanso: 18.01.2007

Local de Nascimento: Gramado,Rio Grande do Sul, Brasil
Última morada: Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil
Profissão: Agricultora
Religião: Adventista do Sétimo Dia
Ascendência familiar: Judia (B'Nei Anussim)
Passatempo: Ler a Bíblia; Especular a vida alheia
Virtude: Hospitalidade
Defeito : Especular a vida alheia
Humor: Bom, exceto quando sonhava com merda. Aí era o "tinhoso montado numa macaca com dor de dente".

Ela era conhecida por quase todos no seu perímetro e na rota de vai e vem pela cidade. Seu roteiro era quase único: de casa à igreja, ou de casa ao centro, passando pela loja do "Biriba", onde comprava um corte de tecido, ou então pagava as prestações das calças "Topeka", que comprava para presentar filho, neto ou algum sobrinho.

Ninguém pronunciava seu nome correto, "Maria Elisa". Era chamada pelo coloquial "Tia Ilizia". Vivia rodeada de pessoas. Pobres, na maioria, onde sentia-se mais à vontade. Se fossem muito pobres, então, "Tia Ilizia" estava feliz feito pinto na quirera.

Sua principal virtude e defeito eram o mesmo: adorava especular sobre a vida alheia. Fazia uma CPI quando conhecia alguém na rua, e sua lábia era suficiente para que, em poucos minutos a pessoa estivesse confortavelmente sentada à sua mesa, saboreando uma caneca de chá de mate e devorando uma pratada cheia de bolinhos fritos. Enquanto isso, imperceptivelmente, já havia contado à ela tudo o que era preciso para que Maria Elisa elaborasse sua própria versão dos fatos.

Preto, branco, rico, pobre, feio, bonito, quem quer que fosse, não tinha a menor possibilidade de escapar de sua rede de pescar pessoas. Todos que passassem perto de sua porta, eram obrigados a pegar o pedágio de entrar e contar sua história de família. Onde viviam, quanto ganhavam, do que viviam, enfim, ela conhecia todas as histórias de todas as pessoas, e o melhor de tudo: contava a mim estas histórias. Tornei-me então, uma espécie de "backup" vivo de suas memórias. Eram tantas e contadas tantas vezes, que passaram a ser as minhas próprias memórias. 

Por vezes quase me confundo com as minhas próprias lembranças, e as conto, ora falando dela, ora falando de mim. Tínhamos esta cumplicidade, ela e eu. Éramos confidentes, amigos, e ríamos muito. às vezes de alguém. Outras vezes, de alguma coisa, mas a grande parte do tempo, ríamos de nós mesmos. De nossas trapalhadas. às vezes, isso me irritava. Outras vezes, quem ficava irritada era ela. Mas tudo ficava esquecido no primeiro prato de bolinhos que ela fritava, acompanhados de uma caneca virtuosa de chá de mate com leite. Naquele tempo, eu achava que fosse apenas comida. Não era. Era uma poção misteriosa que ela preparava para enfeitiçar as pessoas e extrair-lhes as dores. Um linimento para as feridas da alma. Era assim que eu via aqueles bolinhos fritos, sem açúcar, que ela chamava de "bolinhos-chimarrão".

Nasceu numa casa sem pintura num povoadinho recém estabelecido, chamado de "Gramado do Mundo Novo", o Quinto Distrito, vulgarmente conhecido como "O Gramado". Aos oito meses de idade, acalentada ao colo de seu pai, é de súbito, jogada ao chão, onde sai engatinhando sobre uma poça de sangue do pai, que acabara de ser abatido por um tiro certeiro de pistola, no meio da cabeça, vindo de cima do telhado de tabuinhas do rancho de chão batido.

Seu pai fora morto por um cunhado, por conta do envolvimento deste com a esposa do sujeito, um tal de Zé Tristão. E assim, sendo a filha mais nova de um cortejo de mais cinco irmãs e um irmão, Maria Elisa teve que assumir a responsabilidade de cuidar da mãe viúva. E o fez, até o últimos dos dias da anciã, que foi sepultada ao lado da casa onde perdeu também o marido, lá nos cafundós do mundo. Ironia.

Na segunda tragédia de sua vida, perde o marido, que, em uma briga  com o genro, é ferido mortalmente, e a deixa agora, órfã de pai, mãe, e viúva.

