AD SENSE

terça-feira, 22 de outubro de 2019

AS SOMBRAS DA JANELA





Apenas pássaros. E pássaros que não podem voar,
não podem ser pássaros, pois voar é preciso
para que sejam cada vez mais.

Ouvia Debussy.
Em plena metade da manhã, ele ouvia Debussy.
As manhãs não foram feitas para Debussy. Talvez
Vivaldi. Debussy, não. Este tem seu lugar ao entardecer.
Chopin, vem logo mais adiante, no alto da escuridão. Mas
para as manhãs, Grieg poderia fazer companhia a Debussy.

No entanto ele ouvia Debussy enquanto a mão
trêmula desenhava algo no vidro suado da janela. Desenhava
ou escrevia. A água condensada pelo calor da mão escorria
fazendo borrar o que já havia desenhado. Pareciam círculos,
repetidos, mecânicos.

O seu olhar não mirava as mãos que pareciam
mecânicas, no gesto hipnótico de circular no vazio. Olhava
num ponto perdido entre o infinito de seus pensamentos e o
horizonte avermelhado.
Uma lágrima verteu enquanto premia os lábios
contendo o choro. Mas a alma já chorava havia muito tempo
antes.

Lá fora, o sol brincava de ir e vir entre nuvens
apressadas, e o riacho murmuravam quebrando o silêncio.
Um pássaro perdido buscava gravetos com pressa próprios
dos pássaros, compensando o inverno que avisava de sua
chegada. Com chuva. Fina e fria.
Fechava-se o céu. As cores mudaram e cada vez mais
embaçado o vidro ficava.

Debussy no velho toca-discos continuava a tocar
numa interminável homilia ao amor perdido. Numa elegia à
solidão.

Numa compensação pela dor, apenas se quebrava a
mágica combinação da música com a paisagem e o
pensamento, o ruído das falhas do disco de vinil antigo.

Ele havia sonhado voar alto, mas calculara errado o
alcance do voo. Suas asas, como as de Ícaro, se partiram,
escoaram no sol da realidade, e o levaram a estatelar-se no
chão. Restava agora o recomeçar. Sem as asas, que eram seus
sonhos. Com a dor da queda. Apenas ainda o olhar aguçado,
para que distante pudesse ver e sofrer pelo que havia
perdido.

Seus sonhos eram tantos. Uns tangíveis, outros eram
brumas.

Pequenos sonhos povoavam sua alma como uma
multidão de pequenos pássaros voejando em sua existência.
Eram pássaros pequenos e nada mais. Apenas pássaros. E
pássaros que não podem voar, não podem ser pássaros, pois
voar é preciso para que sejam cada vez mais pássaros. E livres
possam voar...

A música acabou, mas o disco continuou a girar. A
agulha travou e o último acorde se repetia
interminavelmente da vitrola...
Seus pensamentos se repetiam em pequenas partes.
Apenas as partes boas de serem lembradas.


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