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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Véio Tristão (Não é historia. É apenas um causo com uma pitada de verdade)




CAPÍTULO IX

Velho Zé Tristão era um indivíduo sinistro. Por alguns, caduco. Por outros, doido. Por todos: um xarope!

Perambulava pelas ruas à noite, se esgueirando pelas madrugadas no meio dos matos à procura de um tesouro, ao qual chamava de “Cabedal”.

Nos idos das revoluções passadas, lá no Rio Grande, era crença corrente que bandos de revolucionários desgarrados assaltassem fazendas, ou casas de camponeses por onde passavam, e quando amealhassem em suas pilhérias ouro, prata ou joias, e mesmo algumas “platas”, os escondiam embaixo de grandes árvores pelo caminho, às quais poderiam ser facilmente localizadas após a guerra, e garantir um recomeço com certa dignidade e fartura. A questão era que muitos morriam na peleia e o tesouro ficava escondido, caindo na lenda e no esquecimento.

Velho Zé Tristão acreditava piamente nestes relatos ( e quem sabe ele próprio pudesse ter sido um dos venturosos que escondera tais pilhérias) e contava que tivera um sonho, onde um grande cabedal estava oculto sob a raiz duma caneleira lá pelas bandas do Bassorão.

A única referencia que tinha do lugar, era, além da tal caneleira, uma grande pedra em forma de batata que servia de coarador,a trás do rancho de Carsulina.

Certo dia, apanhou seus “aparêio”, um emaranhado de fios de cobre, que segurava com ambas as mãos, de onde pendiam duas varetas e um pêndulo de metal (uma argola ou porca de ferro amarrada a um fio de crina de cavalo), e se bandeou pros lados do rancho da velha amiga.

- Ó de casa! Venho em paz, cumadre!
- É tu, Arcaide véio – respondeu Carsulina)
- Em carne e osso, mais osso do que carne, cumadre. Prenda o doga, que vou entrar!
-O doga é manso, arcaide! Foi capado!
- Só tenho medo que me morda, o táli, cumadre”. Aprendi isso com o ermão Apolônio.

Esta era uma velha piada, mas as pessoas simples são assim mesmo: repetem as anedotas, os jargões, aquilo que lhes diverte. As pessoas simples não sentem necessidade de inventarem coisas novas o tempo todo. Não que não sejam criativas, mas as pessoas não comem pão, tomam café, bebem água todos os dias? E isso as incomoda, por ser repetitivo? De modo algum. Riem sempre que ouvem o gracejo. Talvez não do gracejo, não do inusitado, que é o que faz rir, mas do jeito que é contato, expressado, pelo momento em que expressam.

Zé Tristão cometera um crime, em sua juventude.  Por desconfiança de traição, não buscou um entendimento com o pretenso amigo da “alheia”, e partiu para a ignorância. Deu um balaço na cabeça do infeliz e acabou com a festa. Foi condenado e preso por muitos anos. Ao sair da prisão, mudou de lugar e foi morar lá pelas bandas de São Joaquim, em Santa Catarina. Enriqueceu, pois era um homem inteligente e bom nos negócios, e lá se casou de novo. E como, diz o adágio popular: “aqui se faz, aqui se paga”, a vingança veio à galope: por estar com o nome sujo com a justiça, e por ser ajuntado e não casado, pois esta era a segunda mulher, e a Lei não permitia divórcio, viveu os anos em companhia desta mulher, em concubinato. Colocou em nome dela todos os bens, ao que ela foi imensamente grata, pois lhe passou a perna, deixando-o com uma mão na frente e outra atrás. Levou, desde então, uma vida errante. Envelheceu e acabou morrendo como um andarilho, um mendigo orgulhoso, que vivia da caridade da família: irmãos e sobrinhas (isso mesmo, das filhas do homem que havia matado anos antes).

Ele andava arqueado pra frente, apoiado numa bengala de camboim, e uma “mala”, espécie de sacola de pano de duas partes, carregada ao ombro, distribuindo o peso entre uma parte e outra, geralmente feita de pano de riscado, um tecido forte de algodão. Na cabeça, um pano branco amarrado ao queixo, como uma “vovozinha”, denunciava uma dor de dente incurável. E nos pés, um par de “pracatas”, um chinelo feito com pneus e couro cru. Quando usava, pois na maior parte do tempo, pendurava-los também ao ombro e andava de pés descalços.

- O arcaide arrepare só neste mogango que colhi ontem na lavoura. Tenho um doce guardado do úrtimo que colhi. Coma um bocadinho. Este foi feito com açúcri do povoado (açúcar branco). Adoçadô uma barbaridade. 
Zé Tristão comeu o doce com avidez, quase sem respirar. Não comia algo bem feito havia muitos dias, e os doces e “goloseimas” de Carsulina eram um convite à gula. Coisa campeira, feita em fogão de chapa, em tacho de cobre e mexido vagarosamente com colher de pau.

