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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Maria Elisa - A velhinha hospitaleira






Nome: Maria Elisa Dias Cardoso
Data de Nascimento: 28 de Julho de 1911
Descanso: 18.01.2007

Local de Nascimento: Gramado,Rio Grande do Sul, Brasil
Última morada: Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil
Profissão: Agricultora
Religião: Adventista do Sétimo Dia
Ascendência familiar: Judia (B'Nei Anussim)
Passatempo: Ler a Bíblia; Especular a vida alheia
Virtude: Hospitalidade
Defeito : Especular a vida alheia
Humor: Bom, exceto quando sonhava com merda. Aí era o "tinhoso montado numa macaca com dor de dente".

Ela era conhecida por quase todos no seu perímetro e na rota de vai e vem pela cidade. Seu roteiro era quase único: de casa à igreja, ou de casa ao centro, passando pela loja do "Biriba", onde comprava um corte de tecido, ou então pagava as prestações das calças "Topeka", que comprava para presentar filho, neto ou algum sobrinho.

Ninguém pronunciava seu nome correto, "Maria Elisa". Era chamada pelo coloquial "Tia Ilizia". Vivia rodeada de pessoas. Pobres, na maioria, onde sentia-se mais à vontade. Se fossem muito pobres, então, "Tia Ilizia" estava feliz feito pinto na quirera.

Sua principal virtude e defeito eram o mesmo: adorava especular sobre a vida alheia. Fazia uma CPI quando conhecia alguém na rua, e sua lábia era suficiente para que, em poucos minutos a pessoa estivesse confortavelmente sentada à sua mesa, saboreando uma caneca de chá de mate e devorando uma pratada cheia de bolinhos fritos. Enquanto isso, imperceptivelmente, já havia contado à ela tudo o que era preciso para que Maria Elisa elaborasse sua própria versão dos fatos.

Preto, branco, rico, pobre, feio, bonito, quem quer que fosse, não tinha a menor possibilidade de escapar de sua rede de pescar pessoas. Todos que passassem perto de sua porta, eram obrigados a pegar o pedágio de entrar e contar sua história de família. Onde viviam, quanto ganhavam, do que viviam, enfim, ela conhecia todas as histórias de todas as pessoas, e o melhor de tudo: contava a mim estas histórias. Tornei-me então, uma espécie de "backup" vivo de suas memórias. Eram tantas e contadas tantas vezes, que passaram a ser as minhas próprias memórias. 

Por vezes quase me confundo com as minhas próprias lembranças, e as conto, ora falando dela, ora falando de mim. Tínhamos esta cumplicidade, ela e eu. Éramos confidentes, amigos, e ríamos muito. às vezes de alguém. Outras vezes, de alguma coisa, mas a grande parte do tempo, ríamos de nós mesmos. De nossas trapalhadas. às vezes, isso me irritava. Outras vezes, quem ficava irritada era ela. Mas tudo ficava esquecido no primeiro prato de bolinhos que ela fritava, acompanhados de uma caneca virtuosa de chá de mate com leite. Naquele tempo, eu achava que fosse apenas comida. Não era. Era uma poção misteriosa que ela preparava para enfeitiçar as pessoas e extrair-lhes as dores. Um linimento para as feridas da alma. Era assim que eu via aqueles bolinhos fritos, sem açúcar, que ela chamava de "bolinhos-chimarrão".

Nasceu numa casa sem pintura num povoadinho recém estabelecido, chamado de "Gramado do Mundo Novo", o Quinto Distrito, vulgarmente conhecido como "O Gramado". Aos oito meses de idade, acalentada ao colo de seu pai, é de súbito, jogada ao chão, onde sai engatinhando sobre uma poça de sangue do pai, que acabara de ser abatido por um tiro certeiro de pistola, no meio da cabeça, vindo de cima do telhado de tabuinhas do rancho de chão batido.

