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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

No dia em que eu quis ser comunista (Ficção*)


Nasci de olho arregalado, e a parteira, que também benzia, nas horas vagas, vaticinou à mamãe:
- É um ticudo, mas apesar disso, será um varão curioso!
Mamãe só ouviu a parte do "ticudo", e sorriu, aliviada, pois no lugar onde nasci, atribuia-se aos varões a sina de que se tornariam "foiceadores", e às donzelinhas, auspiciava-se que se tornassem "costureiras". Nobres ofícios, não hei de negar, porém mamãe era ambiciosa, e esperava mais do rebento, e o universo conspirou (essa foi pegajosa) e selou os lábios carnudos da parteira, que num tom engasgado, apenas foi capaz de pronuciar: "ticudo será, curioso se tornará!" (as pitonisas, nome antigo das benzedeiras, arriscavam uns versos e cavavam umas rimas para darem ar de mistério ao vaticínio) Certo foi que nasci curioso.

Minha curiosidade tinha certos limites, hei de afirmar, mas às vezes, eu adentrava em campo minado, só pra sentir a cósca das bombas. Um destes terrenos, era o idealismo marxista, a quem eu desejava ansiosamente sorver dos ensinos. Assim, resolvi tornar-me um comunista. Mas não era um comunistazinho mequetrefe qualquer, não senhor. Eu queria ser um comunista daqueles bem, daqueles encardidos, ranzinzas, estes eu queria ser, bem assim.

Decisão tomada, fui ler primeiramente o livro sagrado da foice e do martelo: O Capital! Mas aí foi que a máquina de pensar começou a emperrar, quando vi a foice e o martelo. Mas pra que foice e martelo, se os comunistas que eu conhecia estavam enfiados nos cantos sujos de casas velhas, feito ratos e baratas, planejando e arquitetando planos para dominar a burguesia? Foice era pra trabalhar nos campos e martelo, para construir cidades. E comunista constrói alguma coisa? Mas fui. Procurei o comitê local, numa ruela suja próxima da fábrica de pneus, e bati à porta. Alguém berrou lá de dentro:
- Hasta la victória!
Era uma senha, pensei comigo. Entrei no time, e completei a frase, que já conhecia:
- Siempre!
Um camarada com óculos do tipo "fundo de garrafa" engordurados, abriu a porta devagar e enfiou a cabeça do lado de fora, espiando de um e de outro lado. Como viu que eu estava só, fez um sinal com a cabeça para que eu entrasse. Obedeci,solenemente, afinal era um camarada do comitê quem me autorizava adentrar no estabelecimento, e só não usei a palavra "com reverência", porque como candidato a comunista, eu precisava me convencer de que era ateu. Mas foi uma emoção forte, devo ser sincero. Entrei, segurando com as duas mãos, voltadas para baixo, um livro de V. Kopnin, intitulado: "Dialética como lógica e teoria do conhecimento". Era impresso na URSS, e eu o consegui com um bancário de um banco estatal. O banco era estatal, mas estava lotado por comunistas. Isso me emocionava.
Assentado em uma cadeira velha, tendo á frente uma velha mesa, cheia de documentos, estava o chefe local do comitê, o Vlad, Vladimir Rodrigues. Seu nome era Jurandir, mas Vladimir era mais adequado, e tornou-se seu codinome. Comunista tinha isso de usar codinomes. Eu estava ansioso por ingressar, ser aceito logo, e ganhar um codinome. Tinha até pronto um papel de codinomes sugeridos. O meu preferido era Leonid.  Eu gostava de Vladimir, mas logo de cara encontrei um Vladimir, e logo o chefão, fiquei um pouco receoso de que isso pudesse glosar meu acesso ao partido. Então Leonid talvez fosse mais adequado a mim. Tinha que começar de baixo.

