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Rádio Vintage muito semelhante ao rádio do Geremias.
Pois tomei por missão pessoal, por dar certo valor à minha afeição às letras e às palavras, isso tudo, associado à parte que ainda funciona da minha memória, em resgatar certo período de minha vida, e neste particular, da infância, não apenas minha, mas de todas as pessoas que foram contemporâneas dos meus primos, os Moura, e aqui nestas memórias, do "Tio Gêre", título nobiliárquico dado ao solteirão convicto, Geremias Elias de Moura, e sua importância na minha formação familiar. E antes que acham que errei, é Geremias mesmo, com "G". Problema do escrivão analfabeto. Eis o causo!
Após o retorno à Gramado, minha família foi morar num ranchinho de tábuas de cerne de araucária, que até o presente momento, ainda compõem a casa que pertenceu á minha avó, Maria Elisa, naturalmente ampliada, pintada, e posteriormente vendida. Mas está lá, firme e forte. As mesmas tábuas que testemunharam tantas coisas. Mas não é este o caso, e sim que tal ranchinho foi construído num pedaço de terra pertencente aos primos Francisco Vaz Corrêa Filho (In memorian), e sua esposa, Cândida, irmã de Geremias e dos demais Moura. Havia certo receio de acolher minha família e alguns parentes, aos quais não nominareis, exceto nas coisas boas que fizeram, que apresentaram forte oposição à que minha família fosse assentada próximo deles, ao que Cândida e Francisco fizeram impor sua autoridade sobre seu patrimônio, e disseram: "Não iremos deixar nossa tia, e nossos primos dormirem na rua. O terreno é nosso, e eles podem construir sua casa nele até que deem a volta e comprem seu próprio terreno. Atitude de coragem, e assim foi. O tancho foi construído pelos primos Ananísio Elias de Moura, chamado de "Ananias" (In Memorian), e Orlando Alves de Moraes, um primo de minha avó.
Minha avó foi trabalhar em um restaurante, no Motel Balneário (Motel, naquele tempo não tinha a mesma conotação de hoje. Era apenas um pequeno hotel ou pousada), como auxiliar de cozinha. lavar louças, panelas, toalhas, etc, do Restaurante, pertencente à Família Nelz, mas que era arrendado ao casal Rost, Armando e Lourdes. Minha mãe, voltou a estudar e recebeu emprego de Professora Primária. Meu tio Samuel, então com cerca de 8 ou 9 anos, já trabalhava descascando vime, ou limpando frutas nas fábricas locais. Esaú, (In Memorian), o irmão do meio, trabalhava em serrarias, ou empreiteiras, como ajudante, e mais tarde, motorista de caminhões. E eu, comia as quaresmas, e os restos de comida que minha avó trazia, deixando sempre a melhor parte pra mim, e comendo o resto do resto.
Pois foi nesse tempo que, já sem pai ou avô, figuras masculinas importantes na formação de uma criança, que meu saudoso primo "Gêre" (In memorian), adotou-me como seu fiel escudeiro. Foi com ele e Saulo, seu irmão especial (Downiano), que aprendi a tomar chimarrão, todos os dias, antes do almoço, enquanto Tia Zezé (Maria José de Moura)(In Memorian), concluía o preparo do almoço. Ah, que cehiro saía daquelas panelas. Feijão, arroz, batatas, couve, carne, moranga, e como sobremesa, que sempre variava, uma moranga caramelada, uma batata doce, acompanhados de leite gordo, de uma vaca que tinham.
Poucos anos depois, minha avó comprou um minúsculo terreno, mais acima, ao lado de onde hoje fica o mercado Rissul, e onde está um dos prédios em ruínas do extinto Artesanato Gramadense (ainda contarei muita coisa deste lugar e pessoas relacionadas, se D-s quiser), do primo Elias Francisco de Moura (In memorian), e ali assentou nossa casinha, já um pouco maior. e mais confortável. Nesse tempo, nos fins de semana, eu passava com Geremias, Tia Zezé, e Saulo, e no sábado, ia com ele para o lugar que chamava de "Chácara", uma pequenina lavoura e pomar, onde tenho as melhores lembranças da infãncia. Passávamos o sábado à tarde lá, e eu o ajudava na lavoura. No meio da tarde, Tia Zezé levava uma cesta repleta de guloseimas com café, e a chamava de "Fristique", do alemão Frühstück, e do yídish: פֿרישטיק (Lembra que já contei que descendemos de judeus? Pois é! Algumas palavras e costumes, permaneceram no inconsciente dos nossos antigos). Ao final do dia, ele me dava uns trocadinhos, com os quais, eu ia ao matineé, no domingo á tarde, com meus amigos.
Geremias não foi especial apenas pra mim, mas todos os sobrinhos e amigos, eram apaixonados por ele. Chegou a montar uma playground todo de madeira, com escorregador, balanços e gangorra, para a diversão da piazada da Vila Moura.
Divertido, brincalhão, e sempre sorridente, Geremias caminhava segurando a cuia, na mão, e a garrafa térmica debaixo do braço, servindo mate à todos. De sua chácara, lembro das frutas que gostava: Pêssego, maçã, tangerina, e principalmente uva, ao seu tempo cada uma. Havia porém uma frutinha não plantada, que produzia o ano todo: eram os "Moranguinhos de Sapo", um morango silvestre, com pouco açúcar, mas deliciosos quando preparados com açúcar e égua, comidos de colherinha.
