AD SENSE

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Crônicas de Gramado - O Legado e Crime do Zé Tristão - Parte II



Pois Zé Tristão, depois do crime, de assassinar o cunhado, com um tiro de pistola, cuja carga eram cabeças e fragmentos de pregos, foi condenado à prisão, e lá cumpriu alguns anos, na famosa cela 17, a tal que pingava água intermitentemente.

Cumprida a pena, Zé Tristão ensacou os mijados, e partiu rumo à São Joaquim, SC, onde engraçou-se por uma prenda, e ali estabeleceu-se, formando nova família com ela. Inteligente como de fato era, e no ofício de Agrimensor, Zé Tristão, logo arrumou-se nas finanças, e arrebanhou patrimônio, pois era uma prática bastante comum, que o Agrimensor fosse contratado para demarcar terras, cujo valor na escritura determinava tal e tal medida. Então, após dias, semanas abrindo picadas à facão, espiando pelo Teodolito, e anotando na sua cadernetinha quadriculada, as coordenadas que encontrava, ao cabo de dias, entregava sua carta geográfica repleta de cotas, curvas, convenções, e coordenadas, só compreendidas por outro Agrimensor, além de um Memorial Descritivo, que era "ipsis literis" copiada pelo Escrevente Juramentado do Registro de Imóveis, e dali, era lavrada a Escritura pública. É assim até hoje, com exceção da tecnologia empregada por recursos tão avançados, que à época teriam sido vistos como práticas ocultas, e seu autor, se não fosse enforcado, ao menos tomaria uma bela surra de vara. Bem! Voltemos aos fatos.
Continua após a Publicidade

Uma vez entregue a escritura, o profissional percebia que a lavra pública continha certo valor, de digamos cinquenta hectares, mas na prática, após confrontadas todas as vizinhanças, que também participavam, para validar o documento, também tinham cinquenta hectares cada um, por seu lado, davam-se por satisfeitos, e o assunto encerrava, pela parte deles. Só que não.

Ocorre que no somatório das terras constantes nos documentos, somaria cinquenta hectares, mas na prática, eram de sessenta ou mais (valores hipotéticos), de cada um. O que fazia então o Agrimensor? Como já havia sido pago para mapear, portanto estaria tudo na sua cadernetinha, ele fazia um mapa complementar, e dava entrada no Cartório, com pedido de Usucapião das terras devolutas (sem dono), e em cinco anos, tornava-se dono das terras. Isso se repetindo ano a ano, ao cabo de tempos, eram proprietários de dezenas de lotes esparsos, os quais eram mais tarde transformados em loteamentos. Enriqueciam com isso.

Não se pode dizer que seja desonesto, nem ilegal. Não é. E não vou gastar dos para debater ética aqui nesse causo, porque é sobre o Zé Tristão que falo e não sobre terras devolutas. Pois Zé Tristão ajeitou a vida deste modo. Mas, como existe o castigo dos Homens, a justiça divina, Zé Tristão, por seu mau gênio, acabou por indispor-se com a nova família, e tomou um pé nas ancas, e bandeou-se rumo ao torrão natal as terras  "do Gramado", já agora emancipada, e próspera em crescimento. Muitos anos haviam se passado, e com exceção da família, poucas pessoas sabiam da história, e menos ainda os que ligavam o fato á pessoa, que passou a perambular pelas ruas com barbicha longa, arcado, com um cajado e um saco nas costas. Era Zé Tristão quem batia na porta da irmã, maria Vergínia (Tia Virgina), e de algumas sobrinhas, filhas do homem a quem assassinara, com "sangue frio", e ódio fervente.

Algumas das sobrinhas, não o receberam, enquanto outras, por caridade, serviam-lhe um prato de comida do lado de fora da porta. Apenas uma sobrinha, Maria Elisa, justamente o bebê que estava no colo do pai, ao ser morto pela carga de pregos de Zé Tristão, foi a que lhe concedeu, não apenas abrigo, como alimento e atenção.  Zé tristão aparecia na casa dela de tempos em tempos, recebia hospedagem e alimento, mas sentia-se desconfortável em não pagar pela hospitalidade, então, dedicava-se à fazer pequenos reparos, construir coisas. Era exímio artífice em madeira, e certa ocasião construiu uma cerca de ripas (era comum usar ripas de pinheiro, de uma polegada, para construir cercas nas casas, e até mesmo os portões eram feitos com este material. No portão que fez, Zé Tristão utilizou um nó de pinho como base, cavou um buraco, e o eixo do portão corria dentro dele. Era assim que fazia as coisas, inventando.