Camarada Vladimir olhou-me com a cabeça baixa, erguendo apenas os olhos, por cima dos óculos redondos, com aspecto de investigação de caráter, no caso, o meu.
- Escriturário?
- Sim, camarada. Sou escriturário sênior em um banco estatal.
- Lacaio do capitalismo! Vocês contam dinheiro e extorquem o proletariado, enquanto os campesinos engrossam as mãos e suam sangue para lhe fornecerem o pão que come? Pensou nisso?
- Não, camarada! - Respondi, profundamente envergonhado, porque eu comia muito pão mesmo. Depois disso, senti-me compelido a comer coisas menos campesinas, como enlatados, pois enlatados não vinham do campo. Vinha das fábricas. Mas não falei nada. Nem foi preciso falar, porque ele continuou seu discurso de culpa:
- Nos campos e nas cidades, nas fábricas burguesas, títeres dos ianques imperialistas, que esparramam seus enlatados nas casas do povo.
Misericórdia!- Pensei. Mal comecei a ser comunista, e estou com um ódio indescritível da burguesia. Só não tomei uma atitude mais radical naquele instante, porque eu não tinha ideia do que comeria se jogasse o pão e as latas de ervilhas e sardinha no lixo.
Vladimir anotou meu nome numa caderneta amarelada, acendeu um charuto cubano, soltou uns círculos de fumaça, e estalou os dedos em direção ao gorducho de óculos de fundo de garrafa,
- Passa um telegrama pro camarada Oliveira.  Diga que iremos fazer piquete na segunda feira pela manhã. Queremos fechar aquela fábrica até o fim da semana.
- Fechar uma fábrica? - Pensei. E o que ganhariam, fechando fábricas? Causaria desemprego.
Parecia que Valdimir lia meus pensamentos.
- Fecharemos todas as fábricas e promoveremos o desemprego, para um despertar dos trabalhadores. Secaremos a fonte de deterioração da vontade proletária, e com isso, os libertaremos de sua ganância opressora. O camarada Lênin fez isso, destruindo plantações de batatas na Polônia, e conseguiu adesão do proletariado à causa. Não é supimpa, camarada?

Olhei para meu velho relógio e pus a mão na testa, espantado:
- Me perdoe, camarada!  Tenho um importante relatório por concluir, e ainda preciso do emprego. Voltarei a contactar com você.
E saí a passo largo. Fiquei assustado com esse tipo de comunismo que conheci. Pensei então em outras correntes de pensamento. Saí dali e caminhei até uma universidade, porque fui informado que o Diretório Acadêmico tem excelentes pensadores, imaginei, e vou buscar a teoria da coisa para decidir-me. Fui. Barbaridade! Melhor que não tivesse ido. Mas fui.

Quero dizer que não tenho problema nenhum com moças que não de depilam. Nenhum mesmo. Apenas acho que não prejudicaria o movimento, se as camaradas tomassem um banho de vez em quanto. Um por semana, por exemplo. Bem, isso também não era problema meu, pois li que o camarada Guevara também odiava banho. Achava muito burguês. Então que seja. Abaixo a burguesia. Abaixo o sabonete yankee! Pasta de dente também é yankee? Pois que seja: Abaixo o creme dental e a exploração das proletárias de corpos esbeltos para alimentarem o capitalismo burguês e porco imperialista!
Bem, de fato eu gostava de tomar banho, achava lindo olhar as pernas macias e bem depiladas da moças, e sentia enjoo quando alguem não lavava o suvaco. Acho que não era bem isso que u esperava do comunismo. Achava eu que no comunismo, haveria oportunidade para que todos tivessem chances iguais, oportuniades iguais, e que o mundo poderia ser mais justo.
- Isso! Exclamava Vladimir. Isso mesmo. Se você tem sobrando, tem que dividir com quem não tem.
- Ué! Mas o cristianismo e o judaísmo, e até o islamismo, não ensinam o mesmo?
- Fale baixo, camarada! O que você quer? Destruir o aparelho revolucionário? Comunista que se preza tem que ser ateu
Quanto mais Vladimir falava. menos comunista eu queria ser. Resolvi dar um tempo. Esperar para ver como ficariam as coisas. Conversar com Aristeu. Aristeu era de uma ala mais liberal, menos radical. O radicalismo me assustou. Eu não queria pegar em armas, tirar gente de dentro de casa. Isso me assustava muito.
Aristeu era um aluno do curso de antropologia, mas fazia também umas cadeiras de sociologia, e liderava uma nova linha de pensamento, onde a palavra comunismo não era mais importante. Pachorrento, Aristeu ensinava que aquele velho comunismo bolchevique estava em decadência. Agora, as rodas de avaliação levantavam pensadores franceses: Focault, Beauvoir, um pouco de Nietsche, mas deixava a Europa fria, e engajava-se no tropicalismo latino, para construir um novo socialismo aberto, cujo melhor atributo não era derrubar uma casa ou tirar seus moradores á força, mas engajá-los e transformá-los através da dissolução da família, assexuando os filhos, e subindo a categoria do cachorro como membro da família. Solução perfeita, pois rebaixando o nível racional da burguesia e elevando a moral canina e felina, a massa seria invencível. O resto, seria uma questão de arranjos localizados aqui e ali. Fantástico! Mandar a família á merda, era o máximo. Pensei nos natais e confraternizações tradicionais incômodas de não precisaria mais abraçar os chatos, emprestar dinheiro e a bicicleta ao cunhado, e ter que suportar as piadinhas infames dos beberrões da repartição, em festas do chefe. Aceitei então um convite de Aristeu para uma reunião ideológica com os militantes. Fui. Era à noite, no centro de convivência da universidade pública.
Foi montado uma bancada improvisada para os dirigentes do movimento,e fui convidado a assentar-me junto deles. Senti-me importante. Importante mesmo. Logo eu, que nem decidido estava, de saída, sou convidado a compor uma mesa diretora. Isso encheu-me de responsabilidade, e minha postura foi ereta, impávida. Aristeu começou um discurso, conclamando os companheiros para a luta e pela libertação da América. Libertação da América? Libertação de que? De quem?

