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terça-feira, 29 de agosto de 2017

Catarina e Doralice CAPÍTULO XIII

Imagem: internet

Catarina e Doralice

CAPÍTULO XIII

Batem à porta e Catarina vai atender. É Leduína Salieiri, esposa do Tabelião de cachoeira, prima da irmãs Alvarenga de Lacerda por parte de mãe, dona Cantides Alvarenga, a que herdou a Patente de Major e usava bigode. Mas Leduína não usava bigode.
- O vento está nojento, prima! Meu cabelo está uma maçaroca de poeira. Vou ter que fazer um banho de creme com babosa quando voltar pra casa. Esta estrada está pelos pecados de Judas. O Tabelião, meu marido já escreveu uma carta ao Alcaide da Intendência para reivindicar melhorias nesta rua. Mas sabe você e sei eu o quanto são displicentes com o erário público. Ai, que me dera, tivéssemos um homem na família para se envolver com a política e tomar o lugar deste Alcaide pamonha. Um tararaca de marca maior. Eu mesma estive outro dia na repartição para acertar os impostos, e vi o Adjunto de Escriturário se pegando com a solteirona do telefone, atrás de um balcão. Quando me viram, ai que constrangidos ficaram. Saíram se ajeitando e arrumando desculpas para disfarçar.
Catarina olhava para a tagarela e pensava consigo mesma:
- Mas onde será que eu desligo essa máquina de falar. Misericórdia! Ela comeu corda de relógio e deu trezentas voltas na manivela.

