Todas as manhãs em Gramado
Os nomes são fictícios, mas as histórias podem ser reais.
Pacard
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Giuseppe Bardini, e a mesa de Cerejeira
Giuseppe Bardini era um velho carpinteiro, daquele “das antigas”, que carregava consigo uma serra de arco, arco de púa, martelo de orelhas, daqueles quadrados, que nem se fazem mais, cuja cabeça amassada se esparramava sobre o aço puído pelo desgaste dos anos; um velho cutelo polido pelo uso, além de uma plaina com “corpo” de madeira, e pequenos acessórios que se juntavam à uma caixa de pregos, novos, ou reciclados, obtidos nas reformas das velhas casas, por onde passava para reformá-las.
Era um homem metódico, dócil, e cordato. Descendente de italianos, Giuseppe se ocupava da faina desde sua tenra infância, quando, ainda lá na “Colonha” (como era chamada a roça, e seus moradores, eram chamados, por uns, orgulhosamente, mas pelos moradores do Centro, por troça, deboche, “Colonos”), ajudava o pai e o avô, nas tarefas de manutenção das cercas, galpões, e casas da circunvizinhança. Deste princípio, deu andamento à atividade, e tornou-se um respeitado carpinteiro na sede do município, onde foi morar em definitivo.
Eu o conheci, quando deveria ter, pelos meus cálculos, uns sessenta anos. Eu trabalhava com projetos para interiores, que nesse tempo era chamado de “Decoração”, e mais tarde, passou a ser conhecido como “DI, ou Design de Interiores”. Dá no mesmo. O fato era que eu era contratado pelas pessoas para desenhar o interior e os móveis de suas casas, e como tal, também coordenava a execução dos trabalhos, contratando, ou supervisionando o trabalho destes especialistas. Giuseppe era um destes, que foi chamado pelo cliente, e apresentado a mim para que trabalhássemos juntos naquela obra.
Uma pessoa, como mencionei, cordata, doce, e manso no falar, educado, e respeitoso, Giuseppe me tratava por “senhor”, apesar de que eu tivesse cerca de trinta e poucos anos, a metade de sua idade. Mas ele não abria mão desse tipo de cortesia, o que, de certa forma, me constrangia, mas ao memo tempo me ensinava que cortesia vai muito além de saber montar uma mesa e puxar a cadeira para uma senhora (alguém ainda puxa a cadeira para uma senhora? Tenho que rever isso urgentemente, eu mesmo), ou bater à porta com delicadeza, ao visitar alguém. Pois Giuseppe era desse jeito: cortês!
Uma das peças a serem trabalhadas, era uma mesa de churrasco, de madeira maciça, com pranchas enormes, espessas, e de uma madeira muito bem preservada. Eram pranchas de “Cerejeira”, uma madeira já extinta, de cheiro forte e adocicado, de cor amarala e rajada com pintas escoras, como uma galinha carijó.
A mesa deveria ter cerca de três metros de comprimento, por um metro de largura, o que significava o uso de três pranchas inteiras para essa tarefa. Acontece que a madeira tem suas peculiaridades, e eu digo que, ainda que morta a árvore, a madeira tem “vida própria”, uma “segunda vida”, isto é, um comportamento físico que, quando exposto à variações de temperatura, tente a expandir-se, de forma desigual, por conta dos materiais dos quais é composta: Fibras e resinas. As fibras são porosas e possuem elasticidade aceitáveis, o que permite à árvore contorcer-se pela ação dos ventos, e variações climáticas, sem quebrar, ou romper-se durante seu ciclo de vida. O outro material, as resinas, são os fluidos que alimentam as células da árvore, e com a variação do tempo, se solidificam, e dão a solidez necessária à árvore, como se fosse o concreto, e as fibras, o ferro e o cascalho. É assim que a Natureza trabalha, no comum acordo de funções dos elementos.
