Marcílio Andrade Cardoso, e Irani Casagrande Cardoso, chamados carinhosamente de “Tio Março, e Tiní”, eram pessoas ímpares.
Vou contar um pouco do que conheço de sua história, mas especialmente, da parte em que nos ligamos à essa narrativa. Marcílio era contado entre quatorze filhos de Manoel Ignácio Cardoso e Maria Emilia de Andrade. Trabalhava com madeiras, especialmente pinheiro Araucária. Junto com seus irmãos, Horácio, e Ademar, era comerciante. Sobre os demais irmãos, falarei em outra oportunidade. Agora quero discorrer sobre nossa história de família entrelaçada com Tio Março e Tiní. Falarei mais deles, do que da casa, pois a casa fala por si mesma. Um chalé de madeira, de tábuas horizontais, que acomodou muito da minha história pessoal. Esse tipo de chalé, já comentei em outras descrições, era bastante comum em Gramado, pela mão de obra e estilo dos carpinteiros, e pela disponibilidade dos materiais empregados, resumidos à telhas francesas, tijolos maciços, e madeira de pinheiro. Algumas eram caiadas, as mais humildes, com tábuas verticais, espaçadas, para dilatação, cujas frestas eram fechadas por tiras finas de madeira, denominadas de “Mata juntas”. Eram assim. Já as casas de famílias um pouco mais abastadas, eram de madeiras mais nobre, conhecida como de “Primeira, Segunda, Terceira”, isto é, classificação contada a partir da base da árvore, em direção aos galhos, e do cerne (miolo) em direção à casca (Alburno), mais clara, pois o cerne, avermelhado, era rico em resinas, e mais suscetível à rachaduras, apenar da durabilidade ser muito maior. Assim, mesclavam-se as funções das madeiras em uma casa, por exemplo, usando o cerne como parte estrutural (caibros, tirantes), e as paredes com material mais limpo, sem nós ou manchas vermelhas da resina.
Assim era então a casa dos Cardoso. Mas vamos à história das pessoas de dentro desta casa, em especial.
Acervo de famíliaA chegada à Gramado de minha família
Gramado, nos anos 40 do século XX, era uma pequenina aldeia, um distrito isolado, de uma cidade maior, que era Taquara. Não vou me estender nisso, porque já existem muita literatura a respeito do fato, mas vou relacioná-los à minha família próxima, com os Cardoso.
Marcílio (Tio Março), era um proeminente líder político de Gramado, que particularmente tinha um profundo carisma, tanto ele, quanto ela, sua esposa, Tiní. Eram ricos, para os padrões de riqueza que eu podia compreender (rico pra mim, era quem tivesse um carro, uma Rural Willys, por exemplo), mas não ostentavam o patrimônio que possuíam. Terras, florestas de pinheiros, serraria, madeireira, indústria de móveis, e muitos, muitos amigos. Tinham também inimigos, mas sua casa costumava ficar com a porta destrancada. Sei disso, porque eu chegava e entrava a qualquer hora que chegasse lá.
Já contei de uma tragédia que se abateu sobre minha família, no final dos anos 50, onde meu pai, Valdomiro Borges dos reis, meteu-se numa querela com seu sogro, meu avô Assis Brasil Cardoso, e num lufa-lufa que sucedeu-se, após os xingamentos de apresentação, Valdomiro teve razão, pois nesse tipo de embate, tinha razão quem permanecesse vivo. Foi isso. Assim, minha avó, Maria Elisa, juntou as matalotagens que tinha, bem poucas, vendeu as terras, cerca de 50 hectares, a um indivíduo, que pagou a primeira das seis parcelas pelo negócio, e até esqueceu de pagar as restantes (conta que irá saldar no Dia do juízo), e desta forma, minha avó, com três filhos, a tiracolo, e um penduricalho dentro duma sacolinha de farinha de trigo, que é o escriba que vos narra essa serie, aparentemente absurda, porém, verídica.
Pois, em chegando à Gramado (pensem, na confortável situação, de voltar com a cola entre as pernas, após uns 20 anos, para a aldeia de onde saiu. Pois foi), ajeitados os mijados e tendo onde recostar o lombo ao final do dia, todos foram à luta. Eu também, mas fui discriminado porque não havia completado ainda dois anos de idade. Tive que esperar até os nove anos para começar a trabalhar fora de casa. Só aí pude engraxar sapatos (em casa, pois minha mãe me proibia de vagabundear pelas ruas. Assim, eu ia nas casas e recolhia os sapatos, engraxava e os devolvia, mediante um pagamento de resgate pela devolução. Foram tempos de fartura. Tinham uma bela carteira de fregueses: Um! Erich Rosenfeld), e pelar moranguinhos para Dona Elisabeth Rosenfeld. A cada dez moranguinhos pelados, eu poderia comer um. O negócio não prosperou, por culpa da confusão matemática que fazia, pois pelava e devolvia um, e comia dez.