Aqueles abraços cordiais, indagações da família e todas as outras falsidades sociais de quem se desprezam e demonstram o contrário por causa da civilidade, e em poucos instantes estavam à volta de xícaras de chá com fatias de torta, trocando confidências que até mesmo amigas que não se suportam costumam praticar para não se dissociar do convívio social.
- Ouvi dizer que estão com visitas! – Disse Liduína com ar de mistério misto com entusiasmo e curiosidade.
- Sim, duas! – Respondeu à queima-roupa.
- Quem são? Me conte? Eu só tinha ouvido falar de uma visita.
- Não, faça direito as contas: são duas!
Só então que Liduína percebeu o sarcasmo da resposta atribuiu a si própria a segunda visita mencionada. Deu um tapinha no ombro de Catarina, e continuou a investigar.
- É mesmo o Abiel Raposo que está aqui?
- O próprio.
- E o que fez esses anos todos longe? Este sujeito sumiu quando era guri e nunca mais deu as caras. Por que voltou justo agora?
- “Justo agora” por quê? Que acontece de tão especial nesse momento?
- Nada especial querida. Nada especial, mas é que são tantos anos, longe, que a gente fica com um pé atrás, não fica?
- Não sei por que deveria ficar. É algum tipo de crime, contravenção ou falta de etiqueta, que a pessoa siga sua própria vida, e um dia sinta saudade dos amigos e volte a procurá-los para matar saudades?
- Ah, isso é verdade. Isso é verdade. Mas ele está bem? Ficou rico? Está casado? Viúvo? Tem filhos? Por onde andou?
- Olha que eu preciso tomar nota de tantas perguntas ao mesmo tempo para lembrar depois. Não fiz nenhuma destas perguntas até agora à ele. Apenas recebi um amigo. Não tenho porque bancar a detetive e investigar aquilo que ele ainda não quis me dizer, e nem sei se vai querer, o que não me incomoda nem um pouco. Incomoda você?
- Em absoluto! Em absoluto! – Respondeu envergonhada, baixando a cabeça para tomar seu chá, enquanto mantinha os olhos arregalados e levantados, olhando nos olhos de Catarina, e percebendo a intromissão descabida na vida alheia.
- O que você quer mesmo saber, “querida amiga” é se há um flerte entre uma de nós, ou até quem sabe das duas com ele, diga a verdade, se isso te incomoda.
Liduína apenas balançou a cabeça, com a boca na xícara e os olhos levantados, consentindo, ruborizada.
- Não, que eu tenha conhecimento. Ele sempre foi nosso amigo, e arrastava uma asinha pro lado da Dodô. Mas nunca passou disso. Ele chegou há alguns dias, e ficamos muito felizes com sua companhia, que não perdemos tempo com a vida dele.
- Vou ser sincera, Catita. Somos amigas a muitos anos, desde crianças. As pessoas estão comentando sobre a visita de Abiel à sua casa. Por que ele não ficou hospedado na Pensão, como todos fazem? Verdade que sua casa é grande são amigos, mas vocês são duas senhoras da sociedade, frequentam uma igreja, cantam no coral, são respeitadas, e a presença de um homem em sua casa começa a levantar certas conversas que vocês não gostariam de saber.
- Que tipo de conversa? – Perguntou Catarina, com a testa franzida. Por acaso somos mulheres que dão motivo para falatório dessa gente desocupada? Por acaso não conhecem a nossa vida, a nossa historia, a historia de nossa família? Acreditam que depois de envelhecer solteironas, porque gastamos o nosso tempo de juventude cuidando de nossos pais até que descansaram na morte, teríamos perdido a noção do que é certo ou o que é errado e começado com patifarias? Acaso não sabem as pessoas que a historia de alguém é aquilo que aconteceu no passado e não na imaginação pútrida delas em relação às nossas vidas?
Liduína corava e bebia chá. Bebia chá e comia bolo. Comia bolo e arregalava os olhos. Arregalava os olhos e baixava a cabeça pra beber mais chá, comer mais bolo e arregalar mais os olhos.
- Nem passou pela minha cabeça te ofender, minha amiga. Apenas estão falando e achei que fosse importante que vocês tomassem conhecimento disso.
- Está bem. Coma mais um biscoito de papoula e me diga então, já que começou o assunto. O que mais “estão dizendo”? – Disse com sarcasmo transparente, dando certeza que Liduína, fofoqueira como era, fazia parte não apenas do grupo de maledicentes, mas como mentora de muitos mexericos a respeito disso.
Liduína respirou fundo e sorveu uns goles de chá com vitória de seus intentos, e ligou a máquina de trançar verbos. Um instante de suspense enquanto revirava os olhos ao compasso da xícara nos dois últimos dedos de chá que giravam no sentido anti-horário, como se desse adeus à xícara e se locupletasse na gula descarada da passavante de ilações da decente comunidade de Cachoeira.