Seu pai fora morto por um cunhado, por conta do envolvimento deste com a esposa do sujeito, um tal de Zé Tristão. E assim, sendo a filha mais nova de um cortejo de mais cinco irmãs e um irmão, Maria Elisa teve que assumir a responsabilidade de cuidar da mãe viúva. E o fez, até o últimos dos dias da anciã, que foi sepultada ao lado da casa onde perdeu também o marido, lá nos cafundós do mundo. Ironia.

Na segunda tragédia de sua vida, perde o marido, que, em uma briga  com o genro, é ferido mortalmente, e a deixa agora, órfã de pai, mãe, e viúva.

Junta os trapos, os filhos, o neto de colo ainda, embarcam em uma carreta puxada por mulas, e seguem o caminho de volta à Gramado. Silenciosamente, ao coro do lamento das rodas da carroça, e como todos os vitoriosos que conheci, recomeça das cinzas a sua história de vida.

Lavava pratos em restaurante. Limpava casas. Colhia frutas no mato. Mas às sextas feiras, fazia-se milagre para perfumar o casebre onde foi morar, com cheiro de pães assados em forno à lenha. Acordava cantando hinos. Para cada humor, havia um hino. Um deles tinha uma letra que dizia assim:

Brilhando, brilhando
Quero brilhar como a luz
Brilhando, brilhando
Sempre brilhar por Jesus.


Sábado pela manhã, cheirando à sabonete, levava a família toda para a igreja. À tarde, visitava ou era visitada por algum parente. Bolinhos fritos, cuscuz com leite, chá de mate, conversa fiada, ou a CPI da vida alheia.

Dez anos se passaram. Já tinha uma nova casa. Modesta, mas melhor que a anterior. Os filhos estudavam. Menos o filho do meio. Este apenas trabalhava, arrumava umas brigas, coisa de rapaz. às vezes ia preso, mas ela sempre achava um modo de tirá-lo da prisão. E a vida corria bem. Até que uma nova tragédia a abraça. Cada tragédia vem mais e mais forte. Esta esgota suas forças. O filho do meio não será preso nunca mais. Caba de receber notícia de que morreu num acidente, trabalhando.  Maria Elisa não pôde sepultá-lo nem dizer-lhe adeus. Não pode desejar-lhe um sono em paz. Não foi permitido á ela abraçá-lo e chorar a sua dor. Ele morreu longe. Foi chorado por estranhos. Choro de estranhos não é doce como o choro da mãe.

Maria Elisa respirou fundo e avançou na dura tarefa de encaminhar dois filhos restantes à vida, com dignidade. Dois não. Éramos três. Minha mãe, meu tio, e eu, que preenchi seu tempo vago para que pudéssemos rir em lugar de chorar. Maria Elisa chorava rindo. Ria das bobices que eu fazia. Chorava às gargalhadas. Procurava em cada pessoa que fazia sentar-se à mesa uma resposta. Não vira seu filho ser enterrado, então talvez a história que ouvira ser contada talvez fosse apenas um trote das pessoas, da vida de Deus. Quem sabe uma destas pessoas não fosse um anjo que soubesse dar-lhe as respostas, ou quem sabe se não fosse uma delas mesma, o seu filho perdido, pregando uma peça.

Sou velho e já fui moço, mas jamais vi o justo a mendigar o pão. Maria Elisa, bem o sei, uma velha debochada e contadora de causos, "espiculenta" da vida alheia, viveu até os noventa e cinco anos, e descansou sorrindo, tomando pela mão seu filho mais novo, seu bebê, Samuel. Depois de ter lido mais de cem vezes as Escrituras sagradas, Maria Elisa adormeceu na certeza que abraçará muito em breve seu pai, mãe, esposo e filhos. Enquanto isso não acontece, ainda posso rir das lorotas que ela me contou, uma por uma, ao pé do velho fogão de lenha, nas frias noites de inverno, enquanto apenas nós dois comíamos bolinho frito e tomávamos chá de mate, e armazenando causos para contar aos meus netos, e talvez, à vocês, algum dia, quem sabe. Se houver uma boa fritada de bolinhos e uma grande caneca de chá de mate com leite quentinho, nas silentes noites das lembranças que guardei.






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