O nome completo era Anastácio Dietrich Orlikowski, mas por economia de palavras, ele ia direto ao assunto e permitia, mais que isso, adorava, ser chamado de MIKI. Este apelido nasceu de uma dupla musical da juventude, com o irmão, quando animavam bailes, sob o epíteto de Mickey & Mouse. De Mickey, ficou Miki pela vida afora.
Exímio tocador de bandoneon, Miki era também exímio em muitas coisas mais. Desenho, pintura, escultura, xilogravura, litogravura, gravação em metal, modelagem, cutelaria, e sobretudo biscoitos com café. Não. Ele não sabia fazer biscoitos, ou pelo menos, nunca o vi fazendo.Mas comia muitos biscoitos. Eram, na verdade, seu cachê pelos ensinamentos que dava. Biscoitos e cafezinho. Talvez este o segredo de sua juventude, ao nos deixar, ainda sorridente e brincalhão, aos 92 anos de idade, mas juízo de 15, e sabedoria de 100.
Conheci Miki em 1977. Eu era aspone de turismo em Gramado, e responsável pelas atividades culturais do Município. Foi neste frutífero tempo que conheci e convivi com pessoas geniais, como "Sô Zé", outra figura excêntrica ao cubo, um mineiro de barba e cabelos brancos, enormes, um hippie com mais de cinquenta anos. Foi ele quem apresentou-me aquela figurinha miudinha, debochada com quem imediatamente tornei-me inseparável amigo, e que mesmo que a distância nos tenha afastado, a amizade foi contínua.
A última vez que consegui falar com ele, foi em 2008. Eu estava trabalhando em Lages, e quis levá-lo para uma palestra com os alunos do curso de Design de uma universidade local. Conversamos por telefone, mas infelizmente a palestra não chegou a acontecer.
Há dois anos atrás, fui à Bento Gonçalves, e intentei vê-lo, mas o tempo exíguo e os compromissos não me permitiram. Paciência. A vida separa mesmo os amigos de um modo ou de outro. A vida, e agora, a morte. Aos 92 anos, leio, com atraso, uma notícia que o velho poeta, e meu grande mestre Anastácio, contou sua última piada. Fez, pela última vez alguém rir e chorar. E sacaneou a vida. Não. eu não estava lá pra ver isso, mas conheço-o tão bem, que se me contassem que tenha sido diferente, eu mandaria que procurassem então ele escondido em algum canto rindo deles, porque este é exatamente o jeito que eu imagino que ele tenha feito sua despedida. Algumas palavras de profunda sabedoria, e uma palhaçada de recheio para não perder o jeito.
Miki foi meu padrinho de casamento e professor de desenho, perspectiva, luz e sombra, xilogravura, litogravura, modelagem, e começão de biscoitos. Quando comecei minha carreira de designer (à época era mais elegante ser chamado de Projetista), em 1979. Foi assim que aconteceu (ô memória filha da mãe essa, barbaridade):Ainda aspone da Secretaria de Turismo, eu odiava meu chefe. Gritava comigo na frente dos outros, passava o dia me dando esporro, enfim, alguém desagradável ao extremo, de quem eu desejava ardentemente livrar-me o quanto antes. E eis que atendendo às minhas súplicas, O Eterno envia à mim um marceneiro, que foi encomendar a criação de uma logomarca para sua fábrica de móveis, chamada Móveis Gramado. Criei então a logomarca solicitada, e o homem ficou tão admirado com o desenho, que era um roupeiro em perspectiva, que me convidou para ser projetista de sua fábrica. Perguntei quanto ganharia, e o salário seria o dobro que eu ganhava pra levar mijadas como aspone. Aceitei na hora e combinei iniciar cinco dias depois. Apenas um detalhe: Eu não sabia projetar móveis.
Existem pessoas que valem a pena tê-las conhecido. Existem outras, que o vento das lembranças passa e leva embora sem deixar nenhuma saudade. Mas do Miki, confesso que, talvez pela idade que chega tropeçando nas juntas e chutando os artelhos, derramei umas poucas lágrimas pela notícia triste, mas óbvia, como é óbvia a vida. Felizmente, logo em seguida, lembrei das palhaçadas que ele fazia, deixando as pessoas em saia justa, pelas quais estou rindo até hoje.
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