O jantar de galinhas
Apolônio era conhecido por sua notória rapinagem. Sovina, pão duro, mão de vaca, rapace, seja o termo que for, o homem sofria muito para abrir a mão. Ou pior: não abria nunca a mão toda. Deixava uma fresta com o indicador aberto, o dedo médio querendo abrir, e o polegar regulando os demais. Tremia feito vara verde, ao ver uma moeda ou cédula saindo do seu bolso. Não era incomum ver-se uma lágrima vertendo nestas ocasiões.
Um dia, porém, num lampejo de generosidade exacerbada, Apolônio chega no rancho de Carsulina, e avisa:
- Amanhã, em meu estabelecimento, tereis um lauto banquete, senhôra! Teremos galinhas...
Nem pode terminar a frase e ganhou um abraço bem apertado da velhota, que gargalhava, batia com a palma da mão na mesa e repetia:
-Que almaaaa se salvaria, compadre? Que allmaaa (esticava a palavra “alma” com sonoridade e volteios) se salvaria? Tarei lá, compadre. Tarei lá.
- Dou-me por satisfeito, senhora! Também haverão mais comensais, seguro que haverão!
No dia seguinte, na hora combinada, a mesa estava servida com água, pão, e... bem. Havia água e pão. Apolônio então, quase sorridente e educado, faz um maneirismo e conduz os convidados à mesa.
Todos sentados, olhando para o pão velho, a água, olhavam-se entre si e olhavam para ele, com ar de interrogação. Nisso, entra o Birruga e pergunta:
- Já posso trazer as galinhas, tio Apolônio?
- Não, varão. As pessoas ainda nem começaram a comer.
Nem foi preciso esperar falar pela segunda vez, e estavam todos de boca cheia de pão e bebendo água para ajudar a descer. Meia dúzia de mastigadas e só estavam algumas migalhas à mesa.
Apolônio estica a cabeça e berra para o Birruga:
- Varão! Traga as galinhas!
Todos arregalam os olhos e sorriem, esperançosos. Mas não dura muito. Poucos instantes depois, entra Birruga, com duas galinhos debaixo de braço e as solta sobre a mesa para que comam as migalhas que sobraram do banquete....
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Certa manhã..
Olhando de longe, era bem possível ver-se o horizonte bipartido em camada de climas, como aqueles doces vendidos nos bolichos, feitos de gelatina açucarada, de um colorido barato cor laranja com vermelho, que parecia um arco íris, pra ser comido pela piazada.
Até certo ponto, a neblina esfumaçada pelas chaminés cuspidas pelas casinholas de madeira pálida esbarrava no gélido azul do primeiro céu, numa luta desigual por esvair-se na imensidão do alto.
Abaixo, lúgubres e tremulantes fogões cutucavam o aurorescer silente, encorajando os quero-queros a despertarem o resto da passarada, acoitando zorrilhos atrazadios já zonzos pela ofuscante raiada do amanhecer rumo às tocas quentinhas para o pernoite do dia. Uns, cheiravam aqui e ali, tentando recuperar a noite perdida sem caça, enquanto outros lambiam as fuças para aproveitar o ultimo gostinho da preá recém servida de desjejum. E assim amanhecia no Cerro do Bassorão. Naquele dia, foi assim que amanheceu.
Apolônio dedilhava as tetas de uma vaquinha espremendo o queijo do dia e a coalhada para o cuscuz, enquanto resmungava algo cantarolante cujo significado se perdia na retórica apolônica em dissonantes resmungos em compasso ritmado acompanhando a ordenha. E assim, neste despertar campeiro, Apolônio peidou.
(Imaginava o que? Em se tratando do Apolônio e da Carsulina juntos, espere qualquer coisa, menos qualquer coisa que faça sentido).
.....
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