Motivado a escrever esta reflexão após assistir uma reportagem digestiva pela manhã, contando o drama de uma família do Rio de Janeiro, que utiliza um carro antigo e de baixo valor comercial para o passeio com a família, e que o menino, com cerca de dez anos de idade, precisa de acompanhamento psicológico para superar o medo da violência, porque ouve diariamente tiros dos confrontos entre gangues e policiais, ou entre si, à certa distância de onde moram.
O detalhe que chamou minha atenção foi que eles nunca foram assaltados. O medo então é uma couraça gerada pelo imaginário do jogo de possibilidades que um assalto efetivamente aconteça. Esta situação não é diferente aqui onde moro, onde pelo menos uma vez por semana, ouço o tatalar das hélices de um helicóptero da Polícia sobrevoando meu bairro, à procura de fugitivos de um presídio existente no bairro vizinho. Quando não é o helicóptero (que minha netinha chamava de "Pilotópito")da Polícia, é o do Corpo de Bombeiros. Ou então das sirenes dos carros de policiais que chegam ao Instituto Médico Legal, aqui próximo, informando que estão trazendo bandidos para exame de corpo de delito, ou quando não, um cadáver para as gavetas do necrotério.
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Meu condomínio é cercado por forte segurança de vinte e quatro horas, câmeras, muros e cerca eletrificada, e isso está sendo substituído por vigilância eletrônica monitorada por especialistas, e para entrar em minha casa, já preciso de senhas, controles eletrônicos, e uma excelente memória para guardá-las na lembrança, senão corro o risco de dormir do lado de fora do portão.
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A crise que está vindo em progressão geométrica, motivou-me à abandonar meu caso de amor com o Plano de Saúde, ao qual usufruí largamente, até com duas cirurgias de emergência caríssimas. Felizmente sem ele, sou isento dos checapes mensais de substâncias que eu nem sabia que existiam antes da popularização do tomografo e de alguns exames que me obrigavam a passar oito horas inerte numa cama desconfortável, com uma média de oitenta eletrodos enfiados em lugares que o pudor me proíbem de relatar. Enfim, passei a esquecer que se a mudança de pólos da terra podem influenciar minha hérnia de hiato, e que se eu comer pão branco podem me deixar com o fígado do tamanho de uma batata de inhame. Passei a preocupar-me apenas em correr atrás de trabalho, clientes, e essas bobagens que deixam a vida mais prazerosa, como até mesmo carpir um lote, que só não o faço, porque dentro de um apartamento cercado de câmeras e sensores de iluminação nos corredores, é matematicamente impossível que haja um bom lote para ser carpido.
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Volto ao menininho que nunca foi assaltado, mas que mesmo assim necessita de apoio psicológico pela obsessão impregnada pela mídia de que ele poderá ser assaltado com requintes de crueldade, isso porque se a notícia de um assalto fosse apenas a notícia de um assalto, seria menos impactante e não obteria suficiente público para comprar os produtos oferecidos pelos comerciais dos noticiários que vendem sangue no café da manhã dos telespectadores. Está aqui a receita infalível da infelicidade. Sofrer por antecipação. Queixar-se por precaução. Reclamar do que está apenas na caixa de probabilidades que aconteça. Percebe, que não estou mencionando o fato de queixar-se daquilo que já aconteceu, porque o que "pode vir" pela frente pode ser ainda mais cruel do que se pode imaginar. Então sofre-se pelo que imagina-se esperar-nos na próxima esquina. Plantamos a infelicidade e colhemos amargura, regada com a urina do medo do imaginário.
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Há dois mil anos atrás, Jesus dizia que devemos deixar a cada dia seu próprio mal. Seu seguidor, Paulo de Tarso acrescentava: "Não murmureis", isto é, não fique reclamando de tudo, muito menos do que nem aconteceu ainda e possivelmente nem vá acontecer. Chore pelo que te faz sofrer hoje, isso sim é necessário. Mas chore por hoje e talvez por ontem, mas jamais pelo amanhã. A não ser que sua felicidade seja planejar sua infelicidade. Daí, como água rio abaixo, não há nada que possa contê-lo em sua missão de esperar que o vinho azede para beber vinagre.
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