- Do neo liberalismo, companheiro! Da influência dominadora dos americanos (isso não mudou), e da globalização. Tínhamos que combater as queimadas na Amazônia, defender os coalas na Austrália, que também pegava fogo; abraçar uma árvore no centro da cidade que seria podada naquela semana,  adotar os "humaninhos de rua", os cachorrinhos; levantar uma campanha de assinaturas na web para impedir que dessem mais folhas de bambu que os pandas necessitavam porque estavam ficando gordos demais. Havia muito mais ainda:  Um grupo de rapazes, estranhamento fantasiados, trinavam canções com vozes em falsete, elaborava um movimento tresloucado, ao qual davam o nome de "performance", com uma tira de pano levantado ao alto, como uma cobra que serpenteava pelas pessoas, gritando palavras de ordem, e contra alguma coisa, que acho que eles não tinham bem certeza do que era.

Uma moça bem forte, puxou-me e me lambuzou de beijos, e abraçou-me com voluptuoso frenesi. Não foi ruim, mas achei o gogó dela meio avantajado, e sua voz rouca, parecia grave. Não sou preconceituoso, mas eu tenho certeza que debaixo da maquiagem encorpada, havia tocos de barba de dois dias. Talvez ela estivesse tomando hormônios por algum distúrbio glandular., Vai saber..

Mas não fiquei comovido com essa visão do comunismo. Concluí que o comunismo bolchevique ensinava que tudo é de todos.
- Todos não. Os proletários! - Retrucou o camarada de óculos tipo fundo de garrafa.
- Mas os bolcheviques mandariam os burgueses dissidentes pra Gulag. Sobrariam apenas os proletários.
- Então? Foi o que eu disse. Tudo para todos!
Continuei: No novo socialismo de Gramsci, ninguém é de ninguém; O que tiver que ser, a gente dá o contra e esculhamba tudo. Afinal, é a geração dos "Memes", do deboche.
Desisti por ora deste tipo de comunismo também. Pensei: O tempo vai passar e as coisas se decantam. Vou cuidar da vida.

Os anos se passaram. Fui pras redes sociais procurar os velhos camaradas. Achei a maioria.
O camarada dos óculos de fundo de garrafa tornou-se banqueiro. Passou a financiar empreiteiras e políticos.
A moça que me lambuzou e deixou todo marcado de batom, tornou-se empreiteiro. Hernandes & Galileu. Ganharam dinheiro com Resorts, motéis, e casas noturnas. Investiram também na religião. Financiam pastores em franquias de uma religião chamada: "Igreja Penta-Bossal Bola da Vez do Sétimo Dízimo", mas nesse tipo de negócio, usam laranjas. Não querem ligar-se a negócios escusos. É tudo feito ao apagar das luzes.

Vladimir entrou na magistratura.  Foi pro Supremo. Aristeu conseguiu uma colocação como assessor de um senador. Casou-se. Com Vladimir. Gramsci foi mais contundente no argumento. A Dialética como lógica e teoria do conhecimento, virou papel reciclado. Higiênico

E eu, investi em negócios de manutenção ambiental. Sou jardineiro. E filósofo. Entrego pizza, e também jogo búzios, e sendo ateu, isso me deixa mais focado nos resultados. A gente tem que ser polivalente nesta sociedade de consumo. Consumo de coisas da China. A velha e boa China de Mao, Comunista. Da gema.


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