- Cumpadre ,e conte o que lhe traz aqui no rancho desta véia peleadora?
- Ando abichornado, cumadre. Essas cousas da mudernidade me tiram do serio.
- Ah, cumpadre. Os tempos mudernos  são uma janela que se abre para o Apocalípes. Temos que tomar tenência e cuidar do coiro antes que a mudernidade nos tire ele.
- Vosmecê pensa ansim também, cumadre? Então eu não sou solito nestas conjeturações cabulosas?
- Não, arcaide. Eu memo vejo côsas que assombram a pessoa. Ainda bem que sou uma pessoa esclarecida, tive estudo. Fiz inté a terceira série e sei ler tudo sem gaguejar. Não se apoquente, arcaide. É pra ser ansim mêmo. Leio muito e as côsas que leio me dizem côsas que assombram, arcaide.
- Foi ansim, cumadre. Andava eu, solito, campiando ouro do cabedal dos Medeiros lá na volta do arroio, quando parei pra mór de comer um naco de pão com queijo, e sentei em riba de uma pedra. Solito, matutando, cafifando aqui e acolá, já entardecia, ouvi um baruio no mato. Garrei o o facão  e passei a mão na pistola. Tava carregada, pórva, chumbo e bucha, tudo firme. Garrei uma ispuleta e engatei no ouvido da garrucha, engatilhei, e fiquei iscuitando os baruio. 
Percurei, pé ante pé, cuidando pra não pisá nos graveto, que estralando, denunciavam a minha presença.  Caminhie, caminhei, em direção ao ronco.  O passaredo se alevantava num gritedo só, e inté os bicho de pelo corriam pelos matos assutados..

Zé Tristão  narrava tudo isso com os olhos pequenos bem arregalados, agachado, num  vai-e-vem dramático, onde encena seus passou sorrateiros pela mata. Ora arregala os olhos e direciona a narrativa para um vazio. Outras vezes, olha para Carsulina e procurar maximizar o drama, tornando-se shakespereano na narrativa.

Carsulina ouvia a tudo com atenção. Uma atenção maliciosa é preciso que se diga. A velha marota já ouvira tantas e boas lorotas, que uma a mais apenas engrossaria o caldo da sopa dos queimadores de campo.  Mas não era a lorota que importava e sim a atenção ao velho amigo. Ninguém gostava de Zé Tristão. Ele próprio não gostava de si mesmo.  E não  se pode dizer que Carsulina também preferisse sua companhia, muitas vezes ao silêncio da reflexão. Era porem uma dama, elegante, à moda do Bassorão, também é importante ressaltar. E daí? O Cêrro do Bassorão era um lugarejo esquecido do mundo, mas neste esquecimento, preservada bons monos, cavalheirismo e certos maneirismos dos tempos de antanho. 

Carsulina era uma dama afável e de bom sizo, e sabia que ouvir as lorotas fazia parte de sua faina compreensiva e apaziguadora de ânimos, fossem do Zé Tristão, do Birruga, do Tuiuco, do pároco de Santa Creusa do Malacara, de onde Bassorão era a sede, da Paroquia de São tenente da Venta Xuja, Parde Uomo, ou de quem quer que seja. Mas Frei Uomo, este sim era um queimador mór de campo. Misericórdia! Mas sobre ele, falarei depois. Então, ouvia e ainda dava pitacos aqui e ali, demonstrando atenção total.

Zé Tristão pigarreava, cuspia janela afora, e continuava:
- Garri mato adentro negaceando, bombeando aqui e ali. Quando percebi, era noite
. Então acendi um lampião de corozena, e continuei campiando. O ronco, que era uma parte ronco, uma parte uivo, continuava, e chegando mais perto.  Senti um cheiro forte de ovo podre. Pensei: tomei banho não fais nem treis sumanas, então não sou eu que tou catingando ansim.
Nisso, Zé Tristão dá um salto, abre braços e pernas, arregala os olhos, se vira num pulo só em direção à Carsulina, e dá um berro:
- CUMADRE DO CÉU! O que eu vi...Cumadre, eu lhe juro pelo que há de mais sagrado. Eu vi, tava lá, de zóio arregalado, agachadinho e gemendo, incuído, incuidínho, incuidinho, esfregando o fiofó num toco de carrapicho, quem? Quem?..... (Zé Tristão arregala os olhos e faz um bico apontado para Carsulina), e trava no ar, tranbca a respiração em suspense, e balança a cabeça duas vezes, naquele conhecido gesto de questionamento sem palatras, tipo: Ham, hum?

Carsulina também arregala os olhos, e esticando o pscoço em direção ao arcaide, devolve as perguntas:
- Ham, hum?
- BIRRUGA, cumadre! (Dá uma enorme gargalhada e repete) o arcaide do BIRRUGA, cumadre Carsulina. O arcaide em pessoa, obrando,  e aos prantos porque se alimpou com urtiga, cumadre...




O entardecer do Cêrro do Bassorão é único, solene, ensimesmado. O silêncio do crepúsculo é quebrado pelo vento que sussurra canções nos ouvidos da noite e entoa cantilenas para as estrelas. É isso que se pode ouvir lá naquele lugar. 

Isso, e as gaitadas (gargalhadas) de Zé Tristão e Carsulina, entre goles de chá de mate e mordidas em bolinhos de farinha de milho.



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