CAPÍTULO
IX
Batatinha
Batatinha
era aquele tipo de figura sinistra que faz seu périplo nas manhãs
de domingo à porta da missa para granjear uns trocados. Puxa saco
contumaz, não perde um único velório, postando-se feito um dois de
paus na rabiola da corriola de politiqueiros que levam um canudinho
no bolso em velórios de algum popular para chupar uns dedos de
caldinho em benefício de sua imagem política.
Naquele
dia, encontrou Abiel na barbearia e não se fez de rogado: fez-lhe os
salamaleques corriqueiros, esticou lhe a mão na esperança de ganhar
uns trocados. Abiel esticou o braço e apertou-lhe a mão,
saudando-o:
-
Meu cordial bom dia, caro amigo! Que bem vê-lo com saúde. Mesmo
pensava em como encontraria alguém que pudesse me pagar um café a
esta hora do dia. E olha quem eu encontro aqui, meu velho e bom amigo
Demétrio!
-
Não senhor, eu não me chamo Demétrio. Não senhor. Eu me chamo
Sebastian, mas sou conhecido como “Batatinha”!
-
Mas e não foi o que eu falei? Meu amigo Sebastian! Há quanto tempo,
Sebastian. Ainda mexe com negócios de importação e exportação?
Batatinha
ficou completamente confuso e desarticulado. As pessoas rias aos
frouxos da perspicácia do forasteiro diante da investida do
malandro. Deu de ombros e saiu porta afora rogando praga do
forasteiro.
-
O amigo é de fora, dá pra perceber, pois conhecemos todos daqui.
Vem a passeio? – Perguntou o barbeiro, fazendo com que todos
parassem as leituras de jornais e revistas velhas, para prestarem
atenção à conversa.
-
Venho de muitos lugares, amigo. Mas também venho daqui mesmo. Morei
aqui na infância por algum tempo, com minha mãe, Professora Ariel
Raposo...
-
Você é o Abiel? – O barbeiro parou com o que fazia, deu um passo
diante do freguês e olhou no rosto de Abiel, com admiração e
surpresa.
-
Sim, e você é o Matias? Matias Medeiros?
-
Sou o Matias Lima, sim senhor! O Matias Medeiros era o filho do
Prefeito. Foi-se embora também e seguiu carreira militar.
Você
era bom na bolinha de gude, amigo! E na funda também. Não errava
uma. Era uma lenda viva no meio da piazada!
Pois
eu era mesmo! – Completou o barbeiro, inflando o peito.
-
Não me escapava uma pomba. Mas me diga: está a passeio? Veio para
ficar?
-
Vim rever os amigos e matar saudades, meu amigo.
-
Está hospedado na Pensão “Amanhecer”?
-
Não, estou na casa de duas velhas amigas, as irmãs Alvarenga de
Lacerda. Você as conhece.
-
Ah, sim, grandes amigas
-
As peidorreiras...
Uma
explosão de gargalhadas eclodiu na barbearia.
-
Desbocadas também...
-
Vai ficar quanto tempo?
-
O suficiente, amigo. Apare as costeletas pouco abaixo da orelha,
Matias.
Abiel
deixou a barbearia e saiu andando pela rua em direção à igreja,
onde havia uma pracinha infantil e uma praça ajardinada, com árvores
frondosas e canteiros de flores bem cuidados. Sentou-se à sombra de
uma paineira coberta de flores e ficou observando as crianças que
brincavam no parque.
Uma
suave brisa de primavera soprava as folhas e espargia perfume pelo ar
que se mesclava ao cheiro de lavanda da loção pós-barba que Matias
besuntou sua face magra e bem barbeada. Um menino corre em sua
direção e apanha a bola. Seguindo o menino, uma menina apanhava um
pequeno galho de árvore e girava a varinha com gestos ritmados,
fingindo ser uma fada com sua varinha do condão. Batia aqui e ali
“transformando” pedrinhas em barras de ouro e em pérolas
preciosas. Tocou com a vara no ombro do menino e o “transformou”
em um príncipe.
-
Você é o valente príncipe do reino do norte. Eu te nomeio
“Cavaleiro da ordem dos cavaleiros valentes”, e sua missão é
matar o dragão que mantém a princesa Lila prisioneira na torre do
castelo (e aponta para a torre da igreja), onde vive o Duque dos Sete
Dragões!”
O
menino faz um gesto de genuflexão, baixando a cabeça e uma
reverência com a mão:
-
Ó minha fada poderosa. Eu vos prometo libertar a princesa e me casar
com ela e nos tornaremos Rei e Rainha do reino encantado. Irei
montado em meu cavalo branco com asas ligeiras e levarei minha espada
invencível para destruir o dragão malvado!”
Abiel
ria daquilo e lembrava que fazia o mesmo. A princesa era Doralice.
Corriam de mãos dadas pela campina colhendo amoras e araçás e
apanhando borboletas e gafanhotos. Doralice vez por outra beijava a
bochecha de Abiel e disparava a correr. Logo que se refazia da
surpresa, ele disparava atrás dela.
-
Aí está o sumido! – Exclamou Catarina.
-
Dodô e eu já estamos prontas e o procurávamos na barbearia. Vamos
almoçar então. A Cantina serve um bife com batatas quase tão
gostoso quanto o da Dodô. E uma sobremesa que é de lamber os
beiços. Vou comer até o fió fazer bico.
