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quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Porque não somos mais felizes como antigamente



Eu sou uma pessoa relativamente feliz. Não do tipo "bobo alegre", mas me contento com o sabor sutil das notas da fragrância da felicidade contida em cada perfume que aspiro todos os dias. Sou capaz de me sentir bem até em velório, pois considero as vantagens de estar de pé e não  deitado, ou sendo alguém muito querido, considero aquele momento apenas um breve até logo e não um adeus  definitivo. Portanto, ser feliz, não é uma questão apenas de ter ou ser, mas de simplesmente viver.

Sou velho, e já fui moço, dizia o sábio, que concluía dizendo jamais ter visto um justo a mendigar o pão, posto que aquele que busca na vida apenas o pão, o que vier a mais será lucro e luxo. Mas ainda assim, por que não somos mais  felizes do que éramos antigamente?

Creio que há muitas respostas: a primeira está em saber que antigamente éramos jovens, e jovem não tem tempo para ser infeliz. E mesmo assim, muitos o são. E ainda assim, ao chegarem à idade das lembranças, perceberão que havia um pouco, alguns raios perdidos de felicidade em torno de si, que só foram percebidos pelas lembranças do que já não volta mais.

Então, qualquer resposta que eu der, será muito subjetiva, porque a felicidade tem formas e pesos diferentes em diferentes lugares. A felicidade para uma criança na Suíça, por exemplo, é brincar pelas praças coloridas, esperando que cresçam logo para pagarem com satisfação seus impostos. A felicidade para uma menina na Arábia Saudita é a esperança que nunca cresça, ou quando isso acontecer, que tenha um ventre volumoso para conceber muitos filhos ao seu marido e senhor. A felicidade para um menino de cinco anos é poder brincar na piscina de bolinhas até que venha o sono e ninguém o obrigue a dormir. A felicidade para um menino de cinco anos na Síria é dormir e acordar ouvindo apenas o silêncio (pois passarinhos eles nem sabem o que é).

Então, não serei genérico, e vou concentrar minhas reflexões sobre ser feliz em Gramado, afinal, apesar de ter que provar a um ou outro burocrata alienígena de vez em quando, sim, eu sou gramadense, não de nascimento, mas de coração e ancestralidade.

O que é "ser feliz em Gramado"? Vou descrever minha historia, com brevidade. Pela natureza de meu trabalho e escolhas de vida, tenho que viajar muito. Isso faço há muitos anos. Então, mesmo tendo uma vida formal em Gramado, embora minha última  residência estivesse instalada a alguns poucos metros, já dentro do município de Canela, era em Gramado que eu  centralizava minha vida e afazeres. Mas antes disso, sempre vivi em Gramado mesmo. Quando menino, morava no final da Avenida Borges de Medeiros. Minha escola ficava no  centro, onde fica ainda hoje. Saía de casa todos os dias pela manhã, ou à noite, mais  tarde, e atravessava a avenida, cumprimentando muitas pessoas, em suas casas. Apertava campainhas, as poucas que haviam pelo caminho, e saía correndo, junto com meus amigos. Tomava café e comia um sonho ou torta de ricota, batia papo com os mesmos daquele horário, falava mal do governo com uns, combinava uma festa com outros, ouvia reclamações de alguém, reclamava com mais alguém, e a vida era assim.

A vida das pessoas era quase medíocre, se analisarmos pelo entendimento criativo evolutivo. As pessoas acordavam, tomavam café, saíam para o trabalho, voltavam, trabalhavam duro a semana inteira. Nos fins de semana, culto, missa, futebol com os amigos, um churrasquinho, um almoço na casa da tia, um encontro com os primos, os irmãos, os amigos. O fim de semana era um tempo sagrado. Reservado para os amigos e a família. Reservado para adoração à Deus, fosse ela católica, adventista ou protestante. Eram as religiões existentes. Eram os dias mais felizes que tínhamos na vida. A felicidade tinha data marcada. A vida tinha hora marcada com nossa historia. Nós tínhamos hora marcada para chegar em casa, e hora marcada para sairmos todos os dias. 

Conhecíamos todas as pessoas pelo nome. Todas nos conheciam pelo nosso nome. Uma traquinagem tinha castigo certo, porque conheciam nossos pais, e nossos pais conheciam nossas travessuras. Nossas mães conheciam a espessura do pão que nos serviam com "chimia" e nata. Não  eram pães fininhos. Eram espessos e saborosos, perfumados, nutritivos. 

Não  havia vadiagem em Gramado, pois todos eram fiscais do bem estar da comunidade. Quando não estávamos na escola, éramos empregados temporários nas fábricas de doces ou vime. Havia sim hora de brincar. Finalzinho da tarde. E nos fins de semana. Tínhamos compromisso sério com a pelada e as farras domingueiras. Assim éramos felizes. E sabíamos.

O tempo passou. Gramado cresceu. Descobriu o turismo. Enriqueceu. Tornou-se famosa. Nós crescemos. Descobrimos que havia uma brecha no  descanso dos outros por onde poderíamos enriquecer: os fins de semana! Muitos enriqueceram. A si mesmos e à sociedade. Gramado tornou-se uma sociedade rica, glamourosa, notável. Modelo para o Brasil. Copiada, desejada, sonhada. E infeliz.

Passei muitos anos sem ir à Gramado, e quando fui, fiquei assustado. Encolhido. Temeroso. A imponência das edificações me sobrepujava. A beleza das ruas me embevecia. A riqueza das vitrines me humilhava. O perfume das ruas me inebriava. E a saudade me corroía. Caminhava pelas ruas e não via as casas de minha lembrança. 

Está  bem, casas são apenas casas. Mas onde estavam as pessoas que habitavam aquelas casas? Muitos descansavam na eternidade. Outros, viviam enclausurados no progresso, sem paredes para perpetuarem suas lembranças. E eu caminhava pelas ruas e perguntava: onde estão todos? Onde estava eu quando isso tudo aconteceu?

Gramado não tem mais feriados para si mesma. Não  tem mais sábados nem domingos. Gramado  não tem mais pessoas na janela cumprimentando a quem passa. Não tem mais o pastel de carne do café  cacique para abastecer a fofoca da cidade. Não tem mais a pracinha bucólica onde os conhecidos se encontravam para o chimarrão. Injustiça a minha. Gramado tem tudo isso, só que de roupa nova, mais bonita, mais elegante. Tem mais cafés e bares, mais bistrôs, mais flores, mais perfumes nas ruas, mas gente para dar "bom dia". Então por que não somos mais felizes do que éramos antes, se tudo se multiplicou?

Porque vendemos nosso bem mais precioso, criado para servir ao Homem: O tempo. Há uma quadrinha que diz: O  tempo não me dá tempo, de bem o  tempo fruir, e nesta falta de tempo, nem vejo o tempo fugir! Vendemos nosso tempo. Vendemos nossa alma, que eram os encontros. Vendemos nossa família, porque os entregamos e nos entregamos a oferecer prazer às famílias dos outros, porque elas nos pagam por isso. Nossos sábados e nossos domingos não são mais nossos, são  delas. Nosso sorriso não é mais de nossos amigos, mas de nossos hóspedes. Nosso "bom dia" é técnico, obrigatório, profissional. Talvez por isso tenhamos mais "antigamentes" do que tínhamos antigamente. Só para sermos um pouco mais felizes. Mesmo que seja nas lembranças. Entre um hóspede e outro.





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