Capítulo 2 - A Corporação
Benício apanhou seu casaco, e saiu a caminho de casa, pensativo, confuso, e só percebeu que estava sozinho ao chegar à porta do apartamento. Assustado, com o egoísmo causado pela situação, deu meia volta e correndo até à fábrica, para buscar a esposa. Ainda não eram seis horas da tarde, hora de encerramento do dia de trabalho na fábrica de chapéus, então ficou escorado na parede, do lado de fora, apoiado sobre uma perna, e dobrando a outra para recostar o pé atrás de si, olhando através das pessoas que passavam, cumprimentando-as mecanicamente, absorto em seus pensamentos acelerados, à espera de Gabriela.
O apito da fábrica tocou, e os portões se abriram, uma cachoeira de pessoas se derramava sobre a rua, num entrelaçado de vozes, e entre eles, surge o sorriso no olhar da jovem e bela esposa de Benício, correndo ao seu encontro.
- Que aconteceu? Você não estava na fila do relógio de ponto, e eu fiquei preocupada!
- Você nem vai acreditar! Te conto no caminho.
- Você está com aquele brilho nos olhos de quem fica feliz. Só de te ver assim, fico feliz em dobro!
E o abraçou com paixão, cumplicidade, ternura. Deu-lhe um sonoro beijo no rosto, e tomou-lhe a mão para seguirem caminho, bem do jeito que fazem duas crianças que saem em direção ao jardim, ao descobrirem um ninho de passarinho no meio da folhagem.
Enquanto caminhavam, Benício foi contando tudo o que havia acontecido, omitindo apenas a brincadeira maldosa que o encarregado fizera a respeito de sua esposa. Não havia necessidade de atirar pimenta no sorvete. E a cada detalhe que ele contava, ela dava pulinhos à sua frente, interrompendo-lhe o caminhar, para celebrar com a alegria compartilhada. Tintim por tintim, Benício descreveu-lhe, tal como fora dito, as vantagens, e as responsabilidades de seu novo cargo, embora ainda não tivesse tomado conhecimento sobre o funcionamento doravante em sua nova função.
- Gerente Nacional de Vendas? - Repetiu ela, numa indagação vaidosa. E o que você entende disso?
Ninguém gosta de ter sua capacidade reduzida a um ponto de interrogação, então Benício, pigarreando duas vezes, respondeu:
- Sei bem pouco, pois minha função sempre foi técnica, produtiva. Tenho certa habilidade para convencer pessoas, mas de fato, ainda fico me perguntando porque fui escolhido. Falta de opção, acho que não é, pois o Casemiro, supervisor de vendas, tem muitos anos de fábrica, e suas vendas são boas.
- Três vezes o que você ganha hoje, você disse, será seu novo salário?
- Três vezes. É muito acima do que eu imaginaria ganhar um dia, mas foi o que me prometeram. Já ganhei um adiantamento, olhe! - E, com discrição, mostrou-lhe o maço de notas altas, estalando, novinhas, em seu bolso.
- Esconda isso, seu maluco! Já adiantaram tudo isso? Por que motivo?
- Para que eu compre belos vestidos para você, e algumas roupas novas pra mim. Uns ternos, gravatas, sapatos.
-Pra mim? Sério?
- Por que eu mentiria? Serio sim. Até um bolsa você pode comprar.
- Será que não estão testando você? esse dinheiro, como vai comprovar que é seu mesmo?
- Porque eu assinei um recibo de gratificação, e no corpo do recibo escreveram: "Para despesas pessoais e familiares, aquisição de vestuário adequado á função". Então, nem posso depositar numa caderneta de poupança, como gostaria. Preciso mesmo comprar roupas. É exigência do cargo.
A Corporação tinha lojas em todas as cidades onde estavam instaladas suas unidades fabris. As lojas atendiam todos os padrões, inclusive um setor mais privativo, onde havia a linha "Elegante", para os executivos. Foi lá, para onde o dirigiram ao chegarem á loja. O Gerente desta unidade recebeu-o chamando pelo nome e cargo. Era tratado por "Senhor Gerente!" E Gabriela, por "Madame". Ela ria com ingenuidade, estupefata, e feliz.
Na segunda-feira seguinte, às sete horas da manhã, como de costume, e na companhia da esposa, chegou à fábrica. Despediram-se no portão, e ele deu a volta, dirigindo-se ao escritório da administração, seu novo local de trabalho a partir de então. Ao abrir a porta da entrada principal, entrou na recepção do escritório, e imediatamente a recepcionista levantou-se para cumprimentá-lo,
- Bom dia, senhor Benício! Teve um bom fim de semana?
com um sorriso profissional, impecável, perfumado:
"Senhor Benício?" Ela já o conhecia? Nunca falara cm ele, quando passava na linha de produção, acompanhando alguém importante.