-
Ah, Catita. O convite é tentador, mas se não se importam, eu vou
comer alguma coisa mais modesta. Estou um pouco desprevenido, sabe.
Ainda não recebi a aposentadoria do mês...
-
Que é isso, Abi! Somos amigos e você é nosso convidado. Não se
faça de rogado, porque isso nos ofende!
-
Com a condição que eu possa pagar a gentileza quando receber minha
pensão do mês...
Catarina
enfiou a mão na boca e ameaçou retirar a dentadura para lhe morder
em alguma parte. Ele se esquivou e rindo, consentiu em receber a
gentileza das amigas.
O
almoço foi agradável. A sobremesa, o cafezinho, a companhia das
amigas... A companhia de Dodô... Ele estava feliz. Elas também. Por
que o tempo não estaciona na felicidade só de vez em quando?
Cachoeira,
em certos dias, é um daqueles lugares onde desemboca o desânimo do
mundo. Já em outros tempos, é o contrário disso: a alegria de
todas as manhãs de primavera parece fazer morada nas varandas das
casinhas brancas ao longo das ruas ajardinadas.
O
passeio fez bem a Abiel. Ele estava frágil. Há dias em que
gostaríamos de nos esconder em uma caverna e ali ficar até que o
mundo passe. Nem sempre o mundo passa, mas também desanima e espera
que nós mesmos passemos. Não passamos, nem mesmo mundo passa. O
mundo não passa por nós. Abiel caminhava devagar e ensimesmado em
sua escuridão.
Os
pensamentos foram quebrados pelas irmãs Alvarenga de Lacerda. O
convite ao almoço o atinge num momento em que também dinheiro é um
dos seus pequenos problemas. Vem o golpe de misericórdia então:
aceitar caridade. Caridade não declarada, mas escancarada. Ele
fingia que estava quase bem. Elas fingiam que acreditavam. A atitude
correta para sua dignidade seria que tivessem deixado para outra hora
o tal café, porque uma coisa era receber a cortesia de estar
hospedado na casa das irmãs. Outra coisa era já aceitar favores que
envolvesse numerário. Era vergonhoso à ele isso. Mas quando há
cumplicidade e amizade verdadeira, nem o tempo, nem a distância
apaga as marcas do caráter que foram semeadas ao longo da
convivência entre eles. Não apaga e não apagou, portanto. E
foram-se ao café.
-
Conte mais de vocês, reclamou Abiel. Só falei de mim desde que
cheguei.
-
É que sua vida deve ser mais interessante que a nossa! – Atalhou
Catarina. Somos duas senhoras solteironas, que fazemos piada de tudo
para nos defender das piadas que fazem contra nós, de nossa
situação.
-
Às vezes não sei se temos á nossa volta pessoas ou batráquios
coaxantes sob forma bípede! – Consolou pensativo, Abiel.
-
Pronto! Agora deu pra falar difícil. Foi pra nos puxar o saco?
Cagou-se. Nem temos saco. Mas a gente corta o teu e colocamos uma
alcinha pra virar bolsa de feira! – Emendou Catarina, já enfiando
a mão na boca e puxando a dentadura para aterrorizar Abiel.
Abiel
riu e freou a mão de Catarina.
-
Guarde isso. Eu disse que estas pessoas maledicentes não passam de
sapos de boca grande disfarçadas de pessoas.
As
pessoas olhavam e riam junto. Doralice chegou bem perto duma velha
que esticava o pescoço para ouvir a conversa, mostrou-lhe a língua
e emitiu um sonoro trepidar de língua em direção à macróbia.
Abiel passava mal de tanto rir.
-
Venha sentar-se Catita. Desta forma vão pensar que sou doido também.
Continue, Dodô!
-
A Catarina teve um pretendente certa ocasião, mas não foi longe.
-
E você, Dodô?
-
Eu não tive tempo pra bobagens.
-
Mentira! – Atalhou Catarina.
-
Ela sempre foi apaixonada por...
Foi
interrompida por um safanão na mão de Doralice.
-...por
merda. Sempre gostei de merda! Nunca tive tempo nem cabeça pra
pensar nessas bobagens.
-
Não é bobagem, Dodô! – Interrompeu Abiel.
-
Você sempre foi uma menina linda, delicada e espirituosa. Não
venho nada anormal que alguém tenha tocado o seu coração e você
tenha correspondido.
-
E quem disse que não teve?
-
Ora! Eu não disse? Me conte então.
-
Conto sim – disse, enfiando a colherinha no açucareiro e colocando
na taça de Abiel. Uma, duas, quantas são?
-
Três, por favor.
-
Vejo que o diabetes não te impressiona.
-
Não, nem a insônia.
-
Ela desconversa tudo. Vejo que deste mato não sai cachorro! –
Disse, olhando para Catarina e rindo da situação.
-
Mas sai burro! – Emenda a resposta, colocando as mãos atrás da
cabeça dele imitando longas orelhas de burro.
-
Beba seu café e largue mão destes sentimentalismos bobos.
-
Manda quem pode, obedece quem tem juízo! – concluiu Abiel, rindo e
se encolhendo para beber aos goles o café que ainda restava na
xícara.
...........Continua
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