Junta os trapos, os filhos, o neto de colo ainda, embarcam em uma carreta puxada por mulas, e seguem o caminho de volta à Gramado. Silenciosamente, ao coro do lamento das rodas da carroça, e como todos os vitoriosos que conheci, recomeça das cinzas a sua história de vida.

Lavava pratos em restaurante. Limpava casas. Colhia frutas no mato. Mas às sextas feiras, fazia-se milagre para perfumar o casebre onde foi morar, com cheiro de pães assados em forno à lenha. Acordava cantando hinos. Para cada humor, havia um hino. Um deles tinha uma letra que dizia assim:

Brilhando, brilhando
Quero brilhar como a luz
Brilhando, brilhando
Sempre brilhar por Jesus.


Sábado pela manhã, cheirando à sabonete, levava a família toda para a igreja. À tarde, visitava ou era visitada por algum parente. Bolinhos fritos, cuscuz com leite, chá de mate, conversa fiada, ou a CPI da vida alheia.

Dez anos se passaram. Já tinha uma nova casa. Modesta, mas melhor que a anterior. Os filhos estudavam. Menos o filho do meio. Este apenas trabalhava, arrumava umas brigas, coisa de rapaz. às vezes ia preso, mas ela sempre achava um modo de tirá-lo da prisão. E a vida corria bem. Até que uma nova tragédia a abraça. Cada tragédia vem mais e mais forte. Esta esgota suas forças. O filho do meio não será preso nunca mais. Caba de receber notícia de que morreu num acidente, trabalhando.  Maria Elisa não pôde sepultá-lo nem dizer-lhe adeus. Não pode desejar-lhe um sono em paz. Não foi permitido á ela abraçá-lo e chorar a sua dor. Ele morreu longe. Foi chorado por estranhos. Choro de estranhos não é doce como o choro da mãe.

Maria Elisa respirou fundo e avançou na dura tarefa de encaminhar dois filhos restantes à vida, com dignidade. Dois não. Éramos três. Minha mãe, meu tio, e eu, que preenchi seu tempo vago para que pudéssemos rir em lugar de chorar. Maria Elisa chorava rindo. Ria das bobices que eu fazia. Chorava às gargalhadas. Procurava em cada pessoa que fazia sentar-se à mesa uma resposta. Não vira seu filho ser enterrado, então talvez a história que ouvira ser contada talvez fosse apenas um trote das pessoas, da vida de Deus. Quem sabe uma destas pessoas não fosse um anjo que soubesse dar-lhe as respostas, ou quem sabe se não fosse uma delas mesma, o seu filho perdido, pregando uma peça.

Sou velho e já fui moço, mas jamais vi o justo a mendigar o pão. Maria Elisa, bem o sei, uma velha debochada e contadora de causos, "espiculenta" da vida alheia, viveu até os noventa e cinco anos, e descansou sorrindo, tomando pela mão seu filho mais novo, seu bebê, Samuel. Depois de ter lido mais de cem vezes as Escrituras sagradas, Maria Elisa adormeceu na certeza que abraçará muito em breve seu pai, mãe, esposo e filhos. Enquanto isso não acontece, ainda posso rir das lorotas que ela me contou, uma por uma, ao pé do velho fogão de lenha, nas frias noites de inverno, enquanto apenas nós dois comíamos bolinho frito e tomávamos chá de mate, e armazenando causos para contar aos meus netos, e talvez, à vocês, algum dia, quem sabe. Se houver uma boa fritada de bolinhos e uma grande caneca de chá de mate com leite quentinho, nas silentes noites das lembranças que guardei.






terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Coisas que nunca te contaram quando era criança



Gosto da verdade, sempre, doa a quem doer, e aqui quero fazer justiça à minha infância, cujas noites escuras eram povoadas de visões assustadoras. Não, não eram alucinações. Eram informações mal resolvidas, passadas pelos adultos, ou mesmo por outras crianças, que as ouviam de adultos, e graciosamente dividiam o conhecimento com outras crianças, fosse por sadismo, ou por companheirismo, só importa saber que pelo menos tínhamos conhecimento das coisas. Torto, mas era conhecimento, e isso nos bastava. Procurei reunir alguns destes conhecimentos aqui e desmistificá-los, para o bem das novas crianças, que, tenho que ser sincero, mas elas próprias contam coisas que ainda me metem medo.