O que acontece é que, ao interromper-se o ciclo vivo das árvores, os materiais, por razões físicas de sua formação celular e molecular, tendem a repetir “instintivamente” os movimentos que ocorriam, quando a árvore estava viva. Por exemplo: Quando uma madeira é colocada ainda “verde”, recém cortada, hidratada, numa estufa de secagem, o ambiente de elevada temperatura, vento, e umidade, forçam estes movimentos, e a madeira sai toda retorcida, o que é corrigido com engradamento, empilhamento espaçado por certo tempo (cada madeira tem suas regras), para que assuma a forma ereta desejada para seu uso industrial. Esse efeito é chamado de “Canostro”, do italiano “Canestra – Cesta”, porque forma uma “concha” na tábua afetada.
Outro modo de secagem, é o modo natural, chamado de “Air Dry”, isto é, secada ao vento, em um local protegido da luz solar e das intempéries. Leva mais tempo, mas obtém resultado satisfatório também. Porém, é sempre necessário respeitar os limites dos materiais, bem como prover recursos físico-mecânicos que deem estabilidade à madeira, no ambiente em que for utilizada.
O cliente solicitou que eu desenhasse uma mesa de churrasco, então, com as tais pranchas de Cerejeira, que estavam guardadas havia muito tempo, mais de três anos, em um depósito de uma velha marcenaria.
Orientei, no projeto, que as pranchas fossem seccionadas na parte de baixo, com um corte de serra transversalmente, de até metade da espessura da tábua, a cada cinquenta centímetros, para romper a resistência das fibras, e desta forma, evitar o empenamento das tábuas.
Desenhei, detalhei, expliquei, justifiquei, e passei o projeto ao velho e bom Giuseppe, que concordou com tudo, e pôs-se a fabricar a tal mesa. Passados alguns dias, voltei à obra, e lá estava ela, bela, majestosa, imponente e muito bem acabada, mesa de churrasco, em Cerejeira maciça.
Como fazia sempre, instintivamente passei a mão por baixo do tampo, para conferir a presença das fendas que projetei. Não estavam lá. Olhei, e as tábuas estavam lisinhas, sem nenhuma marca de serra. Não falei nada. Nem foi preciso, pois o meu querido parceiro percebeu minha preocupação, e falou, educadamente, como sempre:
- O senhor pode ficar tranquilo. O Francisco, contramestre da marcenaria disse que “agarante” a qualidade das madeiras, pois estavam guardadas secando, havia muito tempo, e que era besteira cortar as fendas que o senhor sugeriu!
- Bem! Disse eu: se o Francisco “agarante”, quem sou eu para duvidar. Parabenizei Giuseppe, e segui adiante.
Dois dias depois, voltei lá, e meus olhos correram automaticamente para os topos da mesa, e percebi que dos dois lados, haviam fendas de cerca de vinte a trinta centímetros, rachaduras mesmo. Não falei nada, apenas sorri (penso eu que com brandura, sem maldade), e nem foi preciso dizer nada, pois o velho Giuseppe, com olhos arregalados, começou a contar:
-Pois é, seu Paulo! Eu estava trabalhando aqui, e ouvi: “TUM!”...dali a pouco, ouvi novamente: “TUM!”...e foi “TUM TUM TUM!”, uma atrás do outro, e quando vi, todas as pontas estavam rachadas. Acho que foi o calor!
- Claro, seu Giuseppe! O calor faz coisas estranhas!
Mas não falei nada. Mais alguns dias, voltei lá, e a mesa estava reparada (ele era um exímio artista no trato com a madeira, apesar de ter confiado no contramestre que “agarantia”. Coisa da vida. Instintivamente passei a mão debaixo da mesa, e lá estavam as minhas ranhuras, meticulosamente seccionadas.
Naquele dia, eu aprendi uma lição: Humildade é tudo. Ele tinha por nós dois. Ele aprendeu algo que desconhecia e que na minha juventude, aprendi que quando chegasse à idade dele, gostaria de aprender muito dos jovens. Levei isso a serio e até hoje, os jovens são meus conselheiros. Cada um sabe o que sabe. Ninguém sabe tudo. E aprender é sempre bom.
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