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domingo, 4 de junho de 2017

Sonhei com merda! Sai de perto! Causos de Maria Elisa (Tia Ilizia)


Maria Elisa, minha saudosa vovó, era uma véia de faca na bota. Não mandava recado. Não chamava, costumeiramente, ninguém, de senhor ou senhora. E só o fazia quando estava injuriada com a pessoa, ou,por respeito, diante de uma autoridade, no exercício do poder. Fora isso, era "tu", e não tinha choro. Isso a igualava com todos e todos com ela, pois exigia semelhante tratamento, exceto de quem não gostava, ou não conhecia.

Divertida e engraçada. Era uma atriz, quando ilustrava expressões dos personagens nos causos que contava. Seus personagens eram reais. Pessoas do passado, de sua juventude e infância. gente simples e carregada de trejeitos, por vezes cáusticos, outras lúdicos, alguns até tresloucados. Pândegos, e até mesmo solenes.

Tinha uns hábitos interessantes. Religiosa, devota, orava duas vezes ao dia: pela manhã e à noite. De joelhos, murmurando, enquanto trançava os longos cabelos, que nunca haviam passado perto de tesoura. Isso mesmo! Ao longo dos seus noventa e cinco anos, ao descansar, Maria Elisa jamais teve o cabelo cortado. Fazia duas tranças laterais e as enrolava em forma de coroa na cabeça. E enquanto trançava, desfiava um carretel de nomes pelos quais desatava os pedidos, súplicas e gratidão.

Ela tinha um padrão de comportamento. E eu já tinha tudo mapeado. Tudinho. Por exemplo: no dia em que ela acordasse cantando em plenos pulmões, era uma sexta feira ensolarada, e as janelas já estavam todas abertas, com as cobertas ao sol, e o forno de barro lá fora crepitando brasas à espera o pão que amassava, ela estava feliz. Tudo isso enquanto cantava. Cantava hinos. Nunca ouvi Maria Elisa cantando alguma coisa diferente de um hino.

Se as coisas não estavam boas, o dia chuvoso, os infortúnios à porta, ela cantava hinos de conforto. Mas eram sempre hinos.

Eram divertidas as prosas com as visitas, pois de acordo com o padrão cultural do visitante, ela adaptava sua linguagem. Se era alguém erudito, seu português era vernacular. Mas se era um matuto, então saía algo do tipo:

- Si alembra, Islísia?
- Si ALEMBROOOO! (Ressoava o ALEMBRO por instantes intermináveis)


Já, quando não gostava da pessoa, olhava com ar superior e peguntava, em tom de autoridade:
- Como VAISSSSS?




Porém, e agora vou ao título da coisa: Era no dia em que Maria Elisa estava de mau humor. E quando ela ficava de mau humor, senhoras e senhores, ela ficava azeda.Muito azeda. Mas MUITOOO azeda. Diriam os endocrinologistas e ginecologistas, que tratar-se-ia de uma, talvez, acentuada TPM, mesclada com os tais "fogachos" da menopausa, que de "meno", muito pouco, mas de "mais", um montão. Seria então a "Maispausa". Porém, em sua engrandecida sabedoria, tinha ela definições que o próprio Karl Jung devia a ela a a compreensão de alguns sonhos. E ela era específica quando chegava cuspindo fogo, de tal maneira, que se cuspisse num monte de gravetos, incendiava na hora. Nem usávamos fósforo naquele empo em casa. Bastava contrariar Maria Elisa no dia em que hela havia sonhado com merda. Sim, fui duro no linguajar, mas era essa mesma a definição que ela encontrava para justificar, em forma de ameaça, que naquele dia, quem governava era ela. Chegava, como dizia, cuspindo brasas, e sentenciava:
- NINGUÉM ME INCOMODE HOJE, POIS EU SONHEI COM MERDA! Falava groso, com uma voz cavernosa e ameaçadora. dava medo. Se não fosse tão crente, diria que a véia..ah, nem vou pronunciar. Mas dava medo mesmo.

Por misericórdia.Imperava um silêncio completo no ambiente, e como ambiente, entenda-se um perímetro equivalente à distância entre um berro e outro audíveis, mesmo que morássemos próximo a um britador que triturava pedras doze horas por dia. Então, os sonhos evacuados de Maria Elisa eram épicos.

O que incomodava é que ela nunca dizia algo do tipo: "Sonhei com jasmins!" Estou boazinha hoje. Não. Nada. Isso a gente tinha que imaginar apenas, pois por cerca de vinte e oito dias por mês, ela deveria sonhar com jasmins e camélias, açucenas ou rosas. Mas pelo menos dois a três dias, com certeza ela sonhava com merda. E por esta razão, ao primeiro vacilo, ficava todo mundo cagado.

Eu, por ser o menor da troupe, ficava apenas cagadinho. Menos mal.




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