Velho do Saco
Ah, este sim, era um verdadeiro motivo para chegarmos em casa antes que anoitecesse. O Velho do Saco era, segundo nossa imaginação, uma espécie de ogro, que vivia escondido atrás de coisas, andando encurvado, balançando um enorme saco às costas, e recolhendo gurizada arteira, para fazer, sabe-se lá o quê com elas. Há casos verídicos de guris malevas que foram levados e eram obrigados a descascar cebolas e comer sopa de jiló todos os dias, até que aprendessem a ter modos com os mais velhos. Metia medo de verdade.

Comer sementes de melancia
Exatamente o que você leu. Comer sementes de melancia, sim, faz nascer um pé de melancia na barriga. Numa aldeia mexicana, foi descoberta uma família que traficava melancias na barriga, comendo sementes e atravessando a fronteira com a Alemanha, e voltava para o México para abastecer-se a cada trinta dias. O excessivo número de carimbos no passaporte despertou a atenção das autoridades da imigração alemãs, que entraram no Google, e localizaram uma plantação de melancias escondida embaixo de uma plantação de maconha. Quando foram presos, revelaram o esquema, que consistia em declarar apenas a maconha ao governo, e esconder as melancias, que produziam sementes para contrabando. Então, quando você encontrar alguém muito pançudo, fique de olho aberto, porque pode ser um traficante de melancias.

Pé de couve no ouvido
Demerval era um sujeito bonachão, que levantava cedo e ia trabalhar todos os dias. Um dia, Demerval começou a perceber que as pessoas não diziam coisas compreensíveis, e começou a se preocupar, quando via todos falando baixinho e não conseguia entender o que diziam. Queixou-se então a um amigo, que o encaminhou a um especialista em tratamento de ouvidos, pois talvez o problema estivesse com ele e não com o modo de falar das pessoas. E era! Nos ouvidos de Demerval, britava um belíssimo canteiro de Couve-Mineira. Ele achou aquilo estranho, pois nunca plantara Couve-Mineira nos ouvidos! Como poderia estar acontecendo aquilo com Demerval?

Já no pronto-atendimento, Demerval ficou sabendo que aquela variedade de couve nasce espontaneamente em ouvidos mal lavados. É um fenômeno, que pode ser explicado pela ciência. Trata-se de uma espécie de bactéria, que está presente na cera dos ouvidos, e que se prolifera na ausência de água com sabão. E não são apenas couves que nascem ali, mas há também casos que relatam pés de jaca, abacateiro, goiabeiras, bananeiras e cebolinha. Esse tipo de profilaxia é mais frequente em pessoas que tem alergia à água com sabão, e a bactéria se prolifera, dando origem ao arvoredo.

Gravidez por selinho
Eu não acreditava que isso pudesse acontecer, até que vi uma vizinha aparecer barriguda, mas enorme mesmo a pança da pessoa,  após retornar das férias na praia, onde, segundo ela própria testemunha, ganhou um selinho de uns oito ou nove amigos, que saíam com ela pelos matos para colher frutinhas silvestres. Existe a suspeita que não tenha sido os selinhos, e sim alguma frutinha desconhecida que tivesse comido durante os passeios. Talvez Banana-da-terra, ou algo assim, sem ter bebido água em cima.

A "Chave"
Só de lembrar, começo a tremer, tamanho era o pavor da tal "chave". Os meninos eram prevenidos pelos mais velhos sobre os perigos de encontrar a "Dama da chave", geralmente uma mulher mais fortona, de coxas largas e fartas embalagens de aleitamento, que espreitava meninos impúberes e os atacava com a tal "Chave".  Certa ocasião, fomos apresentados a um homem todo retorcido, que jurava ter ficado assim depois de ganhar uma "Chave". Era uma cena horrível, dantesca, assombrosa. Depois disso, sempre procurei me relacionar com senhoritas do tipo "Minhon". Não que eu acreditasse naquelas bobagens que nos contavam, mas não custa prevenir-se para chegar à idade adulta com menores riscos colaterais.

Pegar pomba com sal no rabo
Este truque é perfeito. Nunca vi nada mais eficiente. Você pega um pombo e põe sal no rabo (dele). Ele fica inteiramente à sua mercê. Só não pode soltá-lo, senão ele escapa.