Minha mãe, senhora dona Ester, conhecida por "Prefessora Istéla", como diz o título, tornou-se professora. Com o quinto ano primário. É aqui que começa a narrativa ligada aos outros Cardoso, Tio Março e Tiní. Ainda tinha Esaú, meu amado tio, levado ao repouso tragicamente aos vinte e quatro anos, mas ao chegarmos à Gramado, ganhou emprego na serraria do Tio Março, onde aprendeu a dirigir caminhão e "puxar" toras dos matos para a serraria. Samuel, com cerca de sete ou oito anos nesse tempo, foi à luta, trabalhar no lugar onde todos os meninos dessa idade em diante iam trabalhar, para não vagabundear pelas ruas: Nas fábricas de vime ou de doces. Vimes Dinnebier, Accorsi e Masotti. Doces Masotti (primos dos vimeiros).
Vamos ao ponto. Ocorre que meu avô, Assis Brasil Cardoso, filho adotivo de Ermínio Gil, era muito bem relacionado no Quinto Distrito, e sua morte causou comoção nos seus amigos. E entre seus amigos, estavam Marcílio Andrade Cardoso, Orlando Koetz, e o então Prefeito, Arno Michaelsen. Foi quando o casal Cardoso, Tio março e Tiní, assumiram o suporte, e levaram a jovem Ester, com dezoito anos, primeiro, para sua casa, onde tornou-se cuidadora das crianças (Manuel Inácio, Alexandre, e Caetano Raphael). Não sei dizer qual foi primeiro, mas o certo é que ambos tiveram seus cuidados. Contou-me certa vez que todas as crianças eram muito bem educadinhas. Relata que os filhos de Orlando e Teresa Koetz, eram tão educados, que sabiam a hora de irem dormir, e eram corteses e gentis. Bem, eu os conheço todos, e acho que isso não mudou muito. É o que eu acho. Só não uso a expressão "educadinhos", porque não cairia bem à quem já é avô e avó. Fora isso, sim, fica bem o adjetivo "cortês".
Os planos dos Cardoso ricos para os Cardoso empobrecidos, ia além de trocar fraldas e limpar bundinhas sujas de pirralhos, e Marcilio levou Ester para uma visita ao Prefeito Michaelsen, e a apresentou desse modo:
- "Arno! essa menina é filha do Assis!"
- "Ah, é filha do Assis? Então temos que conseguir uma colocação para ela. Vai ser professora!"-respondeu Arno.
Assista aqui o causo da VÉIA FRÓCA
E foi assim que Ester foi lecionar na Escola Municipal da Curva da Farinha. (Leia dois relatos sobre o caso da "Véia Froca". Relato 1, Relato 2). Depois, por influência de Tio Março e Tiní, prestou concurso estadual, e foi aprovada, como Professora paga pelo Estado. Nesse tempo, o Governador era Leonel Brizola, e recém havia criado o projeto das suas famosas Brizoletas (Ainda falaremos a respeito disso, com imagens e tudo). Pouco tempo depois, Ester foi transferida para a Escola Getúlio Vargas no Bairro Piratini, nesse tempo, chamado popularmente de "baixada". E por fim, conseguiu uma vaga na escolinha em frente da casa onde morávamos, na Vila Moura (hoje centro).
A moçoila formou-se "Professora"E eu aproveitei a carona e fiz pose
Minha infância foi uma infância, dentro da leitura que eu fazia da vida, bastante feliz. mesmo. Eu não tinha noção da tragédia. Não tenho nenhuma lembrança de meu pai ou meu avô. Mas lembro com nitidez do jeito de andar do Tio Março e da Tiní. Lembro com nitidez da bondade dele, permitindo que eu passasse horas brincando na calculadora Facit, manual, do escritório da madeireira. Lembro do cheiro da madeira dos pinheiros Araucária sendo serrados, e da maciez da serragem onde pulávamos brincando e correndo. Lembro da voz grave e bondosa do Tio Março, e firme e doce da Tiní. Lembro dos passeios de Rural, e jamais poderia esquecer dos jogos da Copa de 1970,l que assisti na casa deles, e que fomos comemorar de Kombi, toda a piazada, gritando pela rua junto com outras dezenas de carros, com o mesmo propósito. Nós gritávamos, e Tio Março sorria, ria, sem parar. Do jeitão dele.
Pelo bem das boas lembranças, falarei sobre Osvaldina e Fúcio, um casal de pessoas gentis, que moravam em uma casinha, nos fundos de uma oficina que fabricava carrocerias de caminha, daquele tipo com laterais enfeitadas, que não se vê mais por aí.
Fúcio, cujo nome eu, e todas as pessoas a quem consultei, também não sabem como se chamava aquele italianão corpulento e generoso, de dócil trato, e simpático com as crianças. Fúcio era ferreiro, e trabalhava em sua ferraria, que ficava atrás da casa onde morava, com sua esposa Osvaldina. Também desconheço o sobrenome desta mulher que nos tratava com voz de “tia” e doçura de mãe. Osvaldina trabalhava nos cuidados da casa e da cozinha, em especial, dos Cardoso, e em suas horas vagas, era confeiteira, com fama de estar entre as melhores da época, em Gramado. Já comi algumas das tortas da Osvaldina, e bem, eu era criança, mas lembro bem de coisas que comi e não gostei, o que não foi o caso das guloseimas de Osvaldina.
Esta foi uma das casas onde coloquei o coração em cada traço, e com alegria, compartilho com todos neste espaço.
Um comentário:
Tio Março e Tini, meus pais!! Pessoas especiais, não só por serem.meus pais, mas pelo legado de
generosidade e simplicidade.
Saudade imensa com lindas lembranças!!
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