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terça-feira, 14 de março de 2023

Dona Izartina Viu a Uva e Ganhou Diproma


Imagem: internet

Dona Izartina já vivia sozinha, havia certos pares de anos, desde que Seu Argimiro a deixara a lamentar pela saudade. E como tudo, o tempo conforta, também Dona Izartina sabia que enquanto vivesse no mundo, comer, dormir, rezar, e carpir a lavoura, eram obrigações e prazeres aos quais tinha direito, e bem exercia esta liberdade, dia após dia.

Galinha não planta milho, e vaca não planta pasto. As hortaliças não aparecem, assim, do nada, no cercadinho de taquarinhas que delimitava a horta do pasto, e o pasto, da roça, onde plantava e colhia mandioca, aipim, e milho. E as pamonhas, o angú, o cuscuz, não pulavam sozinhos pra dentro da caçarola, antes Dona Izartina precisava, pacientemente, ralar as espigas verdes, debulhar o milho seco, moer os grãos, "samear" o pasto, e carpir os inços entre suas afamadas couves e ervilhas.

Os chás de "Mistrunço", Maçanilha,e "Catinga de Mulata", que usava para curar "Furungos" e tratar do reumatismo, também eram plantas manhosas, dengosas, exigiam atenção contínua, e desse modo, entretida, Dona Izartina enganava as horas e arrematava os dias em sua laboriosa faina.

Ds frutas do pomar, fazia doces, geleias, marmeladas, goiabadas, e compotas de figos, peras, ameixas, o o que quer que coubesse no seu velho tacho de cobre, comprados dos Ciganos, ia pra panela, e da panela  pros vidros "Vecks", aqueles antigos, com um arame de pressão e um anel de borracha que servia de lacre para evitar contamiação, enquanto eram pasteurizados, e expostos na prateleira da parte do rancho que servia de sala para receber as visitas e promover as rezas.

Experiente, de "bom sizo", paciente, e sábia, naquele padrão de sabedoria simples e matreira, Doza Izartina era requisitada em todos os acontecimentos comunitários. Na igreja, colaborava com a limpeza da capelinha, cuivada das flores para os cultos, e  nas festas, lá estava ela, ainda madrugada alta, na cozinha, descascando batatas, temperando carnes, e preparando sobremesas, para a freguesia de fiéis e parentada, que se juntava de tempos em tempos para celebrar a vida, e recordar saudades. Depois da faina e louça limpa, que também cabia à ela e outras dedicadas aledeãs darem jeito, assentava-se com as velhas, e como nunca falta em ajuntamento de avós, netas curiosas, de olhinhos arregalados, escutando atentas à tudo o que falavam as macróbias, para depois repetirem em suas brincadeiras de meninas, daquele tipo de meninas da roça, que quase não existem mais.

As mesmas meninas da roça que antes cercavam as avós em suas prosas devotas, ao largo do tempo, seguiram o curso do mundo, e tornaram-se grandes profissionais, exemplares cidadãs, doutoras, professoras, cientistas, advogadas, enfim, a nata da nata do supra sumo da inclusão contemporânea. E sim, elas não esqueceram de onde vieram, e voltaram à sua pequenina aldeia, cheias de boas intenções e projetos, trouxeram investidores, elas próprias investiram nas suas próprias terras de herança, convenceram as autoridades a modernizarem a infraestrutura das chácaras, pavimentaram as ruas, reformaram as casas, modernizaram as plantações, ganharam prêmios, e o mundo conheceu, pelas redes sociais, a pequenina, mas aprazível aldeia, onde morava Dona Izartina.