- Bom dia, senhora...(teve que olhar a plaquinha sobre a mesa, com o nome da secretária)..Natália! Sim, tivemos um ótimo descanso, minha esposa e eu. E a senhora, também descansou bastante, eu espero!
- Sim, obrigado, senhor Benício! O Doutor Laerte, nosso superintendente o aguarda em sua sala. Irei acompanhá-lo. Por favor, venha comigo.
Seguiram por um longo corredor, até uma sala, ao final, com uma grande porta de vidro blindado, e uma gravação nela dizendo: "Dr. Laerte de Medeiros - Superintendente". Passando pela porta, havia uma pequena sala, onde trabalhava a Secretária Executiva da Superintendência, Dona Madalena.
- Bom dia, Madalena! O senhor Benício, para a reunião co o Dr. Laerte!
- Seja bem-vindo, senhor Benício! O Doutor Laerte já o aguarda. Por favor, venha comigo.
Doutor Laerte, um advogado que praticamente nunca exerceu advocacia, pois assumiu um cargo de gerência na Corporação, pertencente à família, e abandonou o diploma em uma gaveta desde que saiu da universidade. Mesmo assim, ostentava o título de "doutor". Caía bem para o cargo. Era magro, de pequena estatura, usava um bigodinho "Demodê", óculos redondos de arame fininho, e um pomposo anel de advogado, com uma pedra vermelha saliente,no dedo da mão direita. Era um homem fino, educado, e cortês, mas sabia, como poucos, o poder da influência e se necessário, o uso firme da autoridade que o cargo lhe impusera. Com singular simpatia, levanta-se e abraça o jovem promovido.
- Seja muito bem-vindo, meu caro Benício!
Benício ficou surpreso que o superintendente sabia seu nome, enquanto o encarregado, que convivia com ele todos os dias, o chamara de muitos nomes homófonos ao seu.
- Muito obrigado, Doutor Laerte! Estou ao seu dispor, senhor. Ansioso para começar o trabalho.
Laerte riu, educadamente, e respondeu:
- Isso é excelente, meu jovem, mas ainda há um longo caminho, até que você assuma, de fato, o seu cargo. Antes você vai passar por um período de aprendizado diretamente comigo e minha equipe. Não iremos soltá-lo às feras sem que esteja devidamente fortalecido. Seu conhecimento na tarefa é insuficiente para a função nesse momento.
- Perfeitamente, senhor...
Um calafrio passou pela espinha do jovem Benício. Ele já começara a sonhar sonhos mirabolantes para o cargo, muitos, compartilhados com Gabriela, mas agora, fica sabendo que não vai acontecer como imaginara. Será que haviam desistido de promovê-lo? Teria sido um teste, para provar sua humildade? As mãos tremiam. A voz embargou. Premeu os lábios e respirou fundo. Lembrou de Deus. Incrível, que nas horas de iminente humilhação, Deus aparece do nada em nossos pensamentos. Será que entre a bênção e aquele momento, havia deixado escapar algum pensamento ruim? Seria uma punição? uma lição mais severa?
- Não se preocupe, meu rapaz! Temos conhecimento de sua capacidade, mas também temos ciência de que ninguém nasce sabendo nada. Não chamamos você pelo que sabe, mas pelo que ainda pode aprender. Considere sua promoção como uma dupla promoção, como uma oportunidade de enriquecer seu conhecimento, sendo que ainda estamos pagando você para que aprenda tudo sem outra preocupação, que não a de aperfeiçoar-se como pessoa e como profissional. Dona Madalena irá mostra-lhe sua novas acomodações, e o escritório, como um todo. Já convoquei uma reunião de gerência e Diretoria, para apresentá-lo de uma vez só, e depois disso, conhecerá pessoa a pessoa, departamento por departamento, e naturalmente, a linha de produção, você já conhece, mas voltará á ela em outra condição hierárquica. Depois disso, você entrará em uma espécie de confinamento, em sua sala, e lá permanecerá, recebendo instruções exaustivas sobre a corporação, e seu lugar dentro dela. Você terá surpresas, esteja certo disso.
Benício olhava tudo à volta, e ajeitava constantemente a postura e a gravata, para mostrar-se impecável ao superintendente Laerte. Sua cabeça doía. Sua mente acelerava. O coração palpitava e às vezes parecia faltar-lhe o ar, ao respirar. Era muita emoção. Era uma realidade estranha ao que havia sonhado junto com Gabriela. Mal começara o dia, e a casinha linda com cerquinha branca, horta, jardim e pomar, já se esmaecia na lembrança.
Continua...
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