- Não posso mencionar nomes, você me entende, mas pergunta-se: O que fez da vida este homem, que saiu de repente em companhia da mãe e nunca mais deu noticia? Comentou-se, à época, que ela foi atrás do marido, que andou metido com grupos comunistas ou coisa pior. Comenta-se ainda, que ele teria se envolvido com uma “mulher da vida” num porto, e que a tal mulher era metida com gente perigosa, e um dia apareceu morta num beco, por excesso de bebidas, mas que um homem foi visto arrastando a tal mulherzinha e esquivando-se pelo beco. Tal homem foi identificado apenas como usando um chapéu estilo “Panamá”. Abiel sempre gostou desse tipo de chapéu, e foi companheiro da mundana. Isso é o que dizem, mas se é verdade, isso eu não sei dizer não. Não gosto de cometer injustiça. Só falo aquilo que as pessoas falam.
- Como você soube disso? – Perguntou Catarina?
- Foi o Evilásio quem ouviu isso de uns contatos que tem na Capital.
- Mas o tal homem do chapéu “Panamá” foi quem matou a mulher?
- Isso não sabe dizer. Apenas sei que este homem arrastou a mulher e a deixou num hospital, e foi-se embora. A pobre ainda não estava morta, mas morreu em seguida. O tal homem não foi mais visto. Mas a descrição da enfermeira que atendeu a mulher coincide com a pessoa de Abiel.
- Mas você não acha que é desumano dizer coisas pela metade sobre pessoas que não se conhece?
- Ah, sim, é muito desumano mesmo. Eu jamais faria uma coisa dessas. Só venho contar isso porque vocês são minhas primas, e nós da família temos que zelar pela integridade dos bons costumes, sim senhora.
- Ah sim (respondeu Catarina, com ironia)! O que seria de nós, se não fosse o espírito de solidariedade da família.Tenho muito boas lembranças desta solidariedade, especialmente quando meus pais estavam doentes e não tínhamos tempo para nada, exceto cuidar dos velhinhos, e nosso lugar no coral foi dado às outras pessoas. Quando tínhamos que nos revezar no hospital cuidando de minha mãe lá, e meu pai em casa, e misteriosamente todos tinham compromissos mais urgentes do que passar algumas horinhas em nosso lugar, para que pudéssemos trocar de roupa, tomar um banho, nos alimentarmos...
Catarina não poupava diretas ao egoísmo escancarado da prima, que por sua vez, fingia nada ser consigo e continuava em sua vez, acentuando sua ortoépica e lasciva prosódia.
- Destarte nada termos de concreto que desabone Abiel, a “rúbrica” (acentuando a sílaba tônica da proparoxítona desejando mostrar seus trejeitos culturais) de Evilásio em uma escritura de umas terras devolutas lá para os lados do Barbaquá, despertou a curiosidade de um Adevogado, que era filho de um delegado, que conheceu os pais de Abiel.
- Abiel tem terras no Barbaquá? Até onde sei não tinha. De fato ele herdou umas terras por lá, que nem chegou a tomar posse. Passou para duas tias solteironas e nunca mais deu as caras por lá.
Não era verdade isso. Catarina nada sabia sobre rubrica alguma em terras do Barbaquá. Era apenas uma oportunidade de calar a boca da prima falastrona, demonstrando que sabia mais do que todos sobre o hóspede.
Doralice voltava da horta com um feixe de verduras e temperos, quando passando por baixo da janela do quarto de Abiel, ouviu ele cantarolando uma antiga canção de roda que costumavam cantar quando crianças:
-”Eu fui no mato
colher pitanga
apinchei as cascas
na Maxambamba
Oi larai larai larai
Oi larai larai lerê!”
Quando ele parou o verso, ela continuou:
“Vortei pra casa
do meio do mato
pisei num monte
de bosta de gato
Fui me lavar
na água da sanga
tomei um susto
da Maxambamba
Oi larai larai larai
Oi larai larai lerê!”
Ariel correu para a janela e desatou a rir dos trejeitos marotos de Doralice.
- Espere aí que vou descer!
E desceu cantarolando até chegar lá fora.
- Ouvi a voz que me parece conhecida, disse Abiel. Estavam com visitas?
- Era a Liduína, mulher do Evilásio do cartório de notas e ofícios. Você lembra dela?
- Quem pode esquecer daquela língua! Vivia espreitando por trás das portas e seguindo as pessoas para escutar conversas. Deve ter vindo bisbilhotar a meu respeito, com certeza.
- “Ipsis líteris”! Respondeu Doralice , fazendo trejeitos com as mãos. Veio nos informar sobre seu passado misterioso junto da tal “mulher” que morreu depois da visita de um misterioso “homem de chapéu Panamá”. Mas já saiu rodando num pé só. Veio contar de sua participação numas tais “Terras do Barbaquá”. Para calar-lhe a boca eu disse que não só sabia, como acrescentei detalhes sobre sua doação das terras a duas tias solteironas.
Ariel ria às gargalhadas.
- Não havia terra nenhuma. Eu fui testemunha na assinatura das escrituras porque passava por lá uns tempos trabalhando de agregado num armazém de secos e molhados. Foi lá que compreu um chapéu Panamá, que usei por muitos anos. Na ocasião em que morreu minha mãe eu ainda usava sim. Mas que velha mais desocupada. Veja se isso lá é assunto pra perder tempo.

- Você conhece a Liduína, Abiel. Não dê tratos à bola. Coisa de língua de trapo. Mas chega de prosa. Vamos fazer uma sopa de legumes porque a noite vai ser fria. O Minuano já deu aviso pelas saracuras esta manhã que vai dar uma viração amanhã.


Minhas velhas amigas….
- Mais amigas que velhas! Cortou Doralice. Ele riu. Mais amigas que tudo - completou a frase.




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