Manga com leite
Sempre arregacei as mangas antes de beber leite. Nunca entendi porque usar camisa ou casaco com manga comprida ou curta poderia trazer prejuízos à saúde. Só depois de adulto pude entender que manga não era nem uma parte da vestimenta, nem o afro goleiro do colorado, que jogava na minha época. De todo modo, só fui conhecer a fruta, manga, depois de adulto. E comi com leite. Funciona mesmo, pois eu morri na hora.

Palma da mão coçando é dinheiro na certa
Verdade! Um conhecido meu teve uma coceira enorme na mão, ocasionada por picada de muitas mutucas em simultâneo. O farmacêutico ganhou uma dinheirama vendendo antialérgicos ao moço.

Maus tratos a passarinhos causa crescimento de cabelos na palma da mão
Mentira! Mentira!

Orelha quente é presságio de fofocas
Sim! Definitivamente isso é verdade verdadeira mesmo. Quando era gurizote, fui escutar as gurias falando de mim, observando respeitosamente através de um pequeno furículo na parede do vestiário feminino da escola. Alguém viu isso e não foi compreensivo com minha curiosidade juvenil, e minha orelha parecia pegar fogo, alguns minutos depois. Acho que eu era uma espécie de profeta. Fiquei orgulhoso por este talento. Acho que é um "dom".

Bater três vezes na madeira da azar
É batata! Dá azar pra valer. Num galpão na casa de minha tia havia uma caixa de madeira, e de dentro dela se ouvia um zumbido estranho. Talvez fosse algum ser interplanetário, algo assim, tentando se conectar com o espaço sideral. Pegamos uns pedaços de pau e batemos com vontade na caixa. Ô falta de sorte a nossa. Não era ET, e sim marimbondos. Como deu azar. E doeu.

Bem, tem muitos outros mistérios de nossa infância, mas o texto está muito longo e tou com sono. (Aquela "chave" não me sai da cabeça).

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

O carrinho do supermercado e a ética de todos nós



Não é meu interesse comentar assuntos de relevância nacional ou global. Já tem gente demais fazendo isso. Mas também não posso me furtar de fazer uma reflexão, no momento em que estes fatos atingem a porta da minha casa. E também da sua.

Não vou falar deste ou daquele corrupto notório e notável, ou ainda dos que pela corrupção tornam-se notícias. Saem da obscuridade para a notoriedade pelas notas policiais que abarrotam nossas manhãs, azedando nosso desjejum e despejando vinagre no nosso cafezinho. Não precisamos julgá-los, porque já estão condenados. Até pode ser que muitos não cheguem a usar algemas, tornozeleiras, ou aquele uniforme verde, laranja ou seja de que cor a direção penitenciária determine. Estão condenados pela sociedade, pela historia, pelos tribunais dos botecos, e por você ou por mim. Somos suficientes juízes, promotores e carcereiros para encerrá-los definitivamente no livro dos culpados. Assunto encerrado!

Só que não. Tem mais culpados pela frente. Culpados pela ética, culpados pela má educação, que pela nova chamada cartilha do politicamente correto,   criou o politicamente injusto. Ainda estão no nosso caminho os culpados por cuspirem na calçada, por não devolverem o carrinho do supermercado ou da feira ao depósito de carrinhos, pois é mais cômodo deixá-lo na vaga livre ao nosso lado, afinal, não precisamos mais dele e o supermercado que se vire em mandar recolher. 

Tem mais culpados, quando a caneta que tomamos emprestada não foi devolvida, pois afinal é só uma canetinha barata. Ainda existem culpados quando encontramos um amigo desavisado, e também desavergonhado, que por estar em posição privilegiada na fila, aceita nosso calhamaço de contas para pagar em nosso lugar, passando a frente de outros que chegaram antes e tem mais paciência e educação do que nós.

Tem mais culpados, quando votamos nos candidatos a quem devemos favor, porque sabem eles que mais favor ainda podem cometer estando no poder. Tem mais culpados quando estamos no poder e valendo-nos da caneta julgadora, sentenciamos aqueles que opinaram diferentes de nós, e os defenestramos como mostra de nossa autoridade, como hálito de nosso poder.

Tem mais culpados quando colhemos as frutas da árvore do vizinho, porque estão ao alcance de nossa mão, mas também tem mais culpados quando passamos a tesoura na nossa árvore, para que o vizinho não possa comer as frutas que estiverem do seu lado do terreno.

