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sábado, 7 de janeiro de 2017

A serenata do Joãozinho Moraes



Bateu o saudosismo hoje, e quando bate o saudosismo, tenho que correr pra cá e contar algum causo dos dias de antanho, vividos ou ouvidos por mim, e ainda que não se possa provar a autenticidade dos fatos, ao menos ganhamos pelo pitoresco do causo. E o causo de hoje é do saudoso João Moraes, ou como era conhecido, "Joãozinho Padeiro".

Figurinha ímpar, divertido, generoso, e bom de bola, Joãozinho era primo de Maria Ilizia, véia minha vó. Volta e meia íamos, ela e eu, seu fiel escudeiro, juntos comprar pão d'água dormido, porque era mais barato, mas que no meio da pãozarada do dia anterior, que levávamos, milagrosamente alguns rejuvenesciam e os encontrávamos quentinhos, como haviam saído do forno, poucos minutos antes. E visita que era vista, não seria visita completa sem dois dedos de prosa, onde minha avó saía às gargalhadas pelo caminho de volta, lembrando das traquinagens que o primo contava.

Joãozinho era jogador do Gramadense, e tinha uma artimanha para vencerem o jogo. Ele se aproximava dos adversários, os melhores, os craques, e quando o árbitro, que na época era chamado de juiz, olhava para outra direção, Joãozinho, de súbito, fingia que seu dedo indicador seria um supositório e enfiava no..bem,  ele enfiava e fingia que esperava a bola. Naturalmente o desonrado adversário saía de tapas em cima dele, e o juiz, vendo aquela brutalidade toda, expulsava o encrenqueiro agressor.

Contava ela, que certa feita, lá pelas bandas do Planalto, onde hoje fica o Posto Bezzi, por ali, havia um núcleo de veraneio, com algumas casas novas, onde veranistas da Capital passavam férias, ou alguma temporada em outros períodos do ano. Em uma destas casas, morava uma belíssima moçoila de prendados dotes, a qual despertara voraz paixão no simpático padeiro de quem relato o feito.

Naquele tempo, não havia balada ou barzinho onde se pudesse azarar as gatas. No máximo, a Sociedade Recreio, onde poucas vezes ao ano, os bailes propiciavam encontros sociais, e isso ainda sob o olhar de onça dos pais, que usavam aqueles bigodinhos estilo "Demodê", uma tirinha na ponta do beiço, e com eventual complacência da mãe, que distraía o cavalheiro, enquanto a filha aproveitava para piscar de dar uma levantadinha de ombro, o que significava um gesto de aprovação ao galalau que as espreitava à uma distância segura, não tão longe, porque precisava ser visto, não tão perto, caso precisasse alçar-se em fuga por possível desaprovação.

Em não havendo esta possibilidade, havia um recurso bastante mais ousado, mas dispendioso, chamado de "Serenata", que era um ensaiado cortejo debaixo da janela da mocinha, cantarolada pela voz melodiosa e bem afinada do seresteiro, que tanto podia ser o próprio pretendente, ou na falta de talento deste, de um amigo ou menestrel, contratado para o feito.

Joãozinho era bom de bola, mas tinha as cordas vocais destemperadas, e por esta razão, convidou sua troupe de amigos boêmios para que o auxiliassem na missão de encantar a bela rapariga, moradora da tal casa no Planalto, por quem,dizia ele, se apaixonara perdidamente. Foram então ao violão Adail de Castilhos; ao violino, Almiro Drechsler, e o célebre tenor Gercy Accorsi (estes os nomes que foram dados, mas possivelmente havia mais um ou outro de quem não tenho conhecimento), o qual estaria responsável pelas canções da bem planejada serenata.

Chegada a noite, silenciosamente chegavam à casa, escura, luzes apagadas, o grupo, e posicionados à janela do quarto da donzela, os menestréis desfilam tudo seu talento musical. Emocionante momento, em que, após cantar uma ária, Gercy faz um sinal, e Joãozinho então, que não cantava, mas sabia declamar, começa seu poema.

Bem, eu não sei exatamente qual foi o poema escolhido, mas a história que chegou à mim é que, lá pela segunda estrofe, o padeiro maroto desata a dizer impropérios e palavrões, despudoradamente ofendendo a moça e sua família. E a bem da verdade, mal disse umas quatro ou cinco palavras e viu-se só, pois o grupo disparou mato adentro, correndo pelos banhados, arrebentando violão, rasgando ternos de linho fino e sapateando em bosta de vaca, sumiram rumo às suas casas numa fração de segundos.

Joãozinho ficou só. Compreensivelmente só. Rindo aos borbotões, rindo  rolar, dos companheiros apavorados. As luzes da casa permanecerem apagadas, às escuras. Não havia ninguém na casa naquele dia. João sabia disso, pois naquele dia não haveria entrega de pão, porque a família voltara para a capital.

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