Ilustração: Dall-E 2 AI -Foto de fundo: Ponte do raposo retirada de internet - Os personagens são fictícios, e qualquer semelhança com fatos reais é apenas coincidência...talvez)
Gramado, hoje, é mundialmente conhecida como a cidade da boa comida, dos hotéis luxuosos, dos parques temáticos, e da natureza ainda exuberante. Porém, nem sempre foi assim, e bem antes de tornar-se uma unanimidade nacional de desejo, era uma pequenina aldeia, com três ou quatro ruas barrentas, um amontoado de casas de madeira sem pintura, ou quando muito, pintadas com óleo queimado, não pela beleza, mesmo porque não tem nenhuma, mas pela preservação. Assim eram as casas. De modo geral, as pessoas eram semelhantes às pessoas que viviam em outros lugares pequenos, com pouca informação, movimento cotidiano voltado às necessidades locais, e um ir e vir normal para dos dias ensolarados. Já nos dias enferruscados de cerração e chuvisqueiro, as ruas eram vazias; um armazém aqui e outro ali, recebiam os homens que faziam serviços braçais, que bebericavam uns tragos, enquanto contavam bravatas, ou falavam de estórias repletas de mistérios e superstições. E superstições não faltavam, mistérios também não,
Havia um homem de certa idade, que perambulava pelo vilarejo com uma "mala" no ombro, e perambulava cá e lá apoiado em seu cajado. Caminhava depressa, ainda que claudicasse de uma perna. Era de pouca conversa, e pouco dado à assuntar, além do necessário. Chamavam-no de "Bento Macuco", não por relação ao pássaro com esse nome, mas pela sujeira de seus pés descalços, que trotavam de um lado a outro em pleno barro e poeira, deixando um encardido perene sobre as feridas antigas e cicatrizes de espinhos e calos. Usava sempre a mesma roupa: um surrado capote militar, e vestia uma calça de riscado, cuja perna direita arregaçava até o joelho, e a esquerda, apenas duas ou três dobras. Era costume, Demonstrava virilidade aos homens que assim faziam. Porém, ao sabor de um bom trago que lhe pagavam, vez por outra, Bento Macuco abria o baú de causos, e deixava escapar um aqui e outro ali. E nesta feita que relato, não foi diferente. Zé Tristão, sorrateiro e sempre mal intencionado que era, aliciou o andarilho e o desafiou para uma prosa:
- Pois pago-lhe uma guampa de canha, pra tu contares umas proezas!
E acenando para o bodegueiro, que já estava com a garrafa na mão, consentiu que este servisse Bento Macuco com um caneco de cachaça, acompanhado de uma tigela de torresmeo e morcilha, e meio pão sovado, para fazer justiça à bebedeira que iria acontecer, sem este lastro. Então, após abocanhar de uma vez quase tudo o que havia na tigela, e encher a boca de pão, mastigando até o pensamento daquela iguaria, Bento ainda aceitou um caneco de café pra móde descer a abastança, largou a mala de lado, cruzou a perna, arregaçou a calça, e desatou a contar:
- Pois foi aqui mesmo, adonde está esta bodega, que apareceu o piazote vestido de anjo, com um papel na mão, e entregou ao intendente de Taquara, e com os zoínhos moiádos, suplicou para que o intendente fosse buscar seus irmãos, que haviam sido aprisionados pelo "Véio do saco", numa gruta perto da barranca do Rio Santa Cruz, lá embaixo, perto do Campo dos Bugres. O intendente pegou o papelzinho e leu, e ficou assustado, e quando se voltou pra tomar mais informações do piazito, não tinha ninguém mais ali. Tenho que lhes dizer, que o intendente era homem que passou por revoluções, duas, a de 23 e a de 89, viu a morte de perto, mas passou um vento gela no espinhaço do homem, pois foi.... (dizendo isso, Bento Macuco virou-se para o bodegueiro e perguntou:
- "Tem fumo e um talo de páia?"
Ninguém respirava à sua volta, morrendo de curiosidade, er foi num "upa" que aperecu fumo e palha pro andarilho dar continuidade ao causo, sem delongas.
O tal bilhete, escrito com letra de pessoa estudada, implorava encarecidamente ao intendente que reunisse uma tropa, e fosse resgatar duas crianças que foram aprisionadas pelo "Véio do saco". Ora, todos sabiam que o tal véio do saco qera uma lorota contada àos pequenotes, para que não se distanciassem da casa, á vista das mães, assim como faziam na Europa, com as fábulas do lobo, dos gigantes, e outras assim. Então, o tal bilhete poderia ser uma troça de alguém, porém, aquele menino vestido de branco era bastante real para o intendente, que já tinha visto "M'Boi-tatá" revoando e alumiando o campo durante as pendengas com os Maragatos, mas sabia bem que M'Boi-tatá não passava de fogo-fátuo, uma incandescência espontânea de gás metano exalado pelos cadáveres de animais ou pessoas mortas atiradas à beira dos barrancos. nada mais que isso, apesar dos Guaranis afirmarem tratar-se das almas dos morts subindo ao céu. Mas isso sim, era lenda, e um combatente não podia ser dar ao luxo de acreditar essas crendices.