Outras frutas que comíamos em sua propriedades, à vontade, sem restrição alguma, eram Guabiroba "Gavirova", Araçá, Pinhão, Goiaba serrana, e quaresma do mato. Uma vez por ano, Geremias e seus irmãos se reuniam num certo domingo, e à sombra de um colossal pinheiro Araucária, abriam uma vala, e ali faziam um churrasco para toda a família. Toda mesmo. Eram algumas dezenas de sobrinhos e agregados que compareciam. E eu era convidado especial. Estas coisas são difíceis de esquecer. E também nem quero.
Ao mio dia, ouvíamos as notícias, em seu rádio à pilha com capa de couro, enquanto mateávamos á espera do almoço que fumegava no fogão á lenha de Tia Zezé, fazendo bailar perfumes que iam do feijão, da couve, da carne de panela, da massa caseira refogada na cebola frita, e no café coado, para acompanhar as refeições.
Geremias tinha um fusca 1961 ou 1962, não tenho certeza. Verde. original. Com porta-luvas feito de bambu com telinhas de cordão como prateleira. Bem velhinho. Isso foi depois da velha bicicleta preta, que era estacionada em uma pequenina casinha que ficava na metade do morro da descida para sua casa. Mais ou menos a uns 200 metros da estrada principal, e outros 300 metros de sua casa, lá embaixo. A casinha era fechada com uma tramela, e só isso. Nunca foi roubada. Parece fantasia isso, não é verdade? Pois era assim mesmo. A casinha que servia para nosso esconderijo nas brincadeiras de "mocinho e bandido", com a "primaiada" toda. Mas, voltando ao tal fusquinha verde, velhinho, fedido, perguntei a ele a razão de não trocá-lo por um carro mais novo. Respondeu que dinheiro não lhe faltava para comprar outro carro melhor, mas a verdade era que com aquele carro ele levava os pobres, os bêbados, as moças de pouco prestígio, e não precisava se importar com cuidados de asseio no autinho velho, e que ele gostava de servir aos outros, gostava duma festinha com uma e outra daquelas moças, gostava de levar seus pobres de cá pra lá, e que em um carro novo, ele passaria a preocupar-se mais com o carro do que com o bem estar das pessoas.
Geremias não era um sujeito religioso, mas também não era nenhum desgarrado da fé. Tinha seu lugar em sua congregação Metodista, e eram frequentes as visitas de pastores e membros de sua comunidade repartindo um almoço ou um churrasco, ou tomando uma taça de bom vinho que fazia em companhia do amigo Giovani Pizetta. E por falar no Pizetta, vou encerrar este capítulos de meu saudoso primo com um episódio divertido que presenciei.
Uma vez ao ano, Pizetta ia à casa do Geremias, para auxiliá-lo no preparo do vinho, de suas parreiras. E certo sábado, após o almoço, chega á casa o Pizetta, muito educado, com forte sotaque italiano, mas de um bom português gramatical, e com a mesma educação pergunta ao meu querido primo Saulo, um menino especial, de quem já falei):
_ O Geremias está?
Saulo, mais que prontamente, em sua inocência hospitaleira, responde à queima-roupa:
- Celemia tá cagando!
Pizetta, em um sorriso, esperou Geremias chegar. E fomos preparar o vinho.
Mais tarde, lembrando e achando graça da situação, contei ao Geremias. Ele respondeu-me:
- O Saulo é um bobaião. Eu estava só escovando os dentes.
Geremias era uns trinta anos mais velho que eu, mas por essas coisas da vida, entramos no Ginásio juntos, em 1968. Na época era feito um exame de admissão, após o quinto ano primário. Eu não fiz o quinto ano. Apenas presteis os exames, e passei em todos, pois fiz exame de admissão com nove anos de idade, e passei. E neste ano, entraram comigo, além do Geremias, também outras pessoas de mais idade, como Dona Nadir Reis, Antoninho Moreira, Hortêncio Gil, e outros, que um dia vou lembrar quem eram.
Por hoje chega, mas tem muito mais. No ano seguinte, se não falha a memória, Geremias tornou-se Presidente do grêmio Estudantil, e fez uma revolução positiva em sua gestão. Organizou festas, rifas, livro ouro, e conseguiu recursos para construir uma quadra de esportes, e montou uma banda marcial com 96 componentes, com todos os instrumentos, uniformes, maestro, e tudo o que uma banda tinha direito. E lamento informar que na minha gestão, muitos anos depois, tive que extinguir a banda, porque quase todo o dinheiro arrecadado pelo Grêmio estudantil, ia para um saco sem fundo da banda, que já estava aos pedaços, e não havia mais como recuperá-la e ainda fazer uma gestão saudável para os estudantes. Mas isso é tema para outra prosa. Vale dizer que Geremias modernizou o atendimento da cantina da escola, e fez muitas outras coisas, que a memória gentil dos ingratos tratou de enterrar no vazio. Felizmente eu ainda lembro disso, e certamente seus contemporâneos também haverão de lembrar.
Geremias era apolítico, e estimado por todos, inclusive os políticos. Tive a infelicidade, mas também a honra de acompanhar seus últimos dias, em 1983, mesmo moribundo, ainda brincalhão e risonho, cercado de irmãos e amigos. Chorei o quanto foi preciso chorar a minha perda, mas guardei tanta e tão boas lembranças que o mínimo que devo à ele, pelo carinho que teve por mim, é contar sua história, como espero que um dia, talvez dentro de uns 40 anos após o meu descanso, alguém também conte a minha, que nem é tão interessante assim.