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domingo, 7 de maio de 2017

Seu "Caxêro"



No tempo em que as pessoas davam "bom dia" e "boa tarde", os nomes das profissões também eram outros, muito diferentes do que são chamados hoje em dia, e alguns mesmo até nem exitem mais, porque as profissões foram extintas, enquanto outras surgiram. 

Quem lembra, por exemplo, do "Guarda-Livros"? E do "Estafeta"? Alguém conhece algum "Caixeiro"? Ou "Caixeiro-viajante"? E Boticário, quem já precisou de um boticário para aliviar um lumbago, entorse, ou cobreiro?

Pois é. Assim eram chamados o Contabilista, o office-boy, o balconista, o promotor de vendas delivery ou o farmacêutico, que certamente já ofereceu soluções medicamentosas para uma lombalgia, uma lesão nos ligamentos, ou ainda uma herpes-zóster? Ou seja, tudo o que escrevi no parágrafo anterior, atualize nesse parágrafo aqui.

Agora, pense num colóquio de uma tarde de chuva, à frente do fogão à lenha, comendo pinhão e tomando chimarrão, e contando  velhos causos, mas usando uma linguagem atualizada, que graça teria? Nenhuma! Então, justifico o emprego de termos esquecidos nos almanaques do tempo, para que possa dar substância e alma aos personagens, e possa, o leitor, envolver-se no relato, como se estivesse ele próprio, servindo mate e descascando pinhão, para ouvir com atenção o próximo causo.

Os homens tinham tratamento respeitoso de "Seu", precedendo o nome do homem, ou "Dona", precedendo o nome da mulher. Então, Seu Portela, de quem já escrevi algumas vezes, foi um personagem lembrado com carinho nas prosas que tive com o primo Ananias, regados a chimarrão, e como disse antes, pinhão.

Seu Portela chamava Ananias de "Seu Caxêro", em alusão à antiga função exercida por Ananias em um armazém da cidade, lá pelos anos 50 ou 60. Passava ele no armazém, sempre que ía "no Gramado", forma de designar uma ida ao centro da cidade, naqueles tempos. E chegando na cidade, fazia parte de seu roteiro então, comprar umas coisinhas para encher a "mala" (um tipo de sacola com dois bornais, unidos por um pano, que ficava sobre os ombros, dividindo o peso entre costas e frente), e tomar um traguinho, dois dedos de "liso".

Seu Caxêro, Ananias, era brincalhão, generoso e homem de bem, e tratava à todos, mas especialmente os pobres, como irmãos, com quem brincava, ria e fazia rir.  E brincava com Seu Portela, fazendo-o lembrar e contar das façanhas do tempo em que servira a Marinha do Brasil. Foi pelo Ananias que ouvi muitas destas estórias fantasiosas e divertidas sobre Portela e outros personagens, a quem quero contar aos poucos por aqui e mais tarde, em livro.

Na última conversa que tivemos, Ananias descreveu-me todos os cinco primeiros armazéns de Gramado, ao lado esquerdo da Avenida Borges, sentido norte, e os quatro hotéis, à direita. Outros episódios particulares, como no dia em que foi trabalhar como marceneiro na marcenaria do Chico Bertoja, num dia muito quente, mas como estava com a camisa muito rasgada, teve vergonha, e trabalhava de paletó, para esconder o roto da camisa.  Em certo momento, Chico viu aquilo e disse pra ele:

- "Rapaz,tire esse paletó. Quem é que nunca teve uma camisa rasgada? Trabalhe confortável!"


Ananias tirou o casaco, feliz e agradecido e seguiu trabalhando. Trabalhou quase a vida toda como carpinteiro. Quando minha família, devolvida à Gramado por uma tragédia, chegou na cidade, não tendo onde morar, foram ele, Ananias e Orlando Morais, primo de minha avó, e primo segundo de Ananias, que se juntaram e construíram um ranchinho para morarmos à beira do extinto açude dos Moura, num terreno cedido pelos primos Cândida e Francisco Corrêa. Tudo isso arranjado por Ananias. O Seu Caxêro.

Ananias nunca se preocupou com lapidar a linguagem, e falava de um modo coloquial campeiro à moda antiga. Matuto, como gostava de ser. Usava expressões como: "Carcei no chumbo", "Negaceando", ou "Ôme é ôme, rato é um bicho". Era esta linguagem de quem temperava as tardes frias à frente do fogão de lenha, regado aos mates, e substanciado com pinhão e muita prosa. E ao seu lado, a velha e inseparável companheira, com coração maior que o mundo, Dona Nerci. Rindo das bobagens que contávamos.

Nestas lorotas, seus primos e irmãos eram as vítimas da gozação. Histórias absurdas envolvendo antigas namoradas, visitas aos terreiros de Saravá para tomarem cachaça de graça, ou caçadas e pescarias, eram sempre o tema que se enriquecia a cada vez que eram contadas as historias. E eu provocava para ouvir mais e mais vezes, pois queria um dia escrever sobre elas.

Na última visita que fiz, Ananias olhou com cara de guri que cagou no sapato de alguém, e disse:

- "Oiando ancim, não dá pra dizer que a Nerci é seis anos mais véia que eu!"
- Nerci é mais velha que tu? - Perguntei admirado.

- Não! - Respondeu ele, rindo do ar indignado que ela demonstrou.

Ancim era Ananias. Lembrar dos causos que ele contava, é fácil. Difícil é lembrar disso sem chorar mais um tantinho pela saudade do Nêgo Véio (esse título fui eu quem dei).

Escrevo isso lembrando que um a um, os dias vão sendo envelopados pelo tempo e guardados para as lembranças. Um a um, meus primos foram dormir, à espera da eternidade. Uma a uma das historias contadas vão se apagando. Um a um dos fios de cabelo branqueiam à espera de quem venha ouvir as nossas próprias histórias, os nossos próprios causos.


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