Tem mais culpados quando não reduzimos a velocidade em dia de chuva, e encharcamos os pedestres. Tem mais culpados quando dominamos o controle remoto da tevê, impondo nosso gosto a quem tem menos voz na família. Somos culpados quando tratamos com aspereza o cidadão, estando em nós a possibilidade de sermos gentis, seja na coisa pública ou nas atividades privadas. Tem mais culpados quando bebemos água no bico da garrafa e a devolvemos à geladeira.

Tem mais culpados quando o telefone toca e mandamos dizer que não estamos.
Tem mais culpados quando deixam a palavra solta ao vendo, passível de interpretações, e depois diz: Nada devo, porque nada prometi.
Tem mais culpados quando alimentam esperanças que não tem intenção de cumprir. E depois cobram dos eleitos que cumpram aquilo que deixaram de prometer.

Tem mais culpados quando descobrimos a senha do wifi do vizinho e economizamos nosso pacote de dados, gastando o dele. Tem mais culpados quando temos contas a pagar, e damos chá de banco em que tem que receber. Tem mais culpados quando copiamos modelos de coisas e as produzimos, sem ressarcir os direitos autorais de quem os criou. Tem mais culpados quando baixamos programas piratas, em lugar de buscar software livre, se for caso de não pagar pelos originais. Tem mais culpados quando rimos pelas costas dos defeitos alheios, mas passamos de cara virada diante do espelho para não vermos a nós mesmos.

Há muito mais culpados do que inocentes. Mesmo assim, continuamos a eleger a quem podemos culpar, porque sabemos que são caras de pau mesmo. Há muito mais culpados do que possa imaginar nossa vã consciência.

Ou não?




sábado, 10 de dezembro de 2016

Doralice e Catarina - Cap X Batatinha






CAPÍTULO IX

Batatinha
Batatinha era aquele tipo de figura sinistra que faz seu périplo nas manhãs de domingo à porta da missa para granjear uns trocados. Puxa saco contumaz, não perde um único velório, postando-se feito um dois de paus na rabiola da corriola de politiqueiros que levam um canudinho no bolso em velórios de algum popular para chupar uns dedos de caldinho em benefício de sua imagem política.

Naquele dia, encontrou Abiel na barbearia e não se fez de rogado: fez-lhe os salamaleques corriqueiros, esticou lhe a mão na esperança de ganhar uns trocados. Abiel esticou o braço e apertou-lhe a mão, saudando-o:

- Meu cordial bom dia, caro amigo! Que bem vê-lo com saúde. Mesmo pensava em como encontraria alguém que pudesse me pagar um café a esta hora do dia. E olha quem eu encontro aqui, meu velho e bom amigo Demétrio!

- Não senhor, eu não me chamo Demétrio. Não senhor. Eu me chamo Sebastian, mas sou conhecido como “Batatinha”!

- Mas e não foi o que eu falei? Meu amigo Sebastian! Há quanto tempo, Sebastian. Ainda mexe com negócios de importação e exportação?

Batatinha ficou completamente confuso e desarticulado. As pessoas rias aos frouxos da perspicácia do forasteiro diante da investida do malandro. Deu de ombros e saiu porta afora rogando praga do forasteiro.

- O amigo é de fora, dá pra perceber, pois conhecemos todos daqui. Vem a passeio? – Perguntou o barbeiro, fazendo com que todos parassem as leituras de jornais e revistas velhas, para prestarem atenção à conversa.

- Venho de muitos lugares, amigo. Mas também venho daqui mesmo. Morei aqui na infância por algum tempo, com minha mãe, Professora Ariel Raposo...

- Você é o Abiel? – O barbeiro parou com o que fazia, deu um passo diante do freguês e olhou no rosto de Abiel, com admiração e surpresa.

- Sim, e você é o Matias? Matias Medeiros?
- Sou o Matias Lima, sim senhor! O Matias Medeiros era o filho do Prefeito. Foi-se embora também e seguiu carreira militar.
Você era bom na bolinha de gude, amigo! E na funda também. Não errava uma. Era uma lenda viva no meio da piazada!

Pois eu era mesmo! – Completou o barbeiro, inflando o peito.
- Não me escapava uma pomba. Mas me diga: está a passeio? Veio para ficar?

- Vim rever os amigos e matar saudades, meu amigo.
- Está hospedado na Pensão “Amanhecer”?
- Não, estou na casa de duas velhas amigas, as irmãs Alvarenga de Lacerda. Você as conhece.
- Ah, sim, grandes amigas
- As peidorreiras...