Encafifado com aquilo, enfiou o bilhete no bolso do colete, e foi pra casa, pois já era tardinha, e o caldo de couve de D. Amália dançava pelo ar chamando para a refeição da noite. Todos à mesa, em silêncio, como era o costume, D. Amália percebeu que algo estava diferente no Intendente, e atreveu-se a perguntar:
- O senhor meu marido tem passado bem? Percebo que está comendo menos. Não está de seu agrado o refestelo?"
- Não, não, D. Amália! Está supimpa como sempre, apenas estou matutando sobre coisas do ofício da intendência. Sossegue seu coração!'
Antes de dormir, o casal aninhava os filhos em suas camas, e depois, assentava-se um pouco na varanda, para tomar a fresca, e provar um licorzinho de Pêra, que D. Amália tinha sempre guardado para esses momentos a dois. Porém, o intendente continuava ensimesmado, taciturno, por vezes metia a mão no bolso do colete e retirava de lá o bilhete. Lia e relia, e D. Amália percebeu.
- "O que o agoniza, senhor meu marido? Vejo que está inquieto desde que chegou. Pode confiar à sua esposa esta razão?"
O intendente mostrou o bilhete à ela, e esperou uma resposta sarcástica, o que não aconteceu. Antes, olhou com firmeza para o esposo e disse:
- Eu creio que pode ser verdade isso. Não estou falando da crendice do velho do saco, ams de que alguém está em perigo. Aconselho o intendente a reunir uma tropa e investigar isso com urgência!
- Vou concordar com a senhora, D. Amália! Irei nesse momento.
A barranca do rio era situada numa curva. e formada por uma grande rocha clara, que reluzia à luz do luar, contrastando com as espumas do rio que batiam na curva e se revoltavam, criando um bailado de espumas e galhos em redemoinho, antes que fossem levados embora de vez. O Intendente apeou do cavalo, e seus dois soldados permaneceram montados, em alerta. Com uma mão na adaga, e outra na garrucha de dois canos, cuidadosamente, aproximou-se da rocha, e viu uma gruta atrás dos arbustos de samambaias. Com a adaga, desbastou as samambaias, e entrou na gruta. Estava escuroi. Voltou, e pediu um lampião, e chamou um soldado para que o acompanhasse. Entraram novamente na gruta, e à medida que entravam, a gruta ficava maior. Serpenteando as pedras do chão, andou por cerca de um quarto de hora dentro da gruta, que à essa altura, já era quase um pavilhão, com cerca de vinte pés de altura e umas cinco braças de largo. Chegaram a uma parede, onde terminava a gruta, e pararam, examinando o lugar. De repente, uma rajada de vento quase apagou o lampião. Um assobio suave percorreu a gruta e o eco multiplicava o zunido. O soldado segurou firme a baioneta do fuzil, e apertou a mão na garrucha.
- "Tio!" - Disse uma voz de criança!
O intendente voltou-se para o chão e viu o mesmo menino que entregara o bilhete, mas dessa vez, estava vestido com trapos, sujo, e com aparencia de faminto.
- "O tio tem um pedaço de pão pra mim?" - Perguntou o menino!
- "Vá buscar no bornal de seu cavalo, e traga também o que mais encontrar para dar a esse menino comer!" - ordenou ao soldado, que num upa, estava de volta, e o meninodevorou os petiscos como um cão devora um naco de carne, com fome, voracidade. O intendente e o soldado apenas olhavam, e nada diziam. Apenas olhavam estupefatos.
Terminado o farnel, perguntou o intendente, ao menino:
- Agora, filho, me explique esse assunto do véio do saco...
- Ele está aqui, disse o menino, apontando para o chão...
Não havia nada no chão. O intendente insistiu:
- Você quer dizer que ele estava aqui?"
- Ele está aqui..na sua frente....
Nesse momento, Bento Macuco terminou de comer seu fristique, pitar seu paiêro, e já estava se despedindo, quando, intrigados, perguntaram:
- E o que aconteceu com o intendente, o solado, o piazito?
- Até hoje os procuram naquela barranca do Rio Santa Cruz. Dizem que nas noites enluaradas, ouvem o menino pedindo comida, do outro lado do rio. Isso quem conta são os pescadores que pescam lá perto da Ponte do Raposo. Eu não vou lá. Aquele lugar sempre me dá fome...
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