Claro que não faltaram apelos para que Dona Izartina também permitisse que seu ranchinho recebesse benfeitorias: água encanada, energia elétrica, sanitário, mas nada dobrou Dona Izartina, exceto duas coisas: um vaso sanitário, no lugar da Capunga, e energia elétrica, para acender as três lâmpadas da casa, e movimentar a geladeira que ganhou de presente, para conservar as verduras e o leite. Ficou bem faceira, Dona Izartina, foi mesmo. E claro, com tais facilidades, Dona Izartina parou de colher verdurinhas e frutas todos os dias, pois as tinha estocado dentro de casa. Ah, sim, o velho fogão de barro, ali no cantinho do rancho, dera lugar a um moderno fogão à gás. Um luxo só. Agora, Dona Izartina podia dormir um tanticop a mais pela manhã. Levantava bem depois do canto do galo, do estardalhado das galinhas com fome, dos gatos miando à frente da porta, e do velho cusco latindo para calar os gatos e as galinhas, que não faziam por mal, era apenas fome, pois os novos horários ainda não sincronizaram com seus reloginhos biológicos. Agora, Dona Izartina, tinha tempo livre. Mas, livre pra que? - Perguntava!
- Pra ler, Dona Izaltina!

- Mas eu não sei ler, minha fia!

- Então vamos ensiná-la! - Responderam. E assim, Dona Izartina, ao largos dos setenta anos, aprendeu a ler, com certo esforço, é certo, mas aprendeu:
- Ivo viu a uva! Vovô viu a vovó! A palavra vovô levha chapéu. A vovó tem grampinho!

E assim, em certo tempo, já de "carreirinha", Dona Izartina deixou de ser analfabeta. Que alegria! Mas, era pouco, para as jovens bem sucedidas, que queriam mais. Não apenas mais de si, mas mais de quem estivesse sob sua influência. Agora Dona Izartina precisava se formar no Ensino Fundamental, e depois, com muita dedicação, no Ensino Médio. Por Supletivo. Em dois anos, ou menos, receberia o diploma, e estaria apta a ingressar na Universidade. Era fácil, pois no salão comunitário, havia um computador conectado à internet, que estava disponível para uso de Dona Izartina. E ela usou. Muito esforço, dois anos de dedicação dela, e da comunidade em seu apoio, e Dona Izartina subia ao palco, fantasiada de adolescente, com uma Toga preta, e um canudo na mão, para ser aclamada Bacharel. Bacharel em... bem, ao certo, não sei em quê, posto que Dona Izartina não sabia em que iria aplicar os conheimentos que adquiriu em tão pouco tempo. "O que faz o estudo", pensava ela. E depois disso, dia após dias, Dona Izartina voltava ao salão comunitário para aprender mais. Sabia navegar na internet. Já tinha conta das redes sociais, e proseava com pessoas que nunca vira antes. Fabuloso. Encontrou receitas de quitutes que nunca tirou tenpo para cozinhar. Criticava o governo, os políticos, o Presidente dos Estados Unidos, sabia quem era Gretha Thurnberg, e também Elon Musk. Sabia tudo. Mas uma coisa não mudou: Dona Izartina continuava a morar no velho ranchinho de barro, agora com luz elétrica, geladeira, e vaso sanitário. E ao fim da tarde, assentava-se no banco de tábua corroído, que o finado Seu Argimiro fizera, quando se casaram, e fitava o horizonte que embrulhava o sol para dar lugar à noite. Olhava a lavoura tomada pelo mato, as velhas árvores frutíferas embrulhadas em "Barba-de-velho", a velha cerca de Caiçara enegrecida pelos anos, se desmanchando, ligava o velho rádio na emissora que tocava valsas e canções sertanejas, e olhava para a parede da salinha, para o retrato oval retocado á mão, à pincel, onde aparecia formosa e jovem, ao lado do esposo, com seu bigodinho demodê sizudo, e em um quadro bem mais novo, seu diploma de universitária. Mas seu coração batia mais forte mesmo era com o poente, as modas de viola, e a saudade de seu velho. Ter um diploma era vaidade dos outros apenas. Ela nunca soube o que fazer com ele, senão emoldurar as lembranças.





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