Já velho, caduco, e surdo, Zé tritão despejava suas loucuras por onde passava. Gostava de contar causos, e adorava falar nas "mamica duma mulata", ou "mamica duma lamoa". Gostava da coisa, mas "a coisa" não queria mais saber dele. Falto de dentes, sua dicção não era das melhores, e então ele dizia ao meu tio, Samuel, que era piazote: "Vancê é um Arcaide!". Noutra ocasião, viu-me brincando com minha prima, que tinha o cabelo curtinho. Olhou pra ela e disse: "Vancê percisa ser um padre!" Ela respondia então: "Mas Tio José! Eu não sou menino. Sou uma menina!"
- "Isso mesmo, meu fiu! Vancê vai ser um padre!"
Eu, muito pequeno, olhava pra ele, que tinha os olhos pequeninos (Ô genética braba essa), e viviam arregalados para poder ver bem, e perguntava: "Pá quê tu tem teus jóio legaládo?" Ele não entendia, e pensava que eu falava do livro de Gàlatas, da Bíblia. Ele então perguntava: "Galáta? Galáta?" E seguia seu rumo.

Certa ocasião, minha mãe passou um trote no véio. Contou a ele que havia sonhado, que em tal lugar, onde hoje fica o Bairro Carniel, e era mato naquele tempo, ela havia visto uma árvore, e junto à raiz da árvore, estava um "Cabedal" (Tesouro enterrado pelos revolucionários). O Zé Tristão não esperou muito, e na madrugada do dia seguinte, juntou uns arames de cobre emaranhados, aos quais chamava de "aparêio de achar ouro", e uma picareta, e bateu "dereito" o mato, em busca da tal árvore. Quando apareceu de volta á casa, contando que cavara o dia todo e não encontrara, minha mãe revelou que "talvez fosse só um sonho e não houvesse nada naquele lugar", mas o macróbio não de seu por vencido e disse que achou a tal árvore, com a mesma descrição, e que deduziu que outro já haviam cavado e levado o ouro embora.

Zé Tristão odiava seu irmão, Manuel. Viviam às turras, e certa feita, escreveu um bilhete ao Forum local, enfiando-o debaixo da porta na madrugada, onde discorria um libelo difamatório do irmão, e encerra dizendo: Manuel bandido, manuel Ladrão! Ora, imediatamente foi descoberto o autos de tais epístolas, dado o fato que sua letra era belíssima, ornamentada, e miudinha. Não gerou consequências, senão umas boas risadas. Pode-se dizer que Zé Tristão iniciou as "fake news! em Gramado.

Voltando ao passado, na década de 1930, um relato contido em uma das edições do "Mensageiro Luhterano", cujo livro encadernado, contendo edições de 1938 a 1941, doei à saudosa historiadora Marília Daros Franzen. O livro contava as reminiscências do surgimento da "Egreja Lutherana" em Gramado e "Canella", cujo responsável por levar á Gramado tal congregação, não foi outro senão, o senhor José Francisco de Oliveira, o nosso Zé Tristão.

Quando retornou, Zé Tristão, já caduco e meio transtornado, entregou-se aos devaneios mentais e ocultistas, e andava com um livro de "São Cipriano", que ensinava feitiços e rezas obscuras. Conta-se que foi visto em noite de lua nova, completa escuridão, fervendo um gato até que sobrassem apenas os ossinhos, e depois experimentando cada um daqueles ossos, enfiando-os na boca, diante de um espelho. Quando encontrasse o osso certo, a pessoa ficava invisível. Não sei se funcionava. Nunca tive vontade de fazer isso. Eu sei lá. Dá medo mexer com certas coisas que saem de um livro de "São Cipriano", e testadas pelo Zé Tristão.

Zé Tristão morreu por volta de 1970. A carcaça carcomida pelo sofrimento e peripécias da vida, foi depositada no jazigo de seus pais, o primeiro, e mais antigo, do Cemitério São Lourenço, o Cemitério Católico de Gramado. Contando comigo, foram nove pessoas ao seu enterro. Com eles, Dez. Se tivesse mantido o judaísmo de seus avós, contar-se-ia uma "Miniam", um grupo de dez judeus necessários para rezar o Cadish, a reza dos enlutados. Nem isso teve pelo Zé Tristão. Triste na vida e triste no nome.























Nenhum comentário:

804 - O Número do Senhor X (Decifre isso)

  804 – Reflexões sobre um Plano Silencioso Introdução: Nem toda mudança começa com uma revolução. Às vezes, ela começa com um número. 80...