Uma explosão de gargalhadas eclodiu na barbearia.

- Desbocadas também...
- Vai ficar quanto tempo?
- O suficiente, amigo. Apare as costeletas pouco abaixo da orelha, Matias.

Abiel deixou a barbearia e saiu andando pela rua em direção à igreja, onde havia uma pracinha infantil e uma praça ajardinada, com árvores frondosas e canteiros de flores bem cuidados. Sentou-se à sombra de uma paineira coberta de flores e ficou observando as crianças que brincavam no parque.

Uma suave brisa de primavera soprava as folhas e espargia perfume pelo ar que se mesclava ao cheiro de lavanda da loção pós-barba que Matias besuntou sua face magra e bem barbeada. Um menino corre em sua direção e apanha a bola. Seguindo o menino, uma menina apanhava um pequeno galho de árvore e girava a varinha com gestos ritmados, fingindo ser uma fada com sua varinha do condão. Batia aqui e ali “transformando” pedrinhas em barras de ouro e em pérolas preciosas. Tocou com a vara no ombro do menino e o “transformou” em um príncipe.

- Você é o valente príncipe do reino do norte. Eu te nomeio “Cavaleiro da ordem dos cavaleiros valentes”, e sua missão é matar o dragão que mantém a princesa Lila prisioneira na torre do castelo (e aponta para a torre da igreja), onde vive o Duque dos Sete Dragões!”
O menino faz um gesto de genuflexão, baixando a cabeça e uma reverência com a mão:

- Ó minha fada poderosa. Eu vos prometo libertar a princesa e me casar com ela e nos tornaremos Rei e Rainha do reino encantado. Irei montado em meu cavalo branco com asas ligeiras e levarei minha espada invencível para destruir o dragão malvado!”

Abiel ria daquilo e lembrava que fazia o mesmo. A princesa era Doralice. Corriam de mãos dadas pela campina colhendo amoras e araçás e apanhando borboletas e gafanhotos. Doralice vez por outra beijava a bochecha de Abiel e disparava a correr. Logo que se refazia da surpresa, ele disparava atrás dela.
- Aí está o sumido! – Exclamou Catarina.

- Dodô e eu já estamos prontas e o procurávamos na barbearia. Vamos almoçar então. A Cantina serve um bife com batatas quase tão gostoso quanto o da Dodô. E uma sobremesa que é de lamber os beiços. Vou comer até o fió fazer bico.

- Ah, Catita. O convite é tentador, mas se não se importam, eu vou comer alguma coisa mais modesta. Estou um pouco desprevenido, sabe. Ainda não recebi a aposentadoria do mês...

- Que é isso, Abi! Somos amigos e você é nosso convidado. Não se faça de rogado, porque isso nos ofende!

- Com a condição que eu possa pagar a gentileza quando receber minha pensão do mês...

Catarina enfiou a mão na boca e ameaçou retirar a dentadura para lhe morder em alguma parte. Ele se esquivou e rindo, consentiu em receber a gentileza das amigas.

O almoço foi agradável. A sobremesa, o cafezinho, a companhia das amigas... A companhia de Dodô... Ele estava feliz. Elas também. Por que o tempo não estaciona na felicidade só de vez em quando?
Cachoeira, em certos dias, é um daqueles lugares onde desemboca o desânimo do mundo. Já em outros tempos, é o contrário disso: a alegria de todas as manhãs de primavera parece fazer morada nas varandas das casinhas brancas ao longo das ruas ajardinadas.

O passeio fez bem a Abiel. Ele estava frágil. Há dias em que gostaríamos de nos esconder em uma caverna e ali ficar até que o mundo passe. Nem sempre o mundo passa, mas também desanima e espera que nós mesmos passemos. Não passamos, nem mesmo mundo passa. O mundo não passa por nós. Abiel caminhava devagar e ensimesmado em sua escuridão.

Os pensamentos foram quebrados pelas irmãs Alvarenga de Lacerda. O convite ao almoço o atinge num momento em que também dinheiro é um dos seus pequenos problemas. Vem o golpe de misericórdia então: aceitar caridade. Caridade não declarada, mas escancarada. Ele fingia que estava quase bem. Elas fingiam que acreditavam. A atitude correta para sua dignidade seria que tivessem deixado para outra hora o tal café, porque uma coisa era receber a cortesia de estar hospedado na casa das irmãs. Outra coisa era já aceitar favores que envolvesse numerário. Era vergonhoso à ele isso. Mas quando há cumplicidade e amizade verdadeira, nem o tempo, nem a distância apaga as marcas do caráter que foram semeadas ao longo da convivência entre eles. Não apaga e não apagou, portanto. E foram-se ao café.

