Dona Izartina era viúva do Seu Argimiro, um matuto bonachão, que se acocorava na porta do ranchinho, ao fim da tarde, depois da faina na lavourinha mirrada, e pacientemente sovava o fumo de rolo, lambia a palha, e pitava seu paiêro.
Dia após dia, tarde, após tarde, lá estava acocorado, o Seu Argimiro, pitando seu paierinho, e ao seu lado, bombeando o céu pra módi ver se choveria ou não, na manhã seguinte, a sua fiel parceira , Dona Izartina. E entre eles, os diálogos eram simplórios, eivados de comentários econômicos, sobre o tamanho das couves, das galinhas gordas, e do chazinho de Maçanilha, que preenchia a existência daquele ranchinho de barro e palha, também chamado de Lar.
Mas, como o tempo não oferece opções, um dia, Seu Argimiro, não entardeceu mais com seu pito atrás da orelha, e foi tirar uma pestana abraçado pelo pó da terra, esperando a ressurreição, e deixando Dona Izartina sozinha, com as couves, as galinhas, e a Maçanilha florida e perfumada, do diminuto quintal, que avizinhava com a janela sem vidros, do puxadinho que servia de cozinha.
Devota, Dona Izartina começava o dia, bem no final da noite, pouco antes da madrugada, e encerrava a faina, logo além do último raio de sol, no poente que se despedia para abraçar a noite. Acordava, ela, em sua simplória, bem simplória devoção, rezava balbuciando como uma cantilena, agradecia pela noite e delicadamente, humildemente, sugeria como bênção para o dia, o pão quentinho, e "dous gorpe de leite gordo pra módi branquear o café". "Premêro D-us", dizia, e isso feito e dito, erguia-se em etapas, como se erguem os velhos, e tocava a soprar, entre as cinzas do velho fogão de barro, o toco de pau que ainda tinha brasa, encostava uma palhinha seca, e já acesa a chama tremulante e viva, cobria com uns gravetinhos, uns paus de lenha, e em poucos instantes, a velha cambona preta começava a chiar na chapa, para preparar o café.
Enquanto a água "aquentava", dava de mão a uma cumbuca e dosava certo tanto de milho e quirera, pras galinhas e pros pintos, e "apinchava", cantarolando no terreiro, chamando as galinhas, que ao som da voz, e o tilintar da vasilha de ração, faziam estardalhaço e corriam para o lugar onde o milho caía.
O gato manhoso e magro, atento a isso, se enroscava nas pernas magras da velha, e ganhava um afago, seguido de um "tantico" de leite no pratinho de barro, ali no cantinho da porta. "Biju", um velho cusco faceiro, tremulava o rabo, balouçando as "cadeiras", indo e vindo, onde ia Dona Izartina. Dali, ao estábulo quase caindo, dar pasto à vaquinha, que a recebe com um mugido sincero e terno, um olhar que só as vaquinhas tem com seus donos, quando são bem tratadas, e a mansidão de deixar que lhes espremam cuidadosamente as tetas, para ganhar uns canecos de leite gordo, todos os dias.
Depois, já refestelados os bichos, refestelava-se também ela, com seu pão e um naco de doce, e um caneco bem cheio de café coado, com o leite gordo, e assim, refestelava-se também ela. Agora, passar a mão numa enxada, e rumar pra lavourinha, cercada de caiçara, e restos de ramos secos, que impedem a entrada dos pintos na hortinha, e carpir o inço entre as couves e outros legumes. Umas enxadadas aqui, outras ali, encerra sua ida à lavoura, fazendo do avental uma sacola improvisada, e passa a colher vagens, couves, ervilhas, tomates, favas, e uma ou outra frutinha que encontra, madura, pelo diminuto passeio entre as plantas. Volta pra casa, larga as verduras numa bacia com água, para serem lavadas depois, e vai para o quartinho, separado da cozinha por um vazio, e protegido por um pano velho, parecendo ser uma cortina. Mexe as palhas do colchão, areja os trapos e os estende na soleira da janela, e volta para a cozinha, para começar a preparar o almoço. Depois, sol a pino cozinhando o mundo, uma esticada no catre até que o calor seja amainado. Um pouco mais de lavoura, uma "barrida" no terreiro, mais milho pras galinhas, e quirera pros pintos, um resto de comida pro cusco e pro gato, as rezas da noite, e assim, dia após dia, os nós de existência de Dona Izartina, se emolduram pela vida, até que se junte ao Seu Argimiro.
E a Terceira Guerra Mundial? E as nações em rebuliço estasiadas e estupefatas pelas incertezas? E a Bolsa de Valores caindo? E as ameaças de bombas nucleares que podem destruir de uma só vez mais de quarenta mundos? E as ideologias que tiram o sono de multidões, e separam famílias, destroem amizades, engordam governantes, motivam turbulências, arrastam multidões? E a alta do Dólar? E as sanções às carnes? E o Petróleo que não para de subir? E os embates entre governos e juízes? E a certeza certeira de que a guerra vai chegar? Bem, isso todos sabem que certamente nada sabem. Há apenas a perplexidade de nada saber e tudo imaginar o pior. Mas Dona Izartina, não tem ouvido falar de nada disso. Apenas acorda, ainda noite, reza para que a chuva venha no tempo certo, as couves cresçam, a vaca dê leite, e as dores da velhice tenham o lenitivo do chazinho de "Mistruis" e Maçanilha, para que o vazio entre a tarde e o alvorecer seja breve e reconfortante. Mesmo porque, quando a guerra chegar, quando as artilharias e os soldados armados e bem nutridos passarem pisoteando as suas couves, o que pode fazer Dona Izartina, senão rezar e desejar que possa se juntar ao Seu Argimiro, para serem soprados pelo vento mundo afora, até o dia da ressurreição?
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