- Conte mais de vocês, reclamou Abiel. Só falei de mim desde que cheguei.

- É que sua vida deve ser mais interessante que a nossa! – Atalhou Catarina. Somos duas senhoras solteironas, que fazemos piada de tudo para nos defender das piadas que fazem contra nós, de nossa situação.

- Às vezes não sei se temos á nossa volta pessoas ou batráquios coaxantes sob forma bípede! – Consolou pensativo, Abiel.

- Pronto! Agora deu pra falar difícil. Foi pra nos puxar o saco? Cagou-se. Nem temos saco. Mas a gente corta o teu e colocamos uma alcinha pra virar bolsa de feira! – Emendou Catarina, já enfiando a mão na boca e puxando a dentadura para aterrorizar Abiel.
Abiel riu e freou a mão de Catarina.

- Guarde isso. Eu disse que estas pessoas maledicentes não passam de sapos de boca grande disfarçadas de pessoas.

As pessoas olhavam e riam junto. Doralice chegou bem perto duma velha que esticava o pescoço para ouvir a conversa, mostrou-lhe a língua e emitiu um sonoro trepidar de língua em direção à macróbia. Abiel passava mal de tanto rir.

- Venha sentar-se Catita. Desta forma vão pensar que sou doido também. Continue, Dodô!

- A Catarina teve um pretendente certa ocasião, mas não foi longe.
- E você, Dodô?
- Eu não tive tempo pra bobagens.
- Mentira! – Atalhou Catarina.
- Ela sempre foi apaixonada por...
Foi interrompida por um safanão na mão de Doralice.
-...por merda. Sempre gostei de merda! Nunca tive tempo nem cabeça pra pensar nessas bobagens.
- Não é bobagem, Dodô! – Interrompeu Abiel.
- Você sempre foi uma menina linda, delicada e espirituosa. Não venho nada anormal que alguém tenha tocado o seu coração e você tenha correspondido.
- E quem disse que não teve?
- Ora! Eu não disse? Me conte então.
- Conto sim – disse, enfiando a colherinha no açucareiro e colocando na taça de Abiel. Uma, duas, quantas são?
- Três, por favor.
- Vejo que o diabetes não te impressiona.
- Não, nem a insônia.
- Ela desconversa tudo. Vejo que deste mato não sai cachorro! – Disse, olhando para Catarina e rindo da situação.
- Mas sai burro! – Emenda a resposta, colocando as mãos atrás da cabeça dele imitando longas orelhas de burro.
- Beba seu café e largue mão destes sentimentalismos bobos.

- Manda quem pode, obedece quem tem juízo! – concluiu Abiel, rindo e se encolhendo para beber aos goles o café que ainda restava na xícara.

...........Continua

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Prosa de fila



Fila de banco. Daquelas enormes como em dia de pagamento dos aposentados. Calorão lá fora, então todos se apinham em serpentear zigue-zague para ocupar os espaços vazios da agência, sob as benesses do ar condicionado temperado de mofo. Não importa, pelo menos é geladinho.

Resolve o calor, mas não resolve o tédio. Apelamos para o celular. Está bem, com isso nos rendemos à geração zumbi. Felizmente nem todos sabem usar um celular, principalmente os da minha geração, que falam com o aparelho deitado em frente à boca, direcionado ao infinito, como uma antena, imaginando que seja um antigo walkie-talkie, e que ao fim da fala tenha que apertar um botãozinho e berrar: "Câmbio e desligo, copiou?". Esta mesma geração (a minha), tecla com o indicardor, um por um. Minuciosamente, delicadamente. Atormenta o interlocutor no cansaço da espera enquanto aqueles tres pontinhos amarram a atenção, porque leem que o macróbio ainda está "digitando uma mensagem".

Esta geração, a do indicador com calo, não consegue imaginar como é que a mocidade é capaz de digitar com os polegares mais velozmente do que eles datilografavam, no tempo da Olivetti Lexicon. Chegam até a ensaiar alguns créditos à teoria da tal "Geração índigo" defenestrada de Alfa Centauro. Ou então é "Côsa do demônho mesmo".

Então, alijados da destreza ao smartphone, só resta puxar um dedo de prosa com outro semelhante, geralmente na mesma fila preferencial. Mas falar do que, com um estranho? Política?} Não, nem pensar. Política, religião e futebol não se discute em fila de banco. Carestia então? É uma alternativa para puxar assunto. Mas olhando a cara das pessoas, nem precisa falar em carestia. Está estampado na cara. 

O tédio continua, e a fila não anda. Ouve-se o "plim-plon" da senha, e de modo mecânico, examinamos o bilhetinho amarelo. Faltam vinte para chegar a nossa vez. Urgente precisamos puxar assunto, porque vinte na frente são pelo menos quarenta minutos.

Contamos já todos os ladrilhos do piso. As janelas, examinamos todas as pessoas, imaginamos o que estariam pensando, já reconstruímos historias de cada um, sem uma única palavra. Mas o tédio continua. Até que milagrosamente somos acordados de nossos devaneios por alguém que está passando pela mesma situação, mas foi mais corajosa e menos tímida. Um vencedor. Ousado, intrépido. Tomou a decisão por nós, e a prosa desata!

- A gente aqui penando e os políticos lá fazendo as coisas que fazem contra o povo. Olha esse Renan, que praga ruim!
- Grunf...

- Minha filha tá tentando uma consulta no ginecologista há mais de seis meses e nada...dá raiva até!
- Coitada..
- Esses bandidão, viu o que estão fazendo? Matando por nada! Outro dia mesmo atropelaram outro bandido na frente do postinho da polícia, e sumiram... ninguém viu nada..o povo nunca vê nada..
- É tá feia a coisa. Em minha rua também não está fácil sair à noite..

Ah, pra quê você foi mexer no assunto! Ah pra quê? Deu corda e aparecem três para dar detalhes..

- Ó..esse negócio aí de "istrupo" em escola". Eu sou contra!
- Tinha que capá" Tinha que tacá fogo!
-Grunf...
Tinha que mandá os "istrupador" pra Sibéria.
- É! Eu também não gosto de argentino. O "Tramp" falou que eles são tudo "istrupador", e que vao mandar construir um muro no México pra prender os istrupador que entram escondidos, vindo da Sibéria.
- O "Tramp" é muido doido. Mas era bom um "Tramp" aqui pra prender o Renan.
- É tinha que capá!
- O preço da passagem tá cada dia mais alto..
- Tinha que prender os donos dos ônibus e mandar pro México, pro "Tramp" prender na Sibéria.
- É tinha que capá!
- Grunf..

O sinal chama a sua vez. Glória! Chegou a sua vez! Você corre com avidez para o caixa, libertador, paga suas contas, verifica o saldo, faz umas contas e corre pro Magazine Luiza. Vai financiar um smartphone de última geração, e contratar um guri pra te ensinar a dedilhar o mistério do aparelhinho.



quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Tenha netos, Joaquim...



Joaquim corre pela delirante vida que escorre,
enquanto lentamente morre
nas atrapalhadas vielas sujas esburacadas
que abraçam paços e tropeçam passos
em incerto caminhar
abraço, cansaço
no andejar manco de Joaquim.
O que fazer Joaquim, para aplanar as ruas
ou alcatifar
estradas nuas de sentimentos, pensamentos, momentos, tormentos,
sofrimentos espalhados ali e aqui
assim e assim,
fazer o que então?
Tenha netos, Joaquim!

Netos, Joaquim, digo por mim
são a juventude correndo
nossas palhaçadas gritando
nossas esperanças pulando
ali e aqui, assim e assim,
são alegria pra mim,
então eu digo,
enfim,
tenha netos, Joaquim. 

E quando, enfim, o fim chegar pra mim
direi que enfim
simplesmente fui assim:
amei, chorei, sorri também,
cheguei além
de onde pensava chegar,
ao lugar no tempo onde tempo não há
mas valeu por saber ao menos por mim,
alguém lembrará,
que tive netos, Joaquim!




Guerra por conquista do Aquífero Guarani e outros recursos hídricos potáveis - Quais as chances?

  A possibilidade de uma guerra pela conquista do Aquífero Guarani ou outras reservas de água potável na América do